Dossiê temático: Resolução de Conflitos e Literatura Clássica / Special Issue: Conflict Resolution and Classical Literature
Introdução:1 Dossiê temático: Resolução de Conflitos e Literatura Clássica
Introdução:1 Dossiê temático: Resolução de Conflitos e Literatura Clássica
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-5, 2023
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
O conteúdo deste Dossiê é produto do apoio fornecido pelo Global Challenges Research Fund Networking Grant, administrado pelo Arts and Humanities Research Council, para o projeto Resolução de Conflitos e Literatura Clássica (AH/S003835/1). Esse incentivo nos permitiu organizar uma série de workshops em universidades parceiras na Colômbia – Universidade de Los Andes em Bogotá; no Brasil – Universidade do Estado do Amazonas em Manaus; e no Reino Unido – King’s College London. Os artigos que compõem este Dossiê são principalmente produtos de conferências realizadas em um painel em Bogotá em 2019, com dois artigos complementares. Agradecemos à Revista Classica pelo convite para organizar este Dossiê temático e a Ricardo Vela Rábago pela formatação e revisão de edição.
O projeto Resolução de Conflitos e Literatura Clássica explora como a pesquisa em Estudos Clássicos e Estudos sobre Guerras pode contribuir para a resolução de conflitos e para a educação pacificadora no Brasil e na Colômbia. Em última instância, projetos continuados voltados para impacto e compromisso social produzirão e testarão materiais sobre como a literatura clássica comunica habilidades de resolução de conflitos para comunidades jovens e/ou desfavorecidas afetadas por esses conflitos. No entanto, em primeiro lugar, devemos examinar a literatura antiga e o mundo clássico em geral em termos de conflitos e estratégias de resolução de conflitos – ou a sua falta – antes que possamos levar essas descobertas para o desenvolvimento de programas de extensão em nossas universidades parceiras em São Paulo, Juiz de Fora, Manaus, Brasília e Bogotá.
A literatura antiga é especialmente adequada para envolver estudantes no diálogo sobre resolução de conflitos. Sem fazer referências explícitas às crises contemporâneas no Brasil e na Colômbia, ela apresenta temas sensíveis de modo não controverso. Além disso, incorporar o aprendizado clássico na educação para resolução de conflitos permite ao nosso projeto cruzar fronteiras disciplinares e dessa forma estabelecer um elemento precursor para futuras iniciativas de ensino e de pesquisa.
Pensando sobre resolução de conflitos
O conflito existe quando uma pessoa tem uma necessidade de outra e essa necessidade não está sendo atendida.
O conceito de paz positiva envolve a eliminação da origem das causas de guerra, violência, e injustiça e a tentativa consciente de construir uma sociedade que reflita esses compromissos. A paz positiva é preenchida com conteúdo positivo tal como a restauração das relações, a criação de sistemas sociais que servem às necessidades de toda a população e a resolução construtiva de conflitos.
A paz negativa, por outro lado, é definida como paz sem justiça. A paz negativa se refere à ausência de violência. Quando, por exemplo, um cessar-fogo é negociado, a paz negativa ocorrerá. É negativa porque algo de indesejável deixou de acontecer – por exemplo, a violência cessou, a opressão terminou. A verdadeira resolução de conflitos então inicia um processo em prol da paz positiva.2
Porém, resta definir o que é exatamente resolução de conflitos e como ela pode ser alcançada. O termo resolução de conflitos se refere à análise facilitada das fontes subjacentes de situações de conflito pelas partes envolvidas.3 Esse é um processo de facilitação e deve ser distinguido de mediação. A mediação tradicional geralmente é considerada como sugestiva de compromissos razoáveis ao buscar acordo, passando de uma parte a outra no processo. A facilitação, por outro lado, busca ajudar as partes a chegarem a uma definição comum de sua relação e estabelecer seus próprios objetivos na situação. No entanto, a mediação frequentemente é usada como um termo amplo para descrever qualquer resolução de conflitos. De modo semelhante, um acordo é diferente de uma resolução – é possível chegar a um acordo para um efeito de barganha de poder – assim como um tribunal tem poder de resolver uma disputa. Porém, chegar a uma resolução não deve ser uma gestão de conflito, mas uma resolução de conflito, já que a gestão tem uma aplicação mais ampla, que envolve desde estratégias de contenção até propaganda. Frequentemente, é uma tentativa da parte do status quo na disputa de evitar o avanço de um conflito enquanto busca manter o controle sem retroceder. Essa posição é típica de políticas de autoridades não-legitimadas sob ameaça. A resolução de conflitos, por outro lado, busca resolver o problema, muito embora isso exija mudanças. Não é, portanto, o resultado de um compromisso ou decisão efetivada, mas o resultado que vem de uma análise da situação global pelas partes concernentes para satisfazer suas necessidades.
Geralmente encontramos sete categorias de resolução de conflitos delineadas – embora elas possam se sobrepor – e encorajamos os leitores deste Dossiê a tê-las em mente quando visitarem os artigos apresentados aqui.
• Evitar o conflito: alguém que use a estratégia de evitar o conflito na maioria das vezes tenta ignorá-lo ou contorná-lo, esperando que se resolva ou que passe;
• Acomodar: usar a estratégia de acomodação para resolver o conflito essencialmente envolve tomar medidas para satisfazer as preocupações ou demandas da outra parte às custas de suas próprias necessidades ou desejos;
• Ceder: a estratégia de cessão envolve encontrar uma solução aceitável que satisfará parcialmente, mas não totalmente, as preocupações de todas as partes envolvidas;
• Competir: alguém que use a estratégia de resolução de conflitos de competição tenta satisfazer seus próprios desejos às custas de outras partes envolvidas;
• Colaborar: usar a colaboração envolve encontrar uma solução que satisfaça as preocupações de todas as partes envolvidas;
• Apelar: uma parte implora/pede que a outra parte atenda às suas necessidades e cesse o conflito;
• Impor: uma parte que possui status ou posição mais alta ordena que a outra parte faça o que pediu e a parte de menor status cumpre.
A seguir, fornecemos um breve panorama do conteúdo de cada artigo para orientar o leitor.
Whetham analisa como o antigo conceito de guerra justa não se coaduna com as perspectivas modernas de realismo e não-violência, estabelecendo uma conciliação entre as duas perspectivas, enquanto a última contesta o recurso à guerra e à violência para resolver qualquer questão, já que agir moralmente não pode envolver o ato deliberado de tirar a vida que uma guerra exige. Não se pode fazer o mal para coibir o mal; uma posição frequentemente motivada por crença religiosa. O realista, por outro lado, argumentará que os valores morais somente se tornam possíveis em um estado para aqueles que vivem dentro de seus limites e sob sua proteção, em um contrato social no qual cada indivíduo renuncia a uma parte de sua liberdade em troca da proteção oferecida pelo estado. As leis e os valores somente existem pela capacidade de o estado protegê-los. Os valores, a moralidade e a ética não são protegidos internacionalmente, já que não existe poder além do estado para preservá-los. A tradição da guerra justa, então, concorda com a visão pacifista de que a guerra é moralmente questionável, mas também considera a posição realista de que, às vezes, a guerra é melhor do que o mal que sucederia se ela não ocorresse. Ao recuperar a origem e a substituição desse pensamento antigo para a atualidade, Whetham reflete sobre as atitudes em relação à guerra ao longo dos séculos.
Guarin Robledo e Bromberg advogam sobre a relevância e a utilidade de materiais e fontes antigas na teorização e implementação de métodos contemporâneos edificadores da paz. Em especial, eles examinam os esportes e o atletismo como ferramentas para transformar combatentes de tempos de guerra em combatentes de tempos de paz, para mitigar as consequências sociais negativas da guerra e para desenvolver uma comunidade transnacional resiliente e interconectada. Bromberg oferece uma comparação transcultural de abordagens para a resolução de conflitos por meio de competição atlética e sugere usar o esporte como ferramenta de intervenção em sociedades pós-conflito. Ele enfoca materiais oriundos do antigo atletismo grego e realiza conexões entre as práticas antigas e as modernas para tirar lições úteis para os praticantes de hoje. Guarin Robledo aborda o poema didático de Hesíodo, Trabalhos e Dias, e a leitura por Friedrich Nietzsche do trecho em que a natureza dual de Éris é explicada, duas passagens que abordam a neutralização de conflitos e sua substituição por meio de rituais não violentos associados ao esporte. Além disso, ele examina os escritos biográficos de Hermipo de Esmirna sobre Licurgo e seu papel em conseguir a trégua olímpica (ekeicheria), bem como um conto escrito por Robert Graves, veterano britânico da Primeira Guerra Mundial, dedicado aos jogos disputados durante a Trégua de Natal em 1914. Esses dois textos ilustram como a competição esportiva se constitui em ferramenta valiosa na resolução de conflitos.
Molano Parrado analisa como as lágrimas que Aquiles e Príamo compartilham no canto 24 da Ilíada permitem a resolução da luta pelo corpo de Heitor. Além disso, de certa forma, fornece um modelo para resolver o conflito violento entre gregos e troianos. Ela sugere que o choro adquire uma função social na epopeia homérica, pois funciona como um estímulo na negociação entre Aquiles e Príamo. O choro tem efeitos terapêuticos nos personagens e alcança o reconhecimento compartilhado de seu sofrimento. Por fim, ela explora como a hospitalidade nessa cena, que é consequência das emoções compartilhadas e do reconhecimento de sofrimentos comuns, torna os dois personagens capazes de demonstrar empatia um para com o outro.
A contribuição de Dos Santos envolve o papel desempenhado pela clementia (misericórdia/clemência) como uma ferramenta particular de construção da paz na República Romana Tardia e no início do Principado. Ele investiga algumas das condições históricas e filosóficas que determinam a mudança de moderatio ou temperança para clementia (misericórdia). A misericórdia torna-se um conceito intimamente relacionado com a nova era do poder político autocrático derivado das Guerras Civis e, portanto, não apenas justifica a autoridade do princeps, mas também prepara o terreno para a Pax Romana. Concentrando-se principalmente nos escritos de Pseudo-Salústio, Cícero, Augusto, Sêneca e Tácito, ele demonstra que moderatio e clementia são virtudes inter-relacionadas aplicadas a diferentes contextos históricos.4
Referencias
BURTON, John. The theory of conflict resolution. Current Research on Peace and Violence, v. 9, n. 3, p. 125-30, 1986.
GALTUNG, Johan. An editorial. Journal of Peace Research, v. 1, n. 1, p.1-4, 1964.
GREWAL, Baljit. Johan Galtung: positive and negative peace. School of Social Science, Auckland. University of Technology, 2003. https://www.academia.edu/744030/Johan_Galtung_Positive_and_Negative_Peace2003. Access on: Feb. 28, 2023.
Notas