Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Eumolpo, Gitão e Encólpio: um triângulo de amor, humor e literatura no Satíricon, de Petrônio

Eumolpus, Giton, and Encolpius: a love triangle, humor and literature in Satyrica by Petronius

Cláudio Aquati
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Eumolpo, Gitão e Encólpio: um triângulo de amor, humor e literatura no Satíricon, de Petrônio

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-32, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 24 Abril 2022

Aprobación: 04 Julio 2022

Resumo: Várias passagens do Satíricon apresentam como elementos complementares entre si o amor, o humor e a literatura. Nessas passagens, esse romance antigo romano mostra-se especialmente realístico e crítico em comparação não somente com obras de gêneros literários da Antiguidade tidos como gêneros elevados, entre os quais figuram epopeias e tragédias, mas, também, com obras de gêneros então marginais, entre os quais figuram as fabulae Milesiae e os romances de amor e aventura gregos, idealistas, como os BigFive. A justaposição de passagens literárias transformadas, torcidas, distorcidas e retorcidas pela criatividade petroniana em relação ao conhecimento canônico, que é natural que seu público possuísse, sugere estranhamentos e efeitos humorísticos na recepção, não raro aportando-lhe resultados cômicos cada vez mais intensos à medida que se aprofundam as interpretações.

Palavras-chave: intertextualidade, Petrônio Árbitro, romance antigo romano.

Abstract: Several passages of Satyrica show love, humor and literature as complementary elements between themselves. In these passages, that ancient romance presents itself as mainly realistic and critical when compared not only to the literary oeuvres of Antiquity, that were taken as elevated genres, but also to minor oeuvres, the fabulae Milesiae among them, and the Greek idealized novels of love and adventure, as the Big Five. A juxtaposition of those literary passages, that were transformed, twisted, distorted, writhed by Petronius’ creativity, when discussing his canonical knowledge, that were supposedly natural on his readers, suggesting strangeness and humorous effects in the reception, not rare bringing to them comic results more and more intense as the interpretation goes deeper.

Keywords: ancient romance, intertextuality, Petronius Arbiter, roman novels.

Se as névoas ainda são abundantes no exame dos romances antigos, algo de certo, de constante transparece às mais diversas leituras: nessas narrativas, sabe-se há muito (por exemplo, com Létoublon, 1993), encontramos elementos em comum como as tentativas de suicídio, as mortes aparentes, os longos solilóquios, as duplas com os mesmos sonhos sonhados, o reencontro de duplas depois da separação, os processos judiciais, as longas viagens por mar com tempestades e naufrágios, entre muitos outros.

As relações amorosas, cujo entendimento e interpretação é fundamental para o conhecimento e a fruição dessas mesmas obras, são alinhavadas, é claro, pelos procedimentos literários encontradiços em cada obra e revelam-se, em sua mais diversa natureza, como um aspecto supraconstitutivo organizador desses elementos comuns. Muitos romances antigos são primordialmente movimentados pelo amor, sejam os BigFive, escritos em grego, com suas relações de fidelidade e constância, sejam os três romances escritos em latim, de ficção destituída de cunho histórico,1 os quais, embora não destaquem todos o amor como seu foco, exploram-no de maneira heterogênea cada qual a sua maneira: o Satíricon, de forma crítica e, dir-se-ia, até mesmo caricatural; O asno de ouro, de Apuleio, todo concretude, do começo ao fim, apesar do forte apelo ao elemento fantástico e religioso, e o anônimo História do Rei Apolônio de Tiro, de cunho idealista.

O Satíricon, obra de excepcional diversidade de temas e recursos linguísticos e literários, que parece primar por desprender-se das mais diferentes classificações, seja em termos de gênero literário, seja em termos de gênero discursivo, embora não se singularize por apenas parodiar o romance antigo grego, dialoga intensamente com ele explorando uma intertextualidade temática a partir de elementos e situações ligados ao amor presentes nessas narrativas gregas. Como em particular esse diálogo se dá por meio de duplas homoafetivas sobre as quais se contam as aventuras que percorrem toda a narrativa petroniana, forma-se a impressão de que o Satíricon seja todo ele uma paródia do romance grego, mas é fácil perceber que as aventuras do Satíricon não ocorrem apenas com duplas homoafetivas e, também, ainda que essas aventuras mantenham personagens homoafetivas, nem sempre têm seu foco na questão amorosa, seja afetiva, seja sexual,2 além do que há um sem-número de outros elementos intertextuais3 demandados por esse romance com os quais se constrói a narrativa petroniana. É possível as fontes de que se ocupa Petrônio terem cada uma um valor ponderado semelhante na competência literária desse autor, para quem, a depender da maneira como se construa o texto, faz-se literatura a partir de tudo quanto haja na literatura e no mundo referente, e, por isso, ele trabalha com um amplo amálgama de recursos na medida da necessidade do fluxo narrativo, valoração igualitária e universalização temática essas que terão muita importância, como se verá, na formulação do Satíricon como narrativa de ficção em prosa. Sendo o emprego desse amálgama de recursos de cunho funcional em favor de uma construção integral da narrativa, não se encontram índices que apontem para uma exata prevalência – pelo menos não em importância, embora sempre se tenha de ressalvar evidentemente a fragmentação do texto petroniano – de algum gênero ou tipo de discurso, a não ser exatamente a prosa de ficção. Talvez os leitores modernos, motivados pela força da tradição, estejam mais inclinados a privilegiar a intertextualidade no Satíricon com Homero e Virgílio, por exemplo, atribuindo às referências a eles um valor maior que às referências que se fazem a outros autores, a outros gêneros, como aquelas que se fazem aos próprios romances gregos. Assim, é possível que a narrativa de ficção em prosa, como Petrônio a adotou para narrar o Satíricon, seja um indicativo dessa valoração igualitária, pois é a ficção em prosa, afinal, o que mais destaca o Satíricon ante essa mesma tradição literária do mundo antigo.

O fato de Petrônio ter tamanho cabedal de conhecimento literário, como podemos avaliar pelo uso que, na composição do Satíricon, ele faz da literatura – e sempre ser reflexivo e crítico em relação a ela e à própria atividade literária –, torna improvável que ele adotasse, sem o perceber claramente, seus posicionamentos, o desafio à tradição que propunha, a nova perspectiva que ousava encetar, donde resulta ser o Satíricon literariamente complexo e Petrônio ser discursivamente astuto. Não sem razão, vê-se desde logo, a construção de personagens e de situações dá-se pela adoção de um sem-número de recursos que a crítica de todos os tempos vem sinalizando como inspiração petroniana de criação própria ou de seu procedimento intertextual.

Relativamente à presença do amor no Satíricon, observa-se ser elemento importantíssimo, embora não se possa afirmar que constitua seu foco, dado o estado fragmentário do texto, atendendo, talvez, a trajetória de Encólpio e Gitão ao esquema de Bakhtin (1988, p. 204), “encontro-desencontro-busca-reencontro-happyend”, típico dos Big Five gregos, mas não é viável afirmá-lo, por mais encontros e desencontros que haja entre essas personagens que se relacionam amorosamente até mesmo de forma paródica, segundo referentes tais como os poemas épicos e o romance antigo de amor e aventuras grego. É importante porque, por intermédio do amor, move-se o (anti)herói Encólpio, quer na sede de manter-se em posse de Gitão, quer no desejo de se relacionar com outras pessoas; também, é o amor que move a leviandade de Gitão, que o impele aos mesmos movimentos do amante, isto é, a fugir do amplexo de Encólpio e relacionar-se com outras pessoas. É importante, além de tudo, porque estimula as reações das pessoas, sobretudo Ascilto e Eumolpo, que se envolvem com Encólpio e Gitão. Questão muito complexa, é importante por ora fixar a questão de que no Satíricon formam-se dois triângulos amorosos, com Encólpio-Gitão-Ascilto e Encólpio-Gitão-Eumolpo.

A presença do elemento amoroso no Satíricon é relevante e estratégica e se liga com muita frequência ao elemento literário na constituição desse romance antigo em todos os níveis. Sua presença no caráter e na ação de diversas personagens não tem importância menor, como se observará naquelas relativas ao segundo triângulo amoroso.

Pode-se começar a refletir sobre a questão amorosa e a literatura pelo abandono a que Encólpio é submetido por Gitão, um fingido contumaz, que acompanha Ascilto quando este e Encólpio se separam por incompatibilidade de gênios e de amante. Trata-se de problemas amorosos, está claro:

Ego qui uetustissimam consuetudinem putabam in sanguinis pignus transisse, nihil timui, immo condicionem praecipiti festinatione rapui, commisique iudici litem. Qui ne deliberauit quidem, ut uideretur cunctatus, uerum statim ab extrema parte uerbi consurrexit fratrem Ascylton elegit. Fulminatus hac pronuntiatione, sic ut eram, sine gladio in lectulum decidi, et attulissem mihi damnatus manus, si non inimici uictoriae inuidissem. (Sat. 80.6-7)4

Eu, julgando que nossa antiquíssima relação já se houvesse transformado num pacto de sangue, nada temi. Na verdade, aceitei mesmo a proposta com uma precipitação temerária e deixei a disputa para aquele juiz. Ele nem sequer refletiu: na verdade, para não dar a impressão de hesitar, mal ouviu a última sílaba, ergueu-se e escolheu Ascilto como companheiro. Fulminado por essa sentença, caí sobre o leito assim como estava, sem o gládio, e, condenado, teria lançado a mão sobre mim mesmo se não me fosse odiosa a vitória do inimigo. Fulminado por essa sentença, caí sobre o leito assim como estava, sem o gládio, e, condenado, teria lançado a mão sobre mim mesmo se não me fosse odiosa a vitória do inimigo.

Esse abandono leva Encólpio a retirar-se para apaziguar-se junto ao litoral, onde se queda em cismas e lamentos, tendo a crítica (Walsh, 1970, p. 36-7; Panayotakis, 1995, p. 115; Conte, 1996, p. 1-2) há muito apontado, aqui, a proximidade de Encólpio com Aquiles, na Ilíada, quando este perde Briseida roubada de si por Agamêmnon como a compensar-lhe a devolução de Criseida ao pai. O herói homérico retira-se para a praia a fim de chorar:



Pátroclo obedeceu ao querido companheiro e trouxe da
tenda Briseida de lindo rosto, dando-a
para a levarem. Eles voltaram para junto das naus dos Aqueus.
E com eles foi a mulher, contrariada. Mas logo Aquiles
rompeu a chorar e foi sentar-se longe dos companheiros,
na praia junto ao mar cinzento, olhando para o mar cor de vinho. (Ilíada 1.348-51. Tradução de Frederico Lourenço.

Vale lembrar que, quanto a esse herói grego evocado pelo procedimento intertextual, posteriormente, em outra oportunidade (Sat. 129.1), Encólpio orgulhosamente dirá já ter sido um “Aquiles sexual”:



ENCOLPIVS AD GITONEM:
“Crede mihi, frater, non intellego me uirum esse, non sentio. Funerata est illa pars corporis, qua quondam Achilles eram” (Sat. 129.1)
ENCÓLPIO PARA GITÃO.
– Acredite em mim, irmãozinho, não sei se sou um homem, não sinto nada. Está morta e enterrada aquela parte do corpo que outrora fazia de mim um Aquiles.

Corroborando essa lembrança de Encólpio, Setaioli (2009) alerta os leitores do Satíricon de que nem sempre Encólpio está impotente. É bem verdade que tal lembrança de Encólpio poderia referir-se às partes perdidas que antecederiam o texto remanescente do Satíricon, mas, na verdade, temos outras passagens em que é evidente as partes sexuais de Encólpio funcionarem adequadamente, como é o caso da noite em que ele passa junto de Gitão, antes do abandono:



Qualis nox fuit illa, di deaeque,
quam mollis torus! Haesimus calentes
et transfudimus hinc et hinc labellis
errantes animas. Valete, curae
mortales. Ego sic perire coepi (Sat. 19.8)

Que noite foi aquela, ó deuses e deusas! Que leito macio! Ardentes nós nos abraçamos e usamos nossos lábios para trocarmos de um para o outro as nossas almas sem destino. Adeus, ó inquietações da vida… Mas, no que me toca, foi esse o princípio do fim.

Petrônio torce ainda mais o sentido com Gitão, que, portanto, reflete invertidamente Briseida de lindo rosto – e Fellini (1969, 08min25) recria-o no teatro de Vernacchio como imagem angelicalmente vestida, feito um Cupido – pois partira de maneira espontânea, não contrariado, muito embora viesse a mentir posteriormente para Encólpio, dizendo que, nessa ocasião, seguira o mais forte a fim de evitar violências:

Haec cum inter gemitus lacrimasque fudissem, detersit ille pallio uultum et: “Quaeso, inquit, Encolpi, fidem memoriae tuae appello: ego te reliqui, an tu me prodidisti? Equidem fateor et prae me fero: cum duos armatos uiderem, ad fortiorem confugi”. (Sat. 91.8)

Como eu tivesse falado tudo isso entre gemidos e lágrimas, o garoto enxugou-me o rosto com o manto e disse:

– Eu te pergunto, Encólpio, recorro à tua própria memória, confio em você: fui eu que te abandonei ou foi você que me entregou? Uma coisa é certa, da minha parte confesso sinceramente: quando vi os dois armados, fugi para o mais forte.

Assim, estendendo a questão para o romance grego, perante o qual Gitão corresponderia à heroína, pode-se dizer que, na mesma intensidade que a ela é sempre confiável, no Satíricon nunca se pode acreditar nas boas intenções do adolescente.

Ainda, pode-se indagar: Encólpio é comparável ao heroico Aquiles? De qualquer modo, na sequência do abandono, ele sai armado de um gládio para, à custa de sangue, vingar a traição de Gitão e Ascilto, mas é evidente que essa declaração é puro discurso, pois ele, hesitante, fica perambulando pelos pórticos, evidentemente sem coragem para a ação a que supostamente se decidira. Tão patente era a covardia de Encólpio – a expressão de Petrônio é uultu, “estava na cara” (Sat. 82.4) – que, nessa expedição, um legionário vagabundo o assalta e, sem encontrar a menor resistência, toma-lhe o gládio:

Cum deinde uultu atque ipsa trepidatione mendacium prodidissem, ponere iussit arma et malo cauere. Despoliatus ergo, immo praecisa ultione retro ad deuersorium tendo, paulatimque temeritate laxata coepi grassatoris audaciae gratias agere. (Sat. 82.4)

Como então eu entregasse mentira pelo meu semblante e também pela própria tremedeira, ele mandou-me baixar as armas e precaver-me contra o que pudesse ocorrer de mal. Então, esbulhado, com a vingança, ao contrário, atalhada, voltei para a hospedaria e, com o medo diminuindo aos poucos, acabei agradecendo a petulância do assaltante.

Na verdade, logo se vê que Encólpio não tem muita habilidade com instrumentos cortantes: já antes desistira de ferir Ascilto com seu gládio5 e perdera Gitão (o que não é de admirar, pois, estulto como é, deixara o menino escolher com quem ficaria, crente que dominava a situação):

Itaque ego ut experrectus pertrectaui gaudio despoliatum torum, si qua est amantibus fides, ego dubitaui, an utrumque traicerem gladio somnumque morti iungerem. Tutius dein secutus consilium Gitona quidem uerberibus excitaui, Ascylton autem truci intuens uultu: ‘Quoniam, inquam, fidem scelere uiolasti et communem amicitiam, res tuas ocius tolle et alium locum, quem polluas, quaere’. (Sat. 79.10-11)

Logo que acordei, eu tateei todo o leito despojado da minha alegria e – se merecem fé os amantes – eu hesitei em atravessar os dois com o gládio e fazer do sono e da morte uma coisa só. Depois, tomei uma decisão mais sensata e acordei Gitão a bofetadas. Mas quanto a Ascilto, encarando-o com um olhar ameaçador, eu disse:

– Uma vez que você, com esse crime, violou a confiança e nossa amizade mútua, pegue as suas coisas o mais depressa possível e procure outro lugar para cometer suas infâmias.

E, quando, em Crotona, falha no amor com Circe, é nas armas que ele encontra, metaforicamente, a desculpa pelo fracasso:

Illud unum memento, non me, sed instrumenta peccasse. Paratus miles arma non habui. (Sat. 130.4)

Mas lembre-se de uma coisa somente: não eu, mas os instrumentos falharam. Soldado preparado, não tive armas.

Note-se que a covardia de Encólpio é incontestável: na situação da traição (vítima de Gitão e também de Ascilto), ele só bate mesmo em Gitão (Gitona quidem uerberibus excitaui), fisicamente indefeso, pois, em relação a Ascilto, apenas lhe lança um olhar ameaçador (truci intuens uultu).

Baldada a vingança, o amor volta a lhe assaltar os sentidos quando, tendo voltado para a hospedaria, desconcertado pelo ataque do legionário, Encólpio dirige-se à pinacoteca, onde lhe interessam as representações amorosas, imagens desenvolvidas a partir da literatura, que lhe chegam aos olhos:

Inter quos etiam pictorum amantium uultus tanquam in solitudine exclamaui: “Ergo amor etiam deos tangit. Iuppiter in caelo suo non inuenit quod diligeret, sed peccaturus in terris nemini tamen iniuriam fecit. (Sat. 83.4)

No meio de todas essas representações de casos amorosos, como se estivesse sozinho, eu gritei:

– Quer dizer que o amor toca até mesmo os deuses! No próprio céu Júpiter não encontrou o objeto de seus amores; contudo, disposto a dar uns passos em falso, no entanto não fez mal a ninguém na terra.

Essas cenas da galeria mencionadas por Encólpio têm inequívoco apelo sexual: Ganimedes, Hilas, Jacinto são todos eles personagens mitológicas ligadas ao homoerotismo respectivamente em relação a Júpiter, Hércules e Apolo. Sendo nesse ambiente da pinacoteca que ele encontra Eumolpo pela primeira vez, Encólpio fica à vontade, pois, como pondera Schmeling (2011),

Encólpio logo considerará Eumolpo uma autoridade6 e um intérprete, porque por meio de sua história do garoto de Pérgamo ele mostra como seduzir adolescentes, um talento que Encólpio admira nas pinturas que Eumolpo descreve. Tão logo Eumolpo aparece, Encólpio olha para ele como uma espécie de modelo.7

O comentário de Encólpio expressa exatamente seu sentimento: exercitati uultus et qui uideretur nescio quid magnum promittere (Sat. 83.7), “adivinhava-se nele [em Eumolpo] um ar de grandeza, não sei bem (…)”, mas, em sua típica estupidez – condição de espírito8 que o coloca como antagônico ao arguto épico Odisseu – ele sente-se em casa, sem perceber, contudo, que ali também era a casa de Eumolpo, o que deveria revelar-lhe os interesses homoeróticos do poeta.

Tendo, assim, sido introduzido ao leitor, o próprio Eumolpo, na sequência, apresenta-se a Encólpio, Ego, inquit, poeta sum (Sat. 83.8) “Eu sou poeta (disse)”, quando se ouvem diversas considerações acerca do valor dos poetas, da poesia e da cultura de modo geral. Em seguida, Eumolpo reproduz a Encólpio a história que denominamos “O garoto de Pérgamo” (Sat. 85.1), a qual é narrativamente um relato autobiográfico do próprio poetastro. E testemunhamos nesse ponto, assim como podemos fazer em relação a “A matrona de Éfeso” (Sat. 111.1), o resgate para a literatura de duas fabulae Milesiae. O conto “A matrona de Éfeso” não tem caráter autobiográfico; ao contrário, foi trazido da própria memória – rem sua memoria factam (Sat. 110.8). É importante salientar que ambos os contos, assim constituídos, prescindem, portanto, do distanciamento épico. Em “O garoto de Pérgamo”, as ações de Eumolpo, que voltam a indicar seu gosto pelo amor com rapazes, deveriam reforçar – o que não acontece – a percepção de Encólpio sobre as preferências do poeta. Acresce que esse mesmo gosto Eumolpo o revela logo ao conhecer Gitão:

Deinde ut solum hospitem uidi, momento recepi. Ille ut se in grabatum reiecit uiditque Gitona in conspectu ministrantem, mouit caput et: “Laudo, inquit, Ganymedem. Oportet hodie bene sit”. Non delectauit me tam curiosum principium, timuique ne in contubernium recepissem Ascylti parem. Instat Eumolpus, et cum puer illi potionem dedisset: “Malo te, inquit, quam balneum totum” siccatoque auide poculo negat sibi unquam acidius fuisse.” (Sat. 92.3-5)

Só depois que vi meu convidado sozinho eu o recebi. Logo que ele se deitou no pequeno leito do quarto e deu de cara com Gitão arrumando tudo, meneou a cabeça e disse:

– Lindo o teu Ganimedes! Hoje promete!

Não me agradou muito uma indiscrição dessas logo de cara, e fiquei com medo que eu estivesse recebendo em casa um sujeito igual a Ascilto.

Eumolpo insiste, e, como o menino lhe desse uma bebida, ele disse:

– Prefiro você a todos lá dos banhos.

E depois de secar o copo, diz ele que nunca tinha tido um dia pior.

Também, a atração do poeta por rapazes pode ser vista mais adiante no texto, no momento em que ele conhece Ascilto por meio de seu apelo sexual, antes de saber de quem se tratava, isto é, que era o então inimigo de Encólpio:

Et me quidem pueri tanquam insanum imitatione petulantissima deriserunt, illum autem frequentia ingens circumuenit cum plausu et admiratione timidissima. Habebat enim inguinum pondus tam grande, ut ipsum hominem laciniam fascini crederes. O iuuenem laboriosum! puto illum pridie incipere, postero die finire. Itaque statim inuenit auxilium; nescio quis enim, eques Romanus, ut aiebant, infamis, sua ueste errantem circumdedit ac domum abduxit, credo, ut tam magna fortuna solus uteretur. (Sat. 92.8-10)

E, se com uma imitação muito da petulante zombaram de mim uns escravos, como se eu estivesse louco, ele uma enorme plateia o circundou, admirada, aplaudindo-o com todo o respeito.

É que ele tinha tão grande volume das coisas que daria para acreditar que o próprio homem fosse o cabo do amuleto. Como dá trabalho esse moço! Acho que ele começa num dia e termina no outro. Assim, ele imediatamente encontrou ajuda, não sei de quem, um cavaleiro romano de má fama, como diziam, colocou sua roupa em volta do rapaz que vagava e levou-o para casa, acho para que só ele aproveitasse tão grande fortuna.

E, para não restar dúvidas, essa preferência reaparece quase no final das partes remanescentes do Satíricon, com o próprio Encólpio, logo que este tem a potência recuperada por Mercúrio:

“Dii maiores sunt, qui me restituerunt in integrum. Mercurius enim, qui animas ducere et reducere solet, suis beneficiis reddidit mihi quod manus irata praeciderat, ut scias me gratiosiorem esse quam Protesilaum aut quemquam alium antiquorum.” Haec locutus sustuli tunicam, Eumolpoque me totum approbaui. At ille primo exhorruit, deinde ut plurimum crederet, utraque manu deorum beneficia tractat. (Sat. 140.12-13)

– Maiores são os deuses, que me devolveram integralmente. Ah, foi Mercúrio. Ele, que costuma levar e trazer as almas, devolveu-me por sua bondade aquilo que uma mão colérica havia cortado, para que você saiba que eu fui mais agraciado que Protesilau ou qualquer outro dos antigos.

Tendo falado isso, ergui a roupa, e me deixei examinar todo por Eumolpo. Mas ele primeiro se assustou, depois, para não tivesse dúvidas, apalpou com ambas as mãos a dádiva dos deuses.

Eumolpo, contudo, não gosta apenas de meninos e rapazes; ele também se relacionará sexualmente com uma garota em Crotona, numa controversa9 passagem do episódio de “A matrona Filomela” (Sat. 140.5: ad pygesiaca sacra, “sagrada dança do traseiro”).

Apesar de todo o risco que constituía Eumolpo em relação a Gitão, Encólpio ainda o acolhe num jantar no cubículo em que se hospedava, repetindo evidentemente o erro que cometera em relação a Ascilto, que considerava “mais cruel que Licurgo”,10

Hylan Nympha praedata temperasset amori suo, si uenturum ad interdictum Herculem credidisset. Apollo pueri umbram reuocauit in florem, et omnes fabulae quoque sine aemulo habuerunt complexus. At ego in societatem recepi hospitem Lycurgo crudeliorem. (Sat. 83.5-6)

A ninfa, que havia raptado Hila, teria abrandado sua paixão se acreditasse que, a fim de resolver a situação, Hércules se apresentaria. Apolo transformou em flor a sombra de seu garoto. Todos os mitos falam também de relações amorosas sem a presença de um rival. Mas justamente eu acolhi em meu convívio um companheiro mais cruel que Licurgo.

Enganava-se Encólpio também nesse julgamento: não fora Ascilto que roubara Gitão para si, mas este que, leviano como era, e infiel, trocara de companheiro. A infidelidade amorosa é a marca de Gitão,11 pois ele também não permanece junto a Ascilto, senão que, com toda a desfaçatez, em breve estaria de volta aos braços de Encólpio. A bem da verdade, sem a perda das considerações acima sobre o acolhimento de um novo rival amoroso e um pouco menos desfavorável em relação à inteligência de Encólpio, é preciso frisar que Encólpio ainda estava solitário no momento em que conhece Eumolpo e o convida para o jantar. Pelo menos no texto remanescente do Satíricon, não havia índices de que Gitão estivesse disposto a voltar, embora Encólpio já o devesse conhecer muito bem.

Sem perceber de pronto, na pinacoteca, a tendência amorosa do novo amigo, somente depois constatou diretamente que Eumolpo cobiçara Gitão logo ao primeiro olhar e, incomodado, pressentia a série de aborrecimentos que estava por vir.

Assim, o Satíricon passa por uma etapa de transição em que vai ocorrendo a separação do primeiro triângulo amoroso e a instalação do segundo.

Gitão, eixo em torno do qual se dão os relacionamentos amorosos em ambos os triângulos, nas primeiras cenas com o poeta Eumolpo, que vem chegando para integrar o segundo triângulo, oferece-se, como sempre, à sedução do homem que está a seu lado, iniciando, para isso, naquele momento do primeiro encontro, uma louvação a Eumolpo. E o velho poeta, mesmo estando diante de Encólpio, parte para a sedução do namorado do novo amigo. Gitão, aceitando o assédio de Eumolpo, retira-se da sala. E Encólpio, do modo estúpido como sempre age por todo o Satíricon, diz que Gitão fizera aquilo para acalmá-lo:

Itaque extra cellam processit, tanquam aquam peteret, iramque meam prudenti absentia extinxit. (Sat. 94.4)

Por isso, ele saiu da sala como se fosse buscar água, e, com essa previdente ausência, abrandou a minha gana.

Observe-se que, por mais neutro que possa parecer esse comentário, como se fosse uma verdade absoluta, não se pode esquecer de que essas são palavras do narrador Encólpio, são a sua opinião não confirmada por nenhuma outra evidência textual, e, portanto, nesse momento, o leitor não sabe por que Gitão saíra da sala. Encólpio nunca atribui responsabilidade a Gitão pela sedução a que se submete o menino. E aqui acontece o que sempre virá a se repetir, isto é, quando Encólpio se vê incapaz de portar-se corajosamente, ele tem uma atitude evasiva, tal como se dera, por exemplo, no assalto que sofrera daquele legionário desqualificado:

Profuit etiam Eumolpo miles ille, qui mihi abstulit gladium; alioquin quem animum aduersus Ascylton sumpseram, eum in Eumolpi sanguinem exercuissem. Nec fefellit hoc Gitona. (Sat. 94.3)

Também Eumolpo teve sorte daquele soldado ter tirado a minha espada, senão era contra o sangue dele que eu ia me desforrar da antipatia que eu nutrira por Ascilto. E isso não escapou a Gitão.

Assim, Encólpio claramente12 atribui um falso motivo para a saída de Gitão, fingindo não estar verdadeiramente aborrecido com o flerte de Eumolpo para com o seu jovem namorado, apenas para não ser obrigado a tomar uma atitude. E, sem negar que soubesse o que desejava o poeta, mas sempre de maneira oblíqua, covarde – eiusmodi tibi uota proponas (Sat. 94.5) –, solicita:

“Eumolpe, inquam, iam malo uel carminibus loquaris,13 quam eiusmodi tibi uota proponas. (Sat. 94.5)

– Eumolpo, fale em versos, mas não faça propostas desse tipo, eu prefiro.

Confuso com aquelas palavras, Eumolpo sai apressado dos aposentos, trancando a porta e deixando o apalermado Encólpio (não seria diferente) preso ali dentro. Schmeling (1971) vê, nesse quadro, o motivo do paraklausíthyron, o exclusus amator, aqui, como sempre, cômica e literariamente invertido pela ótica petroniana. E é na condição invertida, pois, de inclusus amator que Encólpio se prepara para o suicídio, reconhecidamente falso e não menos cômico: como é que alguém poderia se enforcar ligando o cinto à armação de uma cama de pousada em pé junto à parede?14

Inclusus ego suspendio uitam finire constitui. Et iam semicinctium stanti ad parietem spondae iunxeram ceruicesque nodo condebam, cum reseratis foribus intrat Eumolpus cum Gitone meque a fatali iam meta reuocat ad lucem. (Sat. 94.8)

Quanto a mim, preso, decidi acabar com minha vida enforcando-me. E eu já havia amarrado o cinto à armação da cama que estava em pé junto à parede, e estava passando o nó no pescoço, quando pelas portas abertas entra Eumolpo acompanhado de Gitão e, das portas da morte ele me traz de volta para a luz.

Evidentemente tratava-se de mais uma fingida atitude teatral de Encólpio, tão frequente nessa personagem,15 como ocorrera na falsa valentia dele diante do legionário de maus bofes; ou como, logo em seguida a este retorno de Gitão depois de um segundo abandono de Encólpio – lembrando que o menino volta junto com Eumolpo –, com atitudes súplices vai efetivamente ludibriar Ascilto16 e quase enganar Eumolpo.17

No regresso de Eumolpo e Gitão, que adentram pelo quarto de Encólpio, o menino resgata o namorado à custa de mais um suicídio fingido, desta vez executado por Gitão com auxílio de uma falsa navalha de barbeiro roubada ao criado do poeta, instrumento sem corte, um dos mais lembrados expedientes do Satíricon. Eumolpo, o empregado, ninguém se move, pois, despreocupados, já sabiam da navalha: somente Encólpio é que não percebera o embuste de Gitão, em sua eterna leseira:

Haec locutus mercennario Eumolpi nouaculam rapit, et semel iterumque ceruice percussa ante pedes collabitur nostros. Exclamo ego attonitus, secutusque labentem eodem ferramento ad mortem uiam quaero. Sed neque Giton ulla erat suspicione uulneris laesus, neque ego ullum sentiebam dolorem. Rudis enim nouacula et in hoc retusa, ut pueris discentibus audaciam tonsoris daret, instruxerat thecam. Ideoque nec mercennarius ad raptum ferramentum expauerat, nec Eumolpus interpellauerat mimicam mortem. (Sat. 94.12-15)

Tendo falado isso, apanha a navalha do empregado de Eumolpo e, com a garganta talhada uma e outra vez, desaba aos nossos pés. Um grito eu solto, espantado, e, seguindo a queda do corpo, com aquela mesma ferramenta, busco o caminho da morte. Mas nem estava ferido Gitão, sem um traço de lesão que fosse, nem eu sentia dor alguma. É que compunha o estojo uma navalha grosseira e sem ponta, dessas feitas para dar segurança aos jovens aprendizes de barbeiro. Por isso, nem o empregado se assustara com o roubo da ferramenta, nem Eumolpo falara qualquer coisa para interromper aquela morte que não passava de encenação.

Essas ações não chegam a constituir exatamente tentativas de suicídio, embora a tentativa de Encólpio cortar-se após o desabar encenado do garoto, essa parece ser sinceramente motivada. Contudo, além das falsas mortes que aqui se apontam, vale lembrar que temos também outro auto-corte, fingido, feito com essa mesma a navalha sem fio, da genitália de Gitão, no navio de Licas. E, desligado das questões amorosas, na Cena Trimalchionis, observe-se o funeral encenado de Trimalquião. É um procedimento não estranho ao romance grego que, no romance antigo romano, para além do Satíricon, aparece, por exemplo, em O asno de ouro (Met.1.18.118 e 2.32.219) e em História do rei Apolônio de Tiro (27).20

Resta, ainda, anotar outro procedimento de puro humor: se Petrônio torcera o motivo do paraklausíthyron com a sua invenção do inclusus amator, agora, em nova saída de Eumolpo, para vingar-se das pancadas que levara de um escravo, ele o retorce, pois Encólpio continua inclusus, mas desta vez junto com seu amante, e o terceiro vértice do triângulo, Eumolpo, exclusus, mas sem o amor:

Interim coctores insulariique mulcant exclusum, et alius ueru extis stridentibus plenum in oculos eius intentat, alius furca de carnario rapta statum proeliantis componit. Anus praecipue lippa, sordidissimo praecincta linteo, soleis ligneis imparibus imposita, canem ingentis magnitudinis catena trahit instigatque in Eumolpon. Sed ille candelabro se ab omni periculo uindicabat. Videbamus nos omnia per foramen ualuae, quod paulo ante ansa ostioli rupta laxauerat, fauebamque ego uapulanti. Giton autem non oblitus misericordiae suae reserandum esse ostium succurrendumque periclitanti censebat. Ego durante adhuc iracundia non continui manum, sed caput miserantis stricto acutoque articulo percussi. (Sat. 96.8-97.3)

Entrementes, fora do quarto, os cozinheiros e os inquilinos o espancam. Alguém tenta acertar-lhe os olhos com um espeto cheio de miúdos ainda chiando; um outro sujeito, com um forcado roubado a uma despensa de carnes, põe-se em posição de combate. Uma velha remelenta é a mais obstinada: vestida com um manto imundo, montada sobre tamancos de madeira desiguais, arrasta pela corrente um cachorro enorme e o açula contra Eumolpo. Mas ele, com o seu candelabro, se livrava de todo o perigo. Quanto a nós, víamos tudo pela fresta da porta que pouco antes se ampliara com a quebra do trinco do postigo. O que me interessava era a surra que ele estava levando. Mas na opinião de Gitão – sempre aquela sua compaixão! – era preciso reabrir a porta e socorrer Eumolpo; afinal, ele corria perigo. Na minha raiva não contive a mão e pespeguei-lhe um belo cascudo na cabeça, com compaixão e tudo.

As falsas mortes de Gitão e Encólpio, no entanto, ajudam estabelecer o segundo triângulo amoroso no Satíricon e a organizar sua resistência aos ataques de Ascilto: afastado este, incorporado Eumolpo, as três personagens aceitam uma carona num navio que em breve zarpará. Para onde, duas delas, Encólpio e Gitão não sabem; seu proprietário, esses também ignoram quem seja. Rumo ao desconhecido, Encólpio e Gitão partem para o porto: eles reencontrarão velhos e temidos conhecidos, travarão uma batalha no convés, descobrirão que sonhos e superstições têm valor: Licas e Trifena sonharam o mesmo sonho inspirado pela divindade? Mas seus desafetos estavam mesmo a bordo, clandestinos! Cortar cabelo numa embarcação traz mau agouro capaz de arruinar uma embarcação? Mas o navio, de fato, afundará! Eumolpo predissera que somente um naufrágio os colocaria a salvo dos perigos de Licas e Trifena? Mas é o naufrágio que, enfim, os livrará! E Encólpio compadece-se – retoricamente? – do homem afogado cujo corpo que ele encontra à praia. E vê-se então como se constrói a impiedosa ironia petroniana e o morto logo se revela: era o tão temido Licas!21 É uma ironia que desafia e escarnece do realismo. Lidando com o sobrenatural de uma forma zombeteira, é justamente o efeito do sobrenatural que, ao fim e ao cabo, efetivamente se dá: é o mesmo procedimento narrativo que se encontra na Cena Trimalchionis, quando um galo canta nas imediações da casa do supersticioso Trimalquião e este, incomodado pelo suposto azar que esse canto acarretaria (irromperia um incêndio ali por perto), manda matar o animal, numa sequência de eventos que Petrônio liga ironicamente ao final do episódio do banquete, que se encerra com uma invasão de bombeiros à mansão, certos de que, pela balbúrdia que ali grassava, estaria acontecendo mesmo um incêndio:

Haec dicente eo gallus gallinaceus cantauit. Qua uoce confusus Trimalchio uinum sub mensa iussit effundi lucernamque etiam mero spargi. Immo anulum traiecit in dexteram manum et: “Non sine causa, inquit, hic bucinus signum dedit; nam aut incendium oportet fiat, aut aliquis in uicinia animam abiciat. Longe a nobis! Itaque quisquis hunc indicem attulerit, corollarium accipiet.” Dicto citius de uicinia gallus allatus est, quem Trimalchio iussit ut aeno coctus fieret. Laceratus igitur ab illo doctissimo coco, qui paulo ante de porco aues piscesque fecerat, in caccabum est coniectus. Dumque Daedalus potionem feruentissimam haurit, Fortunata mola buxea piper triuit. (Sat. 74.1-5)

Bem no momento em que dizia essas coisas, um galo cantou. Perturbado com o som emitido pela ave, Trimalquião mandou que jogassem vinho sob a mesa e que espargissem a lâmpada com vinho puro. Depois, ele passou o anel para a mão direita e disse:

– Não foi à toa que essa trombeta aí deu alarma: ou está para acontecer um incêndio ou alguém nas vizinhanças está nas últimas. Longe de nós! Quem trouxer esse agourento, vai ganhar um prêmio.

Nem bem se disse isso, um galo foi rapidamente trazido das proximidades. Trimalquião mandou que o cozinhassem num caldeirão. Picado por aquele habilíssimo cozinheiro que pouco antes modelara aves e peixes com carne de porco, o galo foi atirado num caldeirão. E enquanto Dédalo bebe aquele seu brinde escaldante, Fortunata moía pimenta num pilão de buxo.

No trajeto do navio, sabe-se que as três personagens, que haviam embarcado às escondidas, são descobertas e levadas à presença de Licas, o proprietário do navio. Por injunções da narrativa, trava-se uma verdadeira batalha no convés entre aqueles que eram favoráveis ao perdão dos clandestinos e aqueles que não aceitavam tal condição. Encerrado o conflito, Eumolpo, a fim de acalmar os ânimos, conta uma curiosa história, que consiste no conto de “A matrona de Éfeso”.

Literariamente, esse conto tem muitos pontos de confluência com “O garoto de Pérgamo”, narrado logo quando Eumolpo e Encólpio se conhecem, ainda na pinacoteca (Sat. 83.1). A fim de obter deles uma interpretação mais precisa – se evidentemente ela se justificar – interessa apresentar os dois contos em conjunto e na ordem em que eles comparecem à narrativa do Satíricon.

Em “O garoto de Pérgamo”, Eumolpo conta que, tendo se hospedado na casa da família do menino que dá nome ao conto, apresenta-se fingidamente como um paladino dos bons costumes e logo se revela ao leitor, e também ao menino, exatamente o oposto disso: ele era um praedator corporis (Sat. 85.3), neste contexto, “um sedutor de crianças” ou, especificamente, “de meninos”. Esse engano da família já aparece como um motivo gerador do riso: Eumolpo se apresenta, pois, como um falso preceptor que, às escondidas, aos poucos (mas ativamente) vai ganhando os favores sexuais do garoto à custa de presentes e com a anuência discreta dele, pois, à semelhança, por exemplo, do teatro plautino, os velhos severos (em Petrônio: os pais, ingênuos) são enganados pelos jovens amantes (em Petrônio: Eumolpo e o garoto). Contudo, o inesperado mesmo dá-se com efeitos cômicos ainda mais intensos, observando-se que a relação entre o adulto e o adolescente vinha num crescendo (com presentes e sexo) até um ponto máximo, quando presentes ainda maiores (para corresponder à escalada das investidas sexuais) já não eram possíveis sem que os pais percebessem a marosca:

At ille plane iratus nihil aliud dicebat nisi hoc:

“Aut dormi, aut ego iam dicam patri”. (Sat. 87.2-3)

Mas ele nitidamente zangado não dizia outra coisa que não fosse o seguinte:

– Durma, ou vou já dizer a meu pai.

Cessaria o jogo da sedução que se desencadeara com a iniciativa do adulto se o foco sexual, então, não se transferisse do desejo do adulto para o desejo do menino, que agora não se fixava mais nos presentes, mas no sexo mesmo, sem subterfúgios, até um novo ápice, final na linha do conto, quando, extenuado, o adulto não podia mais corresponder fisicamente aos impulsos juvenis – Aut dormi, aut ego iam dicam patri, diz Eumolpo ao garoto (e gaiatamente ao leitor) – numa burlesca resultante invertida tão ao gosto do que Boccaccio (2013, 7ª jornada, 2ª novela), na Idade Média, encontrará junto a O asno de ouro (22.3.4: “O amante dentro do vaso”), de Apuleio.

Esse procedimento narrativo não é único no Satíricon, pois ocorrerá algo semelhante no conto de “A matrona de Éfeso”. Tanto “O garoto de Pérgamo” quanto “A matrona de Éfeso”, são apontados por Harrison (2008, p. 6) como

(…) duas possíveis alusões implícitas à tradição de contos milesianos, que ocorrem muito apropriadamente nos dois obscenos e divertidos contos inseridos narrados pelo poeta Eumolpo, os dois contos cujo sabor, concordam os pesquisadores, têm um sabor particularmente milesiano.22

Ambos os contos obedecem a um mesmo fluxo narrativo, pois, considerando a expressão praedator corporis, de Petrônio, e chamando, então, “presa” tanto a matrona quanto o menino, e “predador” o miles nec infacundus e Eumolpo, observa-se em comum que a presa, no início supostamente virtuosa,23 passando por um processo de sedução por intermédio de um discurso persuasivo,24 no final, transforma-se ela própria num decidido predador,25 e supostamente de caráter velhaco:

Etapa (i) da narrativa: A presa de aparência imaculada

O garoto de Pérgamo

Quotiescunque enim in conuiuio de usu formosorum mentio facta est, tam uehementer excandui, tam seuera tristitia uiolari aures meas obsceno sermone nolui, ut me mater praecipue tanquam unum ex philosophis intueretur.3 Iam ego coeperam ephebum in gymnasium deducere, ego studia eius ordinare, ego docere ac praecipere, ne quis praedator corporis admitteretur in domum. (Sat. 85.2-3)

Então, durante o jantar, todas as vezes que se mencionava algo a respeito de casos com rapazes bonitos, eu me inflamava de uma forma tão veemente, eu me negava a violentar meus ouvidos com palavras obscenas mostrando uma tristeza tão profunda, que principalmente a mãe do moço via-me como se fosse eu um dos antigos filósofos. Logo, a fim de que nenhum sedutor se infiltrasse em casa, eu já havia passado a levar o adolescente ao ginásio, a organizar os estudos dele, a ensiná-lo e orientá-lo.

A matrona de Éfeso

“Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut uicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui euocaret. (Sat. 111.1)

Havia em Éfeso uma certa mulher de tão notável castidade que chegava a atrair mulheres de cidades vizinhas para admirá-la.

Etapa (ii) da narrativa: A revelação do desejo

O garoto de Pérgamo

Itaque timidissimo murmure uotum feci et: “Domina, inquam, Venus, si ego hunc puerum basiauero, ita ut ille non sentiat, cras illi par columbarum donabo”. Audito uoluptatis pretio puer stertere coepit. Itaque aggressus simulantem aliquot basiolis inuasi. Contentus hoc principio bene mane surrexi electumque par columbarum attuli expectanti, ac me uoto exsolui (Sat. 85.5-6)

Então, murmurando bem baixinho, fiz uma promessa:

– Ó Senhora Vênus – disse eu – se eu beijar este menino sem que ele perceba, amanhã eu lhe darei um casal de pombos. Bastou ouvir o preço dos meus desejos, o menino começou a roncar. Então, aproximei-me do manhoso e o enchi de beijocas.

A matrona de Éfeso

Nec deformis aut infacundus iuuenis castae uidebatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente:

‘Placitone etiam pugnabis amori?

[Nec uenit in mentem quorum consederis aruis?]’

Quid diutius moror? Ne hanc quidem partem corporis mulier abstinuit, uictorque miles utrumque persuasit. (Sat. 112.2)

Nem feio nem desprovido de belas palavras parecia o jovem à casta viúva, enquanto a criada, conciliadora, dizia repetidamente:

E ora queres opor-te a um desejo tão grato?

Não consideras a terra que vieste bater de pouquinho?

Bem, por que me demorar mais? Nem sequer naquela parte do corpo a mulher guardou abstinência, e, vencedor, o soldado a persuadiu às duas coisas.

Etapa (iii) da narrativa: O recrudescimento do desejo

O garoto de Pérgamo

“Aut dormi, aut ego iam patri dicam.” (Sat. 86.9)

– Ou você dorme, ou eu direi já a seu pai.

A matrona de Éfeso

Mulier non minus misericors quam pudica: “Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera spectem. Malo mortuum impendere quam uiuum occidere.”

Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui tolli atque illi, quae uacabat, cruci affigi. Vsus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus isset in crucem. (Sat. 112.7-8)

Respondeu a mulher, não menos generosa que pudica:

– Não permitam os deuses que ao mesmo tempo eu assista aos funerais dos meus dois homens mais queridos. Prefiro pendurar o morto a matar o vivo.

De acordo com essa ideia, manda tirar o corpo de seu marido do caixão e prendê-lo na cruz, agora vazia. O soldado aproveitou a engenhosidade da espertíssima mulher e, no dia seguinte, o povo ficou admirado de como o morto tinha ido parar na cruz.

De acordo com essa ideia, manda tirar o corpo de seu marido do caixão e prendê-lo na cruz, agora vazia. O soldado aproveitou a engenhosidade da espertíssima mulher e, no dia seguinte, o povo ficou admirado de como o morto tinha ido parar na cruz.

No que diz respeito ao conto “A matrona de Éfeso”, destaca-se que, no final, atribui-se completa infidelidade à personagem da Matrona, da qual não se esperava o comportamento que tivera, da mesma forma que do garoto do conto “O garoto de Pérgamo”, nascido de boa família, submetido a grandes preocupações dos pais quanto aos costumes e educação, não se esperava viesse ele a ter desejos sexuais aparentemente tão impróprios segundo os critérios da própria família.

Quanto à matrona, ela tem por característica ser fiel, mas também ser matrona (Sat. 111.1). Se o conto se funda na fidelidade imperturbável, a superfície da leitura aponta para um final condenatório em que essa personagem atalhara seus fundamentos, apresentados no exórdio da narrativa. O motivo gerador do riso era, como sempre, o do marido enganado, especialmente ali, na cripta, local tão impróprio para manterem relações sexuais a Matrona e o Miles. E, do ponto de vista da traição, transfere-se ao conto um humor ainda mais intenso, dando-se este com a fixação do corpo do marido morto à cruz, pois, ainda na leitura de superfície, a Matrona, além do mais, teria vilipendiado o próprio cadáver do cônjuge, não contente por somente substituir o marido na esfera sexual e afetiva pelo facundo soldado. Dupla traição, portanto.

O caso, todavia, é contado por Eumolpo e é recebido ou entendido por Encólpio na seguinte perspectiva:

Ceterum Eumolpos, et periclitantium aduocatus et praesentis concordiae auctor, ne sileret sine fabulis hilaritas, multa in muliebrem leuitatem coepit iactare: quam facile adamarent, quam cito etiam filiorum obliuiscerentur, nullamque esse feminam tam pudicam, quae non peregrina libidine usque ad furorem auerteretur. (Sat. 110.6-7)

No entanto, Eumolpo, nosso advogado na hora do perigo e responsável pelo atual entendimento, para que a alegria não silenciasse por falta de histórias, começou a contar desdenhosamente uma série de casos contra a inconstância das mulheres: como as mulheres facilmente se enamoram, como se esquecem rapidamente até mesmo dos filhos… E mulher alguma existia tão virtuosa que uma insólita paixão não a levasse à loucura.

É preciso, porém, considerar que o conto é também retoricamente encaminhado ao leitor dessa maneira, pois esse comentário do narrador Encólpio dá-se antes de o poeta começar sua narração e pode ter o efeito de sugerir previamente uma determinada leitura que, no entanto, não será necessariamente a única ou a correta ou a mais adequada (se assim se pode colocar). Observe-se que, ao leitor, não é possível conhecer a origem da leitura condenatória, isto é, se é fruto do entendimento dele próprio, de acordo com a visão de mundo de cada leitor mesmo, se ela parte de Eumolpo, pois a narração propriamente dita dá-se em discurso direto, sic orsus est (Sat. 110.8), e, então a interpretação seria livre, ou se ela parte de Encólpio, pois em seu encaminhamento ele emprega os verbos no subjuntivo (adamarent, obliuiscerentur, auerteretur), o que resultaria na ambiguidade de aquele discurso representar a opinião do narrador ou consistir num discurso indireto livre, ou ainda, como vai comentado infra, haveria outras influências nos modos de ler esse conto (como a recepção dos marinheiros, de Licas, de Trifena).

De resto, sabe-se que a expressão sic orsus est26 é recortada à própria Eneida (2.2). A inserção de trechos do poema nacional romano num texto de um gênero com tão baixo prestígio como o de um romance antigo é significativa em relação à intertextualidade que se estabelecerá com o episódio dos amores entre a rainha Dido e o herói Eneias. Não se desconhece, também, o emprego, levado a cabo por Petrônio, de recortes textuais da Eneida relativos a esse episódio, que consistem numa transposição intertextual do discurso da princesa Ana para a personagem da escrava da Matrona, ambas personagens que teriam sido, pelo menos parcialmente, vetores da confirmação do amor e do desejo em cada uma das mulheres protagonistas. Na Eneida, para a rainha Dido, viúva de Siqueu, acolher Eneias em seu coração e em seu leito não importaria “aos sepulcros e às cinzas dos manes dos mortos” (Eneida 4.34).27 Inclusive, não é a mulher que rompe o tácito compromisso que se estabelecera com a relação amorosa mantida durante a tempestuosa noite na caverna. E o mesmo discurso para que a esposa viúva deixe de lado a insana devoção pelo marido morto vale para as duas personagens, a épica rainha e a romanesca matrona, aquela persuadida pela princesa Ana, esta pela fidelíssima escrava que a acompanhava.

Também é flutuante a leitura das próprias personagens do Satíricon que funcionam como audiência para a narração de Eumolpo do convés do navio. Os marinheiros, convencional ou presumidamente homens rudes, parecem entender o conto como zombaria à suposta falível fidelidade feminina, 1Risu excepere fabulamnautae (Sat. 113.1) “1 Foi com riso que os marinheiros receberam essa história”. Quanto a Licas e Trifena, Beck (1979, p. 246) é da opinião de que “Trifena experimenta vergonha ante a história da viúva, e Licas, ultrage moral”.28 De fato, o entendimento de Trifena não parece caminhar no sentido do desagrado, mas da autocrítica, pois o fato de haver enrubescido não pouco e ter aconchegado seu rosto – como que o escondendo – ao ombro de Gitão, sugere que pensasse em si mesma e que julgasse comungar da mesma infidelidade atribuída à Matrona:

Risu excepere fabulam nautae, [et] erubescente non mediocriter Tryphaena uultumque suum super ceruicem Gitonis amabiliter ponente. (Sat. 113.1)

Foi com riso que os marinheiros receberam essa história, enquanto Trifena, corando mais que o normal, apoiou ternamente seu rosto sobre o ombro de Gitão.

Algo nessa direção – não exatamente de desagrado em relação ao conto, mas de reflexão, ainda que de muita contrariedade – pode-se dizer em relação a Licas, o qual, ali presente, replicava que daria àquela história um final diverso – mais moralizado, segundo desconfia o narrador Encólpio. A respeito da história narrada por Eumolpo, contudo, Licas não avança para além de uma leitura superficial, sem conseguir entender diferentemente a dinâmica completa da narrativa e é ainda bem mais severo com a Matrona: deveria ela ser condenada à morte. A explicação para tal severidade só pode ser ouvida – de acordo com a reconstrução narrativa daquela situação – da boca do narrador Encólpio, segundo o qual, ao que tudo indicava, Licas passara por uma experiência semelhante (de uma suposta traição?) numa das partes hoje perdidas do Satíricon:

At non Lichas risit, sed iratum commouens caput: “Si iustus, inquit, imperator fuisset, debuit patris familiae corpus in monumentum referre, mulierem affigere cruci”. Non dubie redierat in animum Hedyle expilatumque libidinosa migratione nauigium.

Mas não riu Licas que, meneando a cabeça, disse nervoso:

– Se o governador tivesse sido justo, era seu dever ter devolvido o corpo do marido à cripta e crucificado a mulher.

Sem dúvida, Hedile voltara-lhe à cabeça, e o navio dele, pilhado quando passara por ele aquele bando de devassos.

Toda a audiência do convés concordava, pois, com a perspectiva condenatória da narração de Eumolpo, a acusar as mulheres de serem caracteristicamente infiéis. Nesse sentido, o motivo gerador de riso no conto era o marido traído, pois o senso comum não duvida de que la dona è mobile e de que todas as mulheres são iguais. Contudo, embora outras leituras não se coloquem à prova no âmbito da narrativa, é lícito que reflitamos sobre a situação da Matrona. Segundo Moura (2009, p. 54), é bem verdade que

A castidade enunciada por esses romances antigos [os romances gregos de amor e aventura] é, em Petrónio, usurpada pelo hedonismo e pela transgressão sexual, comportamentos a que nem uma viúva chorosa – a matrona de Éfeso – consegue resistir face ao clamor da vida.

Em que a Matrona teria violado sua castidade nesse episódio, por mais que se discuta a extensão do período de viuvez que ela deveria guardar?29 E não nos distanciamos assim do texto petroniano, pois nele as questões humanas são, em geral, abordadas pelo Satíricon sem um julgamento já predefinido. Abre-se, pois, um espaço suficientemente amplo para se entender que a entrega do corpo do marido à cruz teria sido a única saída para salvar a vida do Miles, o homem pelo qual a Matrona voltara a se apaixonar, o que a restituíra à vida. Esta outra leitura reelabora o juízo obtido a partir da leitura superficial, sugerindo-se que, a rigor, a Matrona seja uma mulher de fibra, digna da maior confiança, pois ela não somente não trai o marido – porque no tempo dos acontecimentos do conto ela já era uma viúva – como também salvaguarda (como procedera com o ex-marido até mesmo depois da morte, conduta sua característica) seu novo compromisso, estabelecido em condições semelhantes ou afins em que o fizera a rainha Dido. Nascera a paixão dessas mulheres a partir da fala dos heróis. A característica é a mesma, relativa ao verbo for, faris, fari, fatus sum (em português, “falar”): de um lado apresenta-se um soldado nec infacundus (Sat. 112.2: não desprovido de belas palavras)30 e, de outro, um herói cuja dor da perda da pátria era renovada justamente por dizê-la,

infandum, regina, iubes renouare dolorem (Eneida, 3.3)

Mandas, Rainha, contar-te o sofrer indizível dos nossos (Tradução de Carlos Alberto Nunes, 1983)

Nascera a paixão – e desmedida, a julgar pelas decisões extremadas de ambas as mulheres que se veem no final – na qual as duas mulheres, com todo o seu direito, investem. E se se considera, como se discutirá abaixo, que é de Eumolpo a autoria (ficcional) desse conto, então uma possível interpretação condenatória poderia ser a desse autor ficcional, enquanto o autor implícito (segundo o conceito de Booth, 1983) teria selecionado tal conto para figurar no Satíricon como gerador de uma discussão – que é possível – acerca de julgar de maneira automática a fidelidade e a infidelidade de uma pessoa baseando-se em aparências e no senso comum, sem maiores e melhores reflexões.

Assim, nessa comparação com a nobilíssima rainha Dido, bela personagem da Eneida, a Matrona figurará como a única personagem em todo o Satíricon que pode despontar com dignidade, ainda que obnubilada pelo tecido de uma narrativa risível.

Quanto ao mais, o que ainda resta discutir refere-se a assuntos de valorações que Petrônio dá aos textos e aos discursos que acolhe no Satíricon. Poder-se-ia chamar tudo isso de intencionalidades de Petrônio, às quais a personagem do poeta Eumolpo, chave em questões de amor, humor, discurso e literatura, está singularmente ligada. Beck (1979, p. 249) com muita precisão, já apontava que “Esta, sugiro, foi precisamente a intenção de Petrônio: mostrar que, como um contador de histórias, Eumolpo tem sucesso exatamente nos aspectos em que ele falha como poeta”.31 Beck argumenta que a intenção de Petrônio é mostrar que a personagem é bem-sucedida como contador de histórias e mal-sucedida como poeta épico. Isso é verdade, mas, também, dessas conclusões a que chegou o crítico moderno, decorrem implicações ainda mais importantes, pois é de crer que Petrônio tenha obtido outro efeito, literário, chegando à criação, no sentido apontado por Beck, de um tal poetastro como Eumolpo. Dentre muitas outras relações, por meio de índices metafóricos relativos à prática da literatura, revela-se este uma personagem de duas faces literárias vinculadas à história da evolução dos gêneros e do romance. De um lado, ficcionalmente a personagem é mal-sucedida quando compõe e recita seus versos épicos, pois é sempre recebida e rechaçada a pedradas por eventuais plateias, seja na pinacoteca

Ex is, qui in porticibus spatiabantur, lapides in Eumolpum recitantem miserunt. At ille, qui plausum ingenii sui nouerat, operuit caput extraque templum profugit. (Sat. 90.1)

Quem passava pelos pórticos atirou pedras em Eumolpo enquanto ele recitava. Mas ele, que já conhecia a homenagem ao seu talento, cobriu a cabeça e fugiu do templo.

seja nos banhos

Nam et dum lauor, ait, paene uapulaui, quia conatus sum circa solium sedentibus carmen recitare; et postquam de balneo tanquam de theatro eiectus sum, circuire omnes angulos coepi et clara uoce Encolpion clamitare. (Sat. 92.6)

– Na verdade, enquanto me lavava – disse ele – quase apanhei, porque tentei recitar um poema para os que estavam sentados ali ao redor da banheira. Depois que fui atirado dos banhos como tinha sido do teatro, fiquei circulando por todos os cantos, e chamando aos gritos por Encólpio.

seja na pousada

– Hoc est, inquam, quod promiseras, ne quem hodie uersum faceres? Per fidem, saltem nobis parce, qui te nunquam lapidauimus. Nam si aliquis ex is, qui in eodem synoecio potant, nomen poetae olfecerit, totam concitabit uiciniam et nos omnes sub eadem causa obruet. Miserere et aut pinacothecam aut balneum cogita. (Sat. 93.3)

– É isso – disse eu – o que havia prometido, que hoje não faria mais nenhum verso? E a tua palavra? Poupe-nos, pelo menos a nós, que nunca te apedrejamos. Na verdade, se algum dos que estão bebendo nesta bodega sentir o cheiro da palavra poeta, juntará toda a vizinhança e acabará conosco pelo mesmo pretexto. Tenha dó da gente, lembre-se da pinacoteca ou dos banhos…

Também, ele, que tanto fala da categoria do poeta,

Ego, inquit, poeta sum et, ut spero, non humillimi spiritus (Sat. 83.8)

– Eu sou poeta e acho que não dos piores (Sat. 83.8)

revela-se ele próprio um poeta que faz versos de menor valor, pois parece fazê-los sob encomenda, acresce que sobre uma temática de baixa estatura e uma plateia de bem pouco prestígio. É o que se observa com Bargates,32 o gerente de uma das pousadas referidas no texto, que solicitava ao poeta que lhe fizesse versos contra uma amante saliente:

(…) cum procurator insulae Bargates a cena excitatus a duobus lecticariis in mediam rixam perfertur; nam erat etiam pedibus aeger. 5 Is ut rabiosa barbaraque uoce in ebrios fugitiuosque diu perorauit, respiciens ad Eumolpon:

“O poetarum, inquit, disertissime, tu eras? Et non discedunt ocius nequissimi serui manusque continent a rixa?

[BARGATES PROCVRATOR AD EVMOLPVM]

Contubernalis mea mihi fastum facit. Ita, si me amas, maledic illam uersibus, ut habeat pudorem”. (Sat. 96.4-7)

(…) eis quando Bargates, o zelador do prédio, arrancado de seu jantar e carregado por dois serventes, porque tinha os pés doentes, foi parar no meio da disputa. Ele, depois de perorar com a voz cheia de raiva e balbuciante contra os bêbados e os fugitivos, olhando para Eumolpo disse:

– Ó, príncipe dos poetas, era você? E como é que esses escravos desprezíveis não se afastam da briga o mais rapidamente que podem nem contêm a mão?

[BARGATES, O ZELADOR, PARA EUMOLPO]

– A minha amiga anda me esnobando. Pela nossa amizade, faz uns versos contra ela, para que tome vergonha.

Além disso, significativa e ironicamente, se Eumolpo deveria compor versos de boa qualidade para ser bem recebido como poeta épico (e sabemos que não é o que acontece), interessa observar que justamente um admirador33 de sua poesia apareça caracterizado como um indivíduo de “pés doentes”.

Contudo, de outra parte, em polo oposto, quando Eumolpo faz-se um contador de histórias – as quais se narram em prosa e sem um conteúdo dir-se-ia dos mais elevados –, ele sempre tem a seu dispor excelente recepção de uma plateia de fato interessada no que tem a dizer. Comprovam-no as passagens em que conta as histórias de “O Garoto de Pérgamo” e de “A matrona de Éfeso”.

Quanto a “O garoto de Pérgamo”, sua plateia consiste no próprio Encólpio, o qual mostra ter gostado da história (embora sua opinião possa não ser das mais abalizadas, dada a lentidão de raciocínio que lhe é característica, além de a história poder revelar-lhe detalhes que não seria de seu interesse):

Erectus his sermonibus consulere prudentiorem coepi … aetates tabularum et quaedam argumenta mihi obscura simulque causam desidiae praesentis excutere, cum pulcherrimae artes perissent, inter quas pictura ne minimum sui uestigium reliquisset. (Sat. 88.1)

Fiquei animado com essas palavras e pus-me a conversar com aquele homem que se mostrava muito entendido. Consultei-o a respeito de quando aqueles quadros haviam sido pintados e de uns outros assuntos pouco claros para mim.

Quanto a “A matrona de Éfeso”, como se verá mais abaixo, a plateia de Eumolpo, formada majoritariamente pelos marinheiros do navio de Licas, demonstra ter gostado da história. Trifena e Licas também estão entre os que o escutam, mas não demonstram exatamente se gostaram ou não, embora não cheguem a aborrecê-la.

Considerando-se não só que Schmeling (2011, p. XLVII) entende que a baixa qualidade de poemas como o Troiae Halosis (Sat. 89) e Bellum ciuile (Sat. 118.6) mancha a imagem de escritor em Eumolpo – nome significativamente atribuído à personagem a partir de seu significado “o bom cantor”34 – mas também que em “O garoto de Pérgamo” e em “A matrona de Éfeso” encontra-se um estilo mais elaborado obtido a partir do sermo urbanus, que o recomendaria por uma brilhante narrativa em prosa, e ainda que – importante – a produção literária aqui em tela (os dois contos e os dois poemas) constitui ficcionalização da literatura de um autor chamado “Eumolpo”, segundo argumenta Beck (1979), vê-se que, de uma forma disfarçada, figurada, com recurso metaliterário às inaptidões e aos talentos de Eumolpo (muito bem explorados por Beck, 1979), Petrônio cria uma alegoria que aponta para soluções pós-antigas, naqueles tempos da invenção do romance, de que era necessário investir mais na narrativa de ficção em prosa, um caminho novo para contar histórias, sem, contudo, competir com as formas mais tradicionais de a literatura relatar aventuras, senão aliando-se a elas, gramatofagicamente.35 É como confirma Petrônio, então por intermédio de Encólpio, no célebre discurso ao próprio pênis, quando trabalha com a novidade de um texto simples, em que o distanciamento épico já não é essencial, e o que é altamente literário, homérico, virgiliano troca-se pelo que está à mão, o que é doméstico, o que pode interessar a toda gente:

Quid me constricta spectatis fronte Catones,

damnatisque nouae simplicitatis opus? (Sat. 132.15)

Por que me olham com o cenho franzido, ó Catões,

e condenam uma obra dotada de uma simplicidade inaudita?

Enfim, em todas as considerações feitas acima, vê-se a habilidade de um escritor ímpar na literatura ocidental, o qual valida todos os detalhes de seu texto cruzando-os entre si nas frentes em que trabalha, a fim de manter seu texto muito bem engendrado segundo o que lhe oferece a literatura. Para Petrônio, quem estava correto mesmo era Trimalquião, com quem aprendeu o lema: nihil sine ratione facio.

Referências

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Notas

1 O romance antigo romano de cunho histórico (ou pseudo-histórico) consiste nas crônicas de Troia, de Díctis Cretense e Dares Frígio, e na Coleção de Alexandre Magno.
2 Por exemplo, examinem-se a narrativas da aula de retórica (Sat. 1.1), do vidro inquebrável (Sat. 51.1), do lobisomem (Sat. 61.6), das strigae (Sat. 63.3: mulieres plussciae), o assalto do legionário (Sat. 82.2). O conto “A matrona de Éfeso” (Sat. 111.1 a 112.8) e o caso de relacionamento entre Encólpio e Circe em Crotona (Sat. 126.1) têm uma aventura de cunho amoroso, mas não homoafetivo; e mesmo a narrativa da Cena Trimalchionis (Sat. 26.7) e das aventuras de Crotona (Sat. 116.1), considerando o conjunto de ambas, embora cada uma tenha laivos de homoerotismo, não se caracterizam como tal.
3 Considerando a opção de Petrônio por narrar em prosa (talvez se devesse dizer mais precisamente em prosimetrum), também esse procedimento sugere a impressão de que o Satíricon investe mais (ou apenas?) no romance grego como fonte, mas a verdade é que, cita-se com frequência, basta ter ligeiro conhecimento de algumas obras da literatura antiga para reconhecer diversas fontes com que trabalha o Satíricon, dentre as quais encontram-se, a título de exemplo, a épica de Homero, Hesíodo e Virgílio; a lírica de Semônides de Amorgos e de Ovídio; a tragédia grega; a comédia de Menandro e Plauto; as obras filosóficas de Sêneca.
4 A tradução dos trechos do Satíricon é de Cláudio Aquati (Petrônio, 2021).
5 Depois, já ao lado de Eumolpo, Encólpio será enganado por Gitão, que finge cortar a própria garganta e, ato contínuo, tenta suicidar-se da mesma maneira, fracassada (Sat. 94.12-14). Era cega a navalha empregada.
6 Inadvertidamente, ao desconfiar de que estava à mercê de seu inimigo Licas, Encólpio chama pater a Eumolpo:

Vterque nostrum tam inexpectato ictus sono amiserat sanguinem. Ego praecipue quasi somnio quodam turbulento circumactus diu uocem collegi, tremebundisque manibus Eumolpi iam in soporem labentis laciniam duxi, et: “Per fidem, inquam, pater, cuius haec nauis est, aut quos uehat, dicere potes?” (Sat. 100.5)

Foi um choque para ambos: tão inesperado som nos pusera exangues. Eu, principalmente, durante muito tempo não soltei uma palavra, como se aturdido por um sonho turbulento. Com as mãos tremendo, puxei Eumolpo pela roupa. Ele já tinha caído no sono, mas eu lhe disse:

– Pelos deuses, meu pai! De quem é este navio? Ou: quem é que ele está levando, você pode nos dizer?

7 “E. [Encólpio] will soon consider Eumolpus an authority and interpreter, because by his story of the Pergamene youth he shows how to seduce young boys, a talent E. admires in the pictures Eumolpus describes. As soon as Eumolpus appears, E. regards him as a kind of model.”
8 Quando, a respeito do Satíricon, didaticamente se comenta ser uma obra em que se relatam “as aventuras de jovens malandros pelo sul da Itália” e que “os protagonistas do Satíricon têm algo a ver com a literatura picaresca moderna”, imagina-se a princípio um Encólpio astuto, inteligente. É um engano, pois Encólpio tem uma percepção sempre muito errônea a respeito das pessoas com quem se relaciona e das situações em que se encontra. Frequentemente é chamado de imbecil:

“O, inquit, hominem acutum atque urbanitatis uernaculae fontem! (Sat. 24.2: Quartila, ironicamente.)

– Ó, mas que homem inteligente e fonte da esperteza nacional!

At ille: “Plane etiam hoc seruus tuus indicare potest; non enim aenigma est, sed res aperta.” (Sat. 41.3: Hermerote)

Mas ele: – Não tem a menor dúvida de que até mesmo o teu escravo pode revelar isso; pois não é nenhum enigma, mas uma coisa sem mistérios.

“Contine te, inquit, homo stultissime. Habinnas seuir est” (Sat. 65.5: Agamêmnon: é reação a um erro de avaliação de Encólpio, quando vira Habinas pela primeira vez e julgara ser uma autoridade que comparecia ao banquete de Trimalquião)

– Fica no teu lugar, ó seu grande estúpido! É Habinas, o séviro.

Há muitos outros erros de avaliação. Por exemplo, ele julga divina a velha que o leva para o bordel:

– Rogo – inquam – mater, numquid scis ubi ego habitem?

Delectata est illa urbanitate tam stulta et:

– Quidni sciam? – inquit, consurrexitque et coepit me praecedere.

Diuinam ego putabam et…

subinde ut in locum secretiorem uenimus, centonem anus urbana reiecit et:

– Hic – inquit – debes habitare. (Sat. 7.1-2)

– Por favor, tia, por acaso sabe onde eu moro?

Divertida com uma brincadeira tão idiota, ela disse:

– Mas é claro que eu sei! – e, erguendo-se, pôs-se a me guiar.

Uma divindade é o que eu acreditava o que era ela, e…

Logo depois, quando chegamos a um local bastante retirado, a velha, gentil, afastou uma cortina e disse:

– É aqui que você deve morar.

Quando se sente ameaçado por Quartila, erra na avaliação dos riscos que ela apresentava e na capacidade de resistência que ele e seus companheiros poderiam oferecer:

Vt haec dixit Quartilla, Ascyltos quidem paulisper obstupuit, ego autem frigidior hieme Gallica factus nullum potui uerbum emittere. Sed ne quid tristius expectarem, comitatus faciebat. Tres enim erant mulierculae, si quid uellent conari, infirmissimae, scilicet contra nos, <quibus> si nihil aliud, uirilis sexus esset. (Sat. 19.3-4)

Assim que Quartila disse essas coisas, Ascilto ficou um instante estupefato; de minha parte, mais gelado que o inverno das Gálias, não pude articular palavra. No entanto, eu não esperava que sucedesse uma desventura maior, nosso grupo assegurava isso. Afinal, eram três pequenas mulheres, se quisessem tentar alguma coisa. Naturalmente, elas eram fraquíssimas contra nós que, mais não fôssemos, éramos do sexo viril.

E, por fim, para piorar essa situação de indigência intelectiva, a estultícia de Encólpio alia-se à sua covardia: ele é incapaz de tomar decisões que se apresentem contra quer que seja (embora em Gitão ele costume aplicar bofetadas e cascudos: Sat. 79.11; 96.3), pleno, caracteristicamente, de indulgências, ressalvas, atenuações:

“– Molestum est quod puer hospiti placet. Quid autem? Non commune est, quod natura optimum fecit? Sol omnibus lucet. Luna innumerabilibus comitata sideribus etiam feras ducit ad pabulum. Quid aquis dici formosius potest? In publico tamen manant. Solus ergo amor furtum potius quam praemium erit? Immo uero nolo habere bona, nisi quibus populus inuiderit. Vnus, et senex, non erit grauis; etiam cum uoluerit aliquid sumere, opus anhelitu prodet”. (Sat. 100.1)

“– Que droga! Eumolpo de olho em Gitão. Mas e daí? Não é de todo mundo o que a natureza fez de melhor? O sol brilha para todos. A lua, com sua comitiva de um sem-número de astros, leva também as feras ao pasto. E as águas? Alguém pode dizer que exista algo mais belo que elas? E, no entanto, elas brotam para todos. Só o amor, então, será antes um furto que um prêmio? No fundo, no fundo, não quero possuir bens a não ser aqueles dos quais a gente toda tenha inveja. Um só – e velho – não será um peso; mesmo que ele queira aproveitar alguma coisa, será tarefa acima de seu fôlego”.

9 Schmeling (2011, p. 541) discute diversas possibilidades de entendimento para o trecho, apontando, dentre outros fatores, que pesquisadores leem Aphrodisiaca sacra; que entendem a cena como um exemplo de uma prática de sexo anal (discutível, contudo, se Eumolpo poderia ter-se relacionado com o irmão da menina, que ali também estava presente). Também aponta para uma leitura de Costas Panayotakis (1994) – pygesiaca sacra –, que entende estar o trecho literariamente ligado à expressão teatral do mimo. Por fim, nesse comentário, escreve que não é possível determinar a natureza da relação sexual que se pratica nessa passagem, pelo menos não se se consideram conceitos que partam de uma expressão como “Afrodite”.
10 Dúvidas pairam sobre esse Licurgo aqui mencionado. Pode ser referência àquele Licurgo, rico proprietário, suposta personagem do Satíricon, cuja uilla fora roubada por Encólpio numa parte perdida do Satíricon (segundo se menciona em 117.3: Lycurgi uilla), oportunidade em que ele poderia ter obtido o manto forrado de moedas (Sat. 12.2). Mas, também, pode ser referência a Licurgo de Esparta, que, no séc. VIII, tornou-se célebre por sua severidade ligada às leis e aos costumes.
11 E, ao contrário de Encólpio, marca Gitão a sua fina inteligência, como se pode ver em diversas passagens, como a de jogar restos ao cachorro de Trimalquião para livrar-se dos ataques (Sat. 72.9), de marcar as pilastras e as colunatas dos caminhos percorridos nas ruas com giz para não se perder (Sat. 79.4), acalmar Eumolpo com palavras cariciosas a fim de que este não o entregasse de volta Ascilto (Sat. 98.8). O que sobra em inteligência a Gitão complementa o que falta a Encólpio: Petrônio cria uma dessas duplas de personagens que sobejam na mitologia e na literatura, como, entre tantas, Dédalo e Ícaro, Rômulo e Remo, Damão e Pítias, Júpiter e Mercúrio, Estróbilo e Licônides, Niso e Euríalo, Dom Quixote e Sancho Pança, Robinson Crusoé e Sexta-feira, Sherlock Holmes e Dr. Watson, Lennie Small e George Milton, João Grilo e Chicó.
12 Se assim não fosse, por que daí a pouco a tentativa de suicídio?
13 O que é admirável em Petrônio é a ligeireza do autor implícito: havia um grande aborrecimento por Eumolpo ter mania de recitar seus versos a torto e a direito, o que se condenava também a todo momento; contudo, diante das palavras sedutoras do poeta para com o menino Gitão, a fim de que ele não mais se dirigisse assim ao namorado, Encólpio permite o que tanto lhe desagrada: os versos do poeta. Note-se que não é inteligência, rapidez de raciocínio de Encólpio (o que aliás ele está longe de ter), mas uma intervenção humorística externa do autor implícito.
14 E a primeira coisa em que pensa o serviçal da pousada ao ver o quarto todo revirado e a cama em pé, foi numa fuga dos hóspedes para a rua (Sat. 95.1-3), e não algum evento funesto como um suicídio.
15 Em relação à teatralidade no comportamento de Encólpio, reforça lembrar que Eumolpo encontrara dois atores muito eficientes para tocar a farsa de Crotona:

– Quid ergo, inquit Eumolpus, cessamus mimum componere? Facite ergo me dominum, si negotatio placet. (Sat. 117.4)

– Por que então – disse Eumolpo – essa demora para montar a farsa? Se o negócio interessa, façam-me seu patrão.

Aliás, mesmo em nível mais íntimo, pode-se ver Encólpio calcular muito bem a sua própria aparência:

Quo enim spectant flexae pectine comae, quo facies medicamine attrita et oculorum quoque mollis petulantia; quo incessus arte compositus et ne uestigia quidem pedum extra mensuram aberrantia, nisi quod formam prostituis ut uendas? (Sat. 126.2)

Para que servem, afinal, esses cabelos ondulados com o pente? Para que essa face toda maquiada? E para que, além disso, esses olhares insinuantes e lânguidos? Para que o andar ensaiado com arte, e também os passos, a ponto de nem uma vez sequer divergirem da medida dos pés, se não for para exibir sua beleza a fim de vendê-la?

16 A título de lembrança, nessa passagem, o engano de Ascilto provém da paródia de Polifemo, da Odisseia: enquanto Ascilto figura como o ciclope, Gitão, debaixo da cama agarrado ao estrado passa-lhe despercebido como passaram os companheiros de Ulisses ligados aos carneiros.
17 Ligando-se a essa questão de fingimento e encenação exercidos por Encólpio, não se deve esquecer que, no navio de Licas dá-se o mesmo, com os planos mirabolantes (Sat. 108.1-102.14) em que pensa o trio para poder escapar ao reencontro com o velho inimigo, além do disfarce efetivamente assumido (Sat. 103.1-4) de escravos fugitivos – cabeça raspada, sobrancelhas eliminadas, pintura facial: tudo muito mal executado. Vale ainda lembrar que, considerando as características da população de Crotona,

(…) sed quoscunque homines in hac urbe uideritis, scitote in duas partes esse diuisos. Nam aut captantur aut captant. In hac urbe nemo liberos tollit, quia quisquis suos heredes habet, non ad cenas, non ad spectacula admittitur, sed omnibus prohibetur commodis, inter ignominiosos latitat. Qui uero nec uxores unquam duxerunt nec proximas necessitudines habent, ad summos honores perueniunt, id est soli militares, soli fortissimi atque etiam innocentes habentur. Adibitis, inquit, oppidum tanquam in pestilentia campos, in quibus nihil aliud est nisi cadauera quae lacerantur, aut corui qui lacerant. (Sat. 116.6-9)

(…) Ao contrário: quantos homens vejam nesta cidade, saibam vocês que estão divididos em dois grupos: ou caçam ou são caçados, eis a verdade. Nesta cidade ninguém tem filhos, porque qualquer um que tiver seus próprios herdeiros não o convidam nem para os banquetes nem para os espetáculos; longe disso, é cercado de todas as antipatias. Esse passa a figurar entre os mal afamados. Mas os que não se casaram, nem têm parentes próximos, esses chegam aos mais altos postos, isto é, são os únicos preparados para a guerra, são os mais corajosos, e são tidos até mesmo como íntegros. Vocês vão entrar numa cidade semelhante a campos pestilentos nos quais não existe mais nada além de cadáveres que são dilacerados, ou corvos, que os dilaceram.

e aproveitando que Encólpio e Gitão já portavam a aparência de escravos, segundo o disfarce que haviam adotado no navio, o trio encenará uma farsa mantida com a finalidade de não somente obter recursos de sobrevivência, mas, desta vez, também de enriquecer:

– Quid ergo, inquit Eumolpus, cessamus mimum componere? Facite ergo me dominum, si negotatio placet. (Sat. 117.4)

– Por que então – disse Eumolpo – essa demora para montar a farsa? Se o negócio interessa, façam-me seu patrão.

18 Segundo Oliveira (2019, p. 64), o autor romano troca “a falsa morte por uma falsa vida, depois que Sócrates permanece aparentemente vivo, mesmo tendo sido assassinado pelas bruxas”:

Tínhamos andado uma parte considerável, e tudo estava já iluminado pelos primeiros raios do sol. E eu ficava observando curiosa e diligentemente o pescoço de meu companheiro, naquela parte em que vira a espada enfiada, e dizia a mim mesmo:

– Seu maluco da cabeça, encheu a cara de vinho e sonhou aquelas maluquices! Olha aí o Sócrates, inteiro, são e salvo, intacto. Cadê a ferida? Cadê a esponja? Cadê, enfim, a cicatriz tão profunda, tão recente? (O asno de ouro. 1.18. Tradução de S. B. Bianchet).

19 Em O asno de ouro, de certa forma, aproximativamente, temos ainda, no episódio do deus Riso, a falsa morte de jovens que teriam atacado Lúcio quando voltava da casa de Birrena. Lúcio entendera fossem homens, mas eles não passavam de odres inflados, um truque para levar o jovem aos falsos tribunais festivos.
20 Encontra-se também a falsa morte na História do rei Apolônio de Tiro, quando a esposa de Apolônio, logo após o nascimento de Társia e em consequência dele, é dada como morta, mas depois volta à vida por obra dos cuidados de um jovem médico:

Quod ut uidit iuuenis, ad magistrum suum cucurrit et ait: “magister, puella, quam credis esse defunctam, uiuit. et ut facilius mihi credas, spiritum praeclusum patefaciam.” Adhibitis secumNot uiribus tulit puellam in cubiculo suo et posuit super lectulum, uelum diuisit, calefecit oleum, madefecit lanam et effudit super pectus puellae. sanguis uero ille, qui intus a perfrictione coagulatus fuerat, accepto tepore liquefactus est coepitque spiritus praeclusus per medullas descendere. uenis itaque patefactis aperuit puella oculos et recipiens spiritum, quern iam perdi- is derat, leui et balbutienti sermone ait:

– Deprecor itaque, medice, ne me contingas aliter quam oportet contingere, uxor enim regis sum et regis filia. (Historia Apolonii regis Tyri, 27 <Redactio A, Schmeling, 1988).

Logo que jovem viu, correu para seu professor e disse:

– Professor, a moça que acreditas morta está viva! E para que acredites em mim mais facilmente, vou liberar sua respiração obstruída.

Afastou o véu que a cobria, esquentou azeite, umedeceu com ele um pouco de lã e a espalhou sobre o peito dela. E o sangue, que no interior do corpo coagulara por causa do frio, ao receber um leve calor se liquefez e a respiração obstruída começou a fluir por suas entranhas.

Assim, liberadas suas veias, a moça abriu os olhos e, recobrando o alento que perdera, disse com voz apagada e balbuciante:

– Peço-te, doutor, não me dês um tratamento diferente do mais adequado, pois sou a esposa de um rei e de um rei sou filha. (História do Rei Apolônio de Tiro, 27. Tradução de N. Pelicioni de Oliveira e C. Aquati, mimeo.)

21 E, num nível de entendimento inteiramente diferente, a título de brinquedo com a literatura, especulação lúdica, poder-se-ia pensar que, durante o naufrágio, haja algo de literário em comum entre a atitude frenética e obstinada de Eumolpo de terminar seu poema com risco à própria vida e a célebre (e espinhosa) decisão de Camões salvar os Lusíadas com o prejuízo da vida de Dinamene?
22 “(…) two possible implicit allusions to the tradition of Milesian Tales, which occur very appropriately in the two obscene and amusing inserted tales narrated by the poet Eumolpus, the two tales generally agreed by scholars to be particularly Milesian in flavour.” (Harrison, 2008, p. 6)
23 A Matrona é assim diretamente caracterizada, e o mesmo está implícito em relação ao garoto, não apenas porque supostamente ainda não teria idade para desvios de moral e porque parecia seguir um severo programa educativo imposto pelos pais (o que não impedia de estes serem míopes relativamente às intimidades entre Eumolpo e o filho).
24 Observe-se que, naturalmente, à virtuosa Matrona o soldado não parecera desprovido de belas palavras, e Eumolpo se caracteriza por ser um poeta prolixo.
25 A Matrona resolve tudo de um átimo, quando não titubeia ao mandar crucificar o cadáver de seu marido, e o menino não dá chance de que Eumolpo dele se afaste, invertendo-se a intensidade do desejo sexual entre ele e o preceptor, dada a grande dose de libido que de natural tem a adolescência.
26 Texto latino da Eneida estabelecido por Henri Goelzer (Virgile, 1952).
27 Da tradução de Carlos Alberto Nunes (1983) para id cinerem aut manis credis curare sepultos (Eneida 4.34: Virgile, 1952).
28 “Tryphaena experiences shame at the widow’s story and Lichas moral outrage.”
29 Segundo determinadas leis da Antiguidade, talvez a Matrona rigorosamente não pudesse contrair núpcias antes de um certo período que, sem dúvida, ainda não teria expirado. Contudo, é preciso lembrar que se trata aqui de um texto literário, que não se mede aos milímetros ou gramas, como fosse uma precisa fórmula matemática.
30 Schmeling (2011, p. 430) observa que o leitor não escuta o Miles, que ele não fala em discurso direto, que tudo depende daquilo que o narrador informa.
31 “This, I suggest, was precisely Petronius’ intention: to show that as a raconteur Eumolpus succeeds in exactly those respects in which he fails as a poet.”
32 Segundo Habash (2018, p. 138, nota 22): “Petronius paints an unflattering portrait of Bargates: he possesses a Semitic name (Solin, 1917 218) and refers to his wife as contubernalis, both of which suggest slave status, his gout implies gluttony, and his crassness is demonstrated when he curses his inferiors and requests insulting poetry.” Petrônio pinta um retrato depreciativo de Bargates: ele possui um nome semítico (p. 218) e se refere à sua esposa como contubernalis, sugerindo ambos os qualificativos o estatuto de escravo. Sua gota implica gula e sua grosseria é demonstrada quando ele amaldiçoa pessoas de mais baixo escalão e solicita poesia insultuosa.
33 Único admirador, sublinha Habash (2018, p. 138, nota 22): “Bargates (…) he alone in the extant text shows appreciation for Eumolpus’ poetry.” Bargates (…) é o único em todo o texto que mostra apreço pela poesia de Eumolpo.
34 Ernout (1950, p. 208): “Le bon chanteur”. No mesmo sentido, Solin (2017, p. 325) explica que “Eumolpus si chiama um antipatico poeta che entra nella scena in 85,1. Petronio l’ha battezzato col nome del leggendario poeta tracio, formato dall’aggettivo εὔμολπος ‘dal bel canto’ poiché il personaggio petroniano è tutt’altro che ‘un bel cantante’, l’autore usa il suo nome come ironica antiphrasis (…)”. [Chama-se Eumolpo um antipático poeta que entra em cena em 85,1. Petrônio batizou-o com o nome do lendário poeta trácio, formado do adjetivo εὔμολπος ‘de belo canto’, dado que a personagem petroniana é tudo menos um bom cantor; o autor usa seu nome com irônica antífrase …]
35 Sempre Jacyntho Lins Brandão (2005).
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