Dossiê Eros e Afrodite no Romance Antigo

Gemina Venus: os percursos do amor no conto de Psiquê e Cupido

Gemina Venus: the ways of love in Psyche and Cupid’s tale

Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Gemina Venus: os percursos do amor no conto de Psiquê e Cupido

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 2, pp. 1-9, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Abril 2022

Aprobación: 13 Julio 2022

Resumo: O conto de Psiquê e Cupido (Apuleio, Metamorfoses, IV, 28-VI, 24), por sua natureza simbólica, apresenta uma série de níveis interpretativos, que ultrapassam a justificativa textual de sua inserção na obra, explicitada, no passo que antecede o relato, pelo uso de auocare (“afastar pela palavra, desviar, distrair”). Nosso propósito aqui é discutir uma dessas camadas significativas da narrativa, a partir da bipartição de Vênus em duas deusas (Venus uulgaria e Venus caeles), tal como apresentada por Apuleio em sua Apologia (12, 1-5), associando-a às figuras da própria Vênus e à de Psiquê, bem como à representação paródica dos deuses do panteão tradicional grego, em especial de Cupido, com ênfase no desfecho da fabula.

Palavras-chave: Apuleio, romance latino, Psiquê e Cupido.

Abstract: Due to its symbolic nature, Psyche and Cupid’s tale (Apuleius, Metamorphoses, IV, 28-VI, 24) brings forth a range of interpretative levels, which go beyond the textual reason for its insertion in Apuleius’ novel, shown in the excerpt immediately before the beginning of the narration by the use of auocare (“distract, deviate”). Our purpose here is discussing one of those meaningful levels of this tale taking as starting point the split of Venus in two goddesses (Venus uulgaria and Venus caeles), as presented by Apuleius in his work Apologia (12, 1-5). We intend to associate the image of the two goddesses in Apologia with Venus herself and with Psyche’s in the Metamorphoses, as well as with the parodic representation of traditional Greek gods in the end of the fabula, especially Cupid.

Keywords: Apuleius, roman novel, Psyche and Cupid.

1. Introdução

As Metamorphoseon ou Asinus aureus de Apuleio (séc. II d.C.), obra de ficção em prosa que, ao lado do Satyricon de Petrônio (séc. I d.C.), representa em língua latina o gênero da antiguidade a que costumamos chamar “romance” – ainda que conscientes do evidente anacronismo1 –, se estrutura de modo a incluir, na linha diegética central a metamorfose de Lúcio em burro e vice-versa, uma série de mais de 20 histórias curtas, que envolvem a utilização de temas semelhantes: são episódios de cunho erótico (sequência de histórias sobre adultério no livro 9, por exemplo) e de feitiçaria e magia (série de episódios sobre o tema que precedem a metamorfose de Lúcio em burro no livro 3). Nesses passos, o foco narrativo é transferido do narrador autodiegético para um personagem secundário, que assume a vez e a voz da narrativa, o mais das vezes apenas enquanto dura a narrativa sob sua condução. O narrador em primeira pessoa, que apresenta suas próprias aventuras, transforma-se, pois, em ouvinte das aventuras e narrativas alheias, as quais ele reproduz como citação, passos cuidadosamente marcados na superfície do texto apuleiano.

A inclusão de elementos fantásticos, que remetem ao novo, ao inaudito, ao monstruoso, pode ser analisada como uma das principais estratégias para atrair a atenção do leitor/ouvinte no romance latino. Nas Metamorphoseon, a inserção de histórias breves configura-se como uma estratégia discursiva de uso bastante recorrente; além disso, as histórias inseridas apresentam uma conexão muito direta com a narrativa principal da obra, já que o tema da magia é o motus da narrativa de Lúcio: literalmente, é o que coloca o narrador em movimento e desencadeia toda a série episódica de transfigurações por ele desenredada.

Uma das justificativas apresentadas pelo narrador para inserir histórias é a de demarcar a passagem do tempo, como, por exemplo, no primeiro episódio das Metamorphoseon, em que ao leitor é apresentada uma narrativa fantástica – na verdade, a primeira metamorfose do livro (história narrada por Aristômenes, em Metamorfoses, I, 5-19, p. 21-30). No entanto, é possível perceber que a metamorfose não é integral, de 100%: assim como o burro mantém características de Lúcio – em especial a capacidade de raciocinar, mas não a de falar – o que ele lamenta profundamente, também Lúcio, após o processo de desmetamorfose, guarda lembranças de quando era burro, como o narrador faz questão de ressaltar no livro IX (não por coincidência o livro em que o burro assume a vez e voz de narrador de aventuras alheias): “A verdade é que eu também tenho lembranças agradáveis, dignas de gratidão, de meu tempo de burro: o fato de eu ter vivido escondido dentro dele, sendo acossado por sortes variadas, me fez sair de lá sabedor de muitas coisas, ainda que menos perspicaz” (Metamorfoses, IX, 13, p. 191).2

O principal objetivo de inserir histórias nas Metamorphoseon, declarado explicitamente pelos narradores, é o de mera fruição. São histórias introduzidas para mirari (Met. I, 1, 2), laetari (Met. I, 1, 6), auocare (Met. IV, 27, 8), perfrui (Met. II, 20, 7). Outro elemento textual que corrobora o caráter de amenidades das histórias inseridas é o adjetivo que as qualifica: as fabulae, outras vezes referidas como sermones ou narrationes, são sempre lepidae – “graciosas, encantadoras, espirituosas” (Met. I, 20; IV, 27; IX, 4; et passim).

O adiamento do desfecho da história – a metamorfose do burro em Lúcio – por meio das histórias tem seu ponto mais importante na narrativa do extenso conto do amor entre Psyche e Cupido (Alma e Amor), que ocupa parte do livro IV, todo o livro V e ainda parte do livro VI (Metamorfoses, IV, 28 a VI, 24, p. 94-134), longo trecho em que o protagonista Lúcio se silencia. Quanto à sua longa extensão, acrescente-se o fato de que esse aspecto parece cumprir o propósito explicitado na superfície da narrativa – o de distrair a jovem raptada Cárite por um longo tempo, estratégia que já aparecera antes na narrativa de Apuleio, no livro I, quando da inserção da história de Aristômenes.

Do ponto de vista narratológico, o conto de Psiquê e Cupido permite delinear seu modus narrandi e a função primeira que assume na obra: trata-se de uma história que funciona como elemento marcador de tempo decorrido, estaticidade do espaço da narrativa e/ou drama psicológico, em estreita conexão com a narrativa principal. Mas, mais do que uma história fantástica, com forte apelo ao incomum e ao sobrenatural, trazida ao leitor por meio de técnicas narrativas complexas e estratégias sofisticadas de composição, sua multiplicidade de perspectivas e diversificadas camadas interpretativas têm envolvido e ocupado leitores e comentadores há séculos.

2. Um conto, múltiplas perspectivas

O conto de Psiquê e Cupido tem suscitado leituras alegóricas que recuam ao tempo do próprio Apuleio, se se considerarem as alusões a obras filosóficas e literárias na narrativa. Alguns estudos destacam o substrato platônico, outros o psicológico, outros o caráter sociopolítico, e outros ainda o religioso (Merkelbach, 1967; Drake, 2000; Teixeira, 2000).

Paralelamente, o conto de Psiquê e Cupido tem sido também fonte de produções artísticas nas artes visuais e as representações iconográficas do conto, além das conhecidas esculturas de Auguste Rodin (no Metropolitan Museum of Art em New York) e de Antonio Canova (Museu do Louvre), as telas de Van Dyck e Goya, e os afrescos da Villa Farnesina de Rafael e seus discípulos, envolvem tesouros escondidos, por exemplo, em um par de baús de casamento encomendados pela florentina família Médici no séc. XV, hoje parte do acervo do Bode Museum, em Berlim.

Fato é que Vênus e Cupido são divindades frequentemente referidas ao longo da narrativa das Metamorfoses como um todo – não estando apenas circunscritas ao conto de Psiquê e Cupido. O nome de Vênus aparece 78 vezes ao longo da narrativa, e Cupido 22 vezes,3 em contextos e livros os mais variados, o que reforçaria a leitura de que possam ser tomados como fios condutores da narrativa enredada.

Um dos elementos inovadores no conto, que merece menção, é a catábase/anábase de Psiquê, única personagem feminina da antiguidade clássica a ter a experiência de catábase e que, portanto, passa a figurar como heroína, ao lado de heróis Orfeu, Odisseu, Aquiles, Eneias, Teseu, listagem à qual podem ser acrescidos Jesus e Dante. Um paralelo pode ser traçado com a distante deusa suméria do amor, da beleza e do sexo, Inanna ou Ishtar (terceiro milênio a.C.), um estudo ainda por ser feito.

Para Ellen Finkelpearl, o fato de a catábase de Psiquê ocorrer precisamente no livro 6 é evidência de que Apuleio alude à catábase de Eneias, na Eneida, aproximando Psiquê, e, por conseguinte, o burro, do herói épico virgiliano: “I believe that these allusions aim to connect Psyche – and via Psyche, Lucius – with Aeneas…” (1999, p. 336). Estranhamente Finkelpearl não comenta o fato de ser uma heroína e não um herói, mas destaca a inadequação de um burro passar pela experiência da catábase (1999, p. 346).

Um pouco avante ao tempo de Apuleio, de volta ao século V-VI, Fulgêncio, em seus Mitologarum tres libri (III, 6),4 propõe a primeira interpretação alegórica, ao mesmo tempo que teológica, do mito de que se tem conhecimento: o rei e a rainha corresponderiam a deus e a matéria, enquanto suas três filhas seriam representações simbólicas da Carne, da Liberdade de Arbítrio e da Alma. Vênus seria representação da Libido, que envia o Desejo (cupiditas) para deleitar a Alma (Psyche). Interessante destacar que Fulgêncio analogicamente aproxima a proibição de ver Cupido ao episódio bíblico do fruto proibido, fazendo, de certa forma, a personagem Psiquê equivaler a Adão.

Também merece destaque o fato de que Fulgêncio, em seu resumo do mito, que precede a alegoria proposta, nomeia Psiquê como iuniorem uero tam magnificae esse figurae quae credereturVenus esse terrestris (III, 6)5 – ou seja, uma vez que circula por entre os povos e é por eles venerada, o que sem grande esforço etimológico pode ser associado à concepção de Venus Vulgaris, tão como apresentada por Apuleio na Apologia.

Motivos do romance grego – basta destacar o topos da união, separação e reunião do casal – estão inegavelmente presentes tanto na história de Cárite – ouvinte-alvo do conto – que a propósito traz, na engenhosidade de Apuleio, dois finais (um paradigmático do romance grego em VII, 13 e outro de matiz trágico, em VIII, 1-14); quanto na de Psiquê, que conquista seu próprio “e eles viveram felizes para sempre”.6 Há que se destacar ainda a presença indiscutível de topoi do conto tal como registrado por Apuleio nos contos de fada modernos (cf. contos de fada de Hans Christian Andersen, em especial o conto intitulado Psyche).7

Outras perspectivas relevantes de entendimento de Eros/Cupido no conto envolvem o amadurecimento (e por que não metamorfose?) do amor: da criança travessa (saeue puer Amores I, 5) de Ovídio, que rouba um pé de seus hexâmetros datílicos nos versos iniciais do livro I dos Amores, impedindo-o de cantar assuntos grandiosos da épica; para o Eros/ Cupido jovem cosmopolita, ator social, agente de seus amores, não mais submetido a casamentos pré-escolhidos. Daí a leitura de Teixeira, que defende ser Cupido a única divindade olimpiana tratada com “relativa simpatia, na medida em que lhe é possibilitada uma evolução” (2000, p. 80), o que se justifica, segundo a autora, ancorada em Rambaux (1985 – Trois analyse de l’amour), mais como resultado da sua figura enquanto alegoria da evolução do amor do que enquanto divindade. O autor trabalha a sequência narrativa do conto, associando-a a etapas do processo de maturação do amor – que vai de “amor terrestre ou ignóbil”, passa por uma fase de amor intermediário, e caminha para a fusão do amor terrestre e celeste. “Nesse sentido, a história de Cupido e Psiquê é a história da relação entre o amor divino e a alma humana, que, mais uma vez, profetiza a relação entre Lúcio e Ísis no livro XI” (Teixeira, 2000, p. 80).

Na perspectiva do campo das relações interpessoais e familiares, pode-se apresentar uma leitura de fundo psicanalítico do conto: o filho ama a mãe, mas não pode se casar com ela. Por isso, busca uma esposa semelhante em tudo à mãe, e que chega a emulá-la, o que por sua vez gera conflito e tensão entre mãe e esposa, numa espécie de transferência do amor. Nessa perspectiva, a desobediência de Cupido às ordens da mãe avança os limites da relevante quebra da usual cumplicidade entre Vênus e Cupido, quando este deixa de ser agente da vontade materna (como A. Duarte destaca ser o caso em Quéreas & Calírroe, 2020, p. 188 – Posfácio à tradução), e adentra no universo dos sentimentos feminis.

Na perspectiva religiosa, a viagem de Psiquê em busca do marido comporta a análise equivalente à da deusa Ísis em busca de Osíris. Para Teixeira (2000), Apuleio traz no conto elementos isíacos de forma codificada – perda do esposo e a peregrinação em sua busca. Para a autora, a centralidade e extensão do conto confirmam sua importância do ponto de vista da estrutura externa. Na leitura da autora, no entanto, a função do conto não se esgota no plano da diversão, e o conto de Psiquê e Cupido assumiria para Lúcio uma função profética e pedagógica – o que o tornaria uma espécie de micronarrativa da história de Lúcio. Hildebrand (1842) mostrou, pela primeira vez, pontos de convergência entre o conto de Psiquê e Cupido e o final religioso da narrativa de Lúcio.

São os deuses maiores do panteão tradicional que Apuleio coloca em acção no conto. Nega-lhes, o entanto, a grandeza de características e sentimentos inerentes à essência da divindade. Transforma-os em seres viciosos, mais próximos do conceito de humano do que de divino; as acções que praticam demonstram a sua incapacidade de satisfazer as expectativas dos crentes. Com esta descredibilização dos deuses tradicionais cria Apuleio espaço para apresentar, por contraste, uma alternativa, Ísis, cuja revelação explícita permanecerá, no entanto, em suspenso até ao último capítulo. (Teixeira, 2000, p. 83)

Inegável é o substrato platônico no conto – no Fedro e no Simpósio de Platão (como destacado por Drake, 2000; Tilg, 2014; Duarte, 2020, dentre outros), em especial a descrição de Eros por Pausânias, um vínculo que o próprio Apuleio evidencia, em sua Apologia, ao tratar das duas Vênus e da supremacia do impulso erótico, ou seja, da força incontrolável, indomável da Vênus vulgar, que atinge igualmente homens e feras (Apologia, I, 12):8

Mitto enim dicere alta illa et diuina Platonica (...): geminam esse Venerem deam, proprio quamque amore et diuersis amatoribus pollentis, earum alteram uulgariam, quae sit percita populari amore, non modo humanis animis, uerum etiam pecuinis et ferinis ad libidinem imperitare ui immodica trucique perculsorum animalium serua corpora complexu uicientiem (...)9

Na busca pela experiência e conhecimento, movida pela curiosidade, tanto Lúcio quanto Psiquê são conduzidos à queda, assim como a ascensão ocorre para ambos pela intervenção divina. A curiosidade, no entanto, não é necessariamente apresentada como um defeito na narrativa. Do ponto de vista das leituras da obra de Apuleio como um romance de estética psicagógica (na linha proposta por Fick-michel),10 a curiositas seria exatamente o que conduz à descoberta da verdade – apologia da Beleza e do Conhecimento.

Trata-se, pois, mais do que de alusões, mas de referências programáticas à teoria platônica de Afrodite dual/ Eros dual, tal como uma alegoria sobre experiência, o contraste luz/ escuridão, saber/ ignorar, enfim, de uma experiência de visão que leva à contemplação do amor verdadeiro. Como destacado por Drake (2000, p. 11): “Apuleius’ parody of Plato’s Phaedrus is nothing short of magnificent comedic genius”.

Stefan Tilg, em estudo recente acerca das Metamorfoses, afirma que o próprio nome dos protagonistas do conto seriam ‘um convite aberto’ para leituras alegóricas, um convite aceito já desde muito cedo na antiguidade, como atesta de forma incontestável a obra de Fulgêncio (séc. V-VI) supra referida.

Para Tilg, as Metamorfoses podem ser lidas em chave filosófica ao longo de todos os episódios narrados, o que permite vincular as aventuras e desventuras de Lúcio às de Psiquê, assim como ao final religioso (que o autor defende não ser inovação de Apuleio). Dessa maneira, argumenta o autor, a série de motivos comuns a Lúcio e Psiquê, todos de alguma forma vinculados ao Platonismo, garante coerência filosófica à obra de Apuleio, o que o leva a considerar a hipótese de que as Metamorfoses sejam tidas como o primeiro romance filosófico da literatura europeia (Tilg, 2014, p. 83).

3. Gemina Venus: Geminus Iocus

“Humor, irony, and parody are other

possible effects of literary allusion”

(Ellen Finkelpear, 1999, p. 341)

Quanto à representação paródica dos deuses do panteão tradicional grego no conto de Cupido e Psiquê, nota-se o tom sempre jocoso e risível que as referências aos deuses olimpianos assumem. Assim, Apolo profere oráculo em latim, usando dísticos elegíacos – oportunidade usada pela narradora para inserir sua narrativa na tradição da fábula milesiana (IV, 32-33, p. 97); Juno e Ceres se eximem de suas atividades costumeiras e fazem o papel de “vizinhas fofoqueiras” (V, 31, p. 119); Júpiter ajuda Cupido em troca de favores amorosos (VI, 22, p. 133); Vênus assume o papel de “sogra perseguidora” da futura nora (V, 28, p. 118, et passim).

A cena final do conto de Psiquê e Cupido, em especial, pode ser aproximada a uma espécie de “satura tragicômica”, ao relembrar o prólogo de Mercúrio na comédia Amphitruo de Plauto (v. 59-63), que apresenta aos espectadores o conceito de tragicomédia – deuses em situação ridicularizada. Justifica-se, pois, o testemunho de Macróbio, em seus Commentarii de somnium Scipionis, que aproxima ambos os romances latinos à comédia nova de Menandro, ou seja, seriam uma espécie de comédia nova em prosa.11 Paradigmas trágicos e cômicos perfilam no conto, em geral negligenciados pelos comentadores que tendem a privilegiar os aspectos sérios da narrativa – filosóficos e literários, à exceção de Tilg (2014).

Aqui, o expediente da contaminatio é indiscutível: Júpiter acusa Cupido de incitá-lo a infringir a lei Júlia (VI, 22, p. 133) – o que continuará a fazer, já que, em troca da ajuda a Cupido, exige dele como recompensa “a mocinha que se sobressaia em beleza”; o topos épico da convocação para a assembleia dos deuses por Mercúrio inclui o pagamento de altíssima multa em moeda romana pelos ausentes – o que fez com que o teatro ficasse imediatamente lotado; Júpiter inicia o concílio referindo-se aos deuses pelo vocativo dei conscripti, o que o faz equivaler a uma reunião do Senado romano (VI, 23, p. 133-4).

O discurso de Júpiter em defesa de Cupido, por sua vez, evidencia elementos culturais relativos ao casamento (monogâmico?) que merecem destaque (VI, 23, p. 133-4):

1 – Os impulsos ardentes da primeira juventude de Cupido devem ser coibidos por meio de um freio;

2 – Já basta de censuras a Cupido por causa de adultérios e outros tipos de devassidão;

3 – A luxúria pueril de Cupido deve ser atada pelos laços matrimoniais.

Em sua linha argumentativa, Júpiter ainda ressalta que Cupido já escolheu a ‘mocinha’ e a despojou de sua virgindade, o que o leva ao veredicto: o casamento entre Psiquê e Cupido. Para aplacar Vênus, chama a atenção o fato de que Júpiter embasa a divinização de Psiquê como uma necessidade de cumprimento de uma exigência legal: para que o casamento seja legítimo e segundo o direito civil, algo que retoma a fala sarcástica anterior de Vênus em VI, 9 em relação à gravidez de Psiquê (p. 125-6),12 quando tortura Psiquê e afirma não ser obrigada a reconhecer como neto ou neta uma criança fruto de núpcias entre desiguais (obviamente uma convenção social romana). Incontinente ao ato de sorver a ambrosia, inicia-se o suntuoso jantar nupcial, em que, jocosamente, as atribuições principais dos deuses são postas a serviço da festa de casamento: Baco é quem serve o vinho a todos, exceto a Júpiter, que conta com serviço exclusivo do “famoso garoto camponês”; Vulcano é quem fica responsável por cozinhar o jantar; Apolo é o cantor e Vênus a dançarina – numa evidente redução de sua importância no desfecho do conto (VI, 24, p. 134).

Por fim, é alvo de ampla discussão o nome da filha de Psiquê e Cupido: Voluptas. Aqui, propomos que a volúpia possa ser entendida como o retorno à duplicidade de Vênus, apontando como um ciclo do amor que sempre se reinicia e é retomado a partir da Venus vulgaris, que como Apuleio aponta em sua Apologia, é de uma força incontida e atroz (ui inmodica trucique).

Chega-se, portanto, nos termos aqui avançados, à leitura alegórica que pode ser interpretada como proposta pelo próprio Apuleio: a dupla metamorfose de Psiquê, primeiramente em Venus vulgaris, e depois em Venuscaeles. Sob essa ótica, Psiquê equivaleria ao sincretismo de ambas as figuras de Venus, e sua filha Voluptas representaria o reinício do ciclo, que sempre parte do amor vulgar.

Em refinado processo de inversão paródica, Apuleio transfere as honras da divindade a Psiquê, ao mesmo tempo em que reveste a deusa Vênus de vícios humanos, de modo a proceder a uma sátira de costumes, ou, em outras palavras, a mostrar duas facetas de uma mesma deusa: gemina Venus.

4. Considerações finais

As leituras do conto de Psiquê e Cupido se multiplicam e se renovam, num processo interminável e inconcluso, que expõe à máxima potência o caráter de universalidade da literatura romanesca antiga, de base transgressora, pois que produto do “caldeirão cultural cosmopolita”, de que o próprio Apuleio é mostra significativa por meio de suas viagens pelo Mediterrâneo a partir do norte da África.

É nessa perspectiva de mundo que Apuleio molda e modela suas histórias, sempre ciente da promessa feita a seus leitores no estabelecimento da matéria a ser narrada: LECTOR, INTENDE, LAETABERIS!

Referências

AMARANTE, José. O livro das Mitologias de Fulgêncio: os mitos clássicos e a filosofia moral cristã. Salvador: EDUFBA, 2019.

ANDERSEN, Graham. Fairy tale in the ancient world. London: Routledge, 2000.

APULEIO. As metamorfoses de um burro de ouro de Apuleio. Trad. Sandra Braga Bianchet. Curitiba: Appris, 2020.

APULEIO. O asno de ouro. Ed. bilíngue. Tradução, prefácio e notas de Ruth Guimarães; apresentação e notas adicionais de Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Editora 34, 2019.

BIANCHET, Sandra Braga. O estatuto do satírico no Satyricon de Petrônio. In: SANTOS, Marcos Martinho (org.). 1º Simpósio de Estudos Clássicos da USP. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

CÁRITON DE AFRODÍSIAS. Quéreas & Calírroe. Tradução, apresentação e posfácio de Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Editora 34, 2020.

DRAKE, Gertrude. Apuleius’ tales within tales in The Golden Ass. In: WRIGHT, Constance S.; HOLLOWAY, Julia B. Apuleius through time. New York: AMS Press, Inc, 2000.

FINKELPEARL, Ellen. Psyche, Aeneas, and an Ass: Apuleius, Metamorphoses 6.10 – 6.21. In: HARRISON, Stephen J. (org.). Oxford Readings in the Roman Novel. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 290-306.

PINHEIRO, Maria Pulquério Fultre. Origens gregas do género. In: OLIVEIRA, Francisco; FEDELI, Paolo; LEÃO, Delfim. O romance antigo: origens de um género literário. Coimbra: Universidade de Coimbra/Universitá degli Studi di Bari, 2005. DOI: http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-1229-4_2.

RAMBAUX, Claude. Trois analyses de l’amour: Catulle, Poésies : Ovide, Les amours : Apulée, Le conte de Psyché. Paris: Les Belles Lettres, 1985.

TEIXEIRA, Cláudia. A conquista da alegria: estratégia apologética no romance de Apuleio. Lisboa: Edições 70, 2000.

TILG, Stefan. Apuleius’ Metamorphoses: a study in Roman fiction. Oxford: Oxford University Press, 2014.

Notas

1 Cf. Pinheiro (2005).
2 As citações das Metamorfoses são de tradução da autora, cf. Apuleio (2020).
3 Cf. listagem constante no índice remissivo de nossa tradução (Apuleio, 2020), às páginas 294 e 291, respectivamente.
4 Amarante (2019).
5 “tinha a mais jovem (sc. filha) tão magnífica beleza, que se poderia acreditar que ela era a Vênus terrestre” (trad. nossa).
6 Cf. fala de Júpiter em VI, 23: “Beba, Psiquê, e será imortal! Cupido nunca se afastará desse compromisso com você! O casamento de vocês será eterno!”
7 Obra consultada para referência: Fairy tales from Hans Christian Andersen. London: J. M. Dent & Co.; New York: E. P. Dutton & Co., 1909. [versão digitalizada]. Disponível em: https://www.loc.gov/resource/gdcmassbookdig.fairytalesfromha00ande_1/?sp=119&st=image.
8 Texto latino, em acesso aberto, disponível em: https://faculty.georgetown.edu/jod/apuleius/.
9 “Lanço-me, pois, a falar sobre os famosos, sublimes e divinos escritos platônicos (...) Há duas deusas Vênus, e cada uma delas exerce seu poder sobre o próprio amor e sobre os diferentes amantes. Uma delas é a vulgar, que é incitada pelo amor popular e força à libido não apenas as sedes do pensamento humano, mas também a de animais e feras, entrelaçando em combate seus corpos servis de animais violentamente feridos, de maneira incontida e truculenta” (trad. nossa).
10 Cf. Teixeira (2000, p. 28).
11 Cf. Bianchet (2006).
12 “Vejam só isto! Ela está nos comovendo com seu enfeite exagerado de barriga inchada, que evidentemente fará de mim avó de uma criança famosa... Estou navegando num mar de felicidade, porque serei chamada de avó precisamente na flor da idade e ouvirei dizerem que o neto de Vênus é filho de uma escrava desprezível! Mas espere aí... que bobagem a minha! Não há razão para que eu atribua à criança a designação de ‘filho’, pois trata-se de núpcias entre desiguais e que, além disso, tendo sido realizadas numa casa de campo, sem testemunhas e sem o consentimento do pai, não podem ser consideradas como legítimas. Por esse motivo, essa coisinha nascerá como bastardo, e isso só se nós permitirmos que você leve a gravidez até o fim...”
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