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História, memória e a narrativa pliniana1

History, memory, and Plinian narrative

Ana Thereza Basilio Vieira
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

História, memória e a narrativa pliniana1

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-17, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 20 Diciembre 2022

Aprobación: 13 Marzo 2023

Resumo: Plínio o Velho compôs inúmeras obras no primeiro século de nossa era. No entanto, apenas a Naturalis Historia, sua derradeira composição, chegou até nossas mãos, preservada em sua integridade. Trata-se de uma obra controversa, quer por seu teor, quer pelo gênero em que foi composta, quer pelo empenho do autor, quer pelo próprio tamanho da obra. Autor este que foi contestado e redimido pela crítica literária ao longo dos séculos. Buscarei mostrar como o autor se serve da memória para revelar a grandeza do homem romano e da própria natureza. Primeiramente, mostrarei algumas definições de história e de memória, valendo-me, sobretudo, da obra de Le Goff (2000). Passo, a seguir, a analisar a memória em relação com a escrita pliniana, de forma geral, para depois prosseguir analisando a constituição de parte do livro XXX, que trata da história da magia, como exemplar para o estudo da memória. Por fim, cito como o autor faz uso do vocábulo memoria ao longo de sua obra para evocar a história passada dos romanos.

Palavras-chave: História, memória, Naturalis Historia, passado.

Abstract: Pliny the Elder composed many works in the first century of our era. Nevertheless, Naturalis Historia, his last composition, is the only work that came to our hands preserved in its integrity. It comes to be a controversial work, whether for its contents and for the genre in which it was composed, as well as the author’s commitment and its size. The literary critic has both denied and redeemed this author over the centuries. I will point out how the author employed the memory to reveal the grandeur of the roman citizen and that of the nature herself. First, I will show some definitions of history and memory, chiefly citing Le Goff’s work (2000). Next, I proceed to analyze memory in contrast with Plinian writing in general, to continue, then, the analysis of the constitution of the book XXX, whose subject is the History of Magic, as an example for the study of memory. Finally, I cite how the author uses the word memoria along his work to evoke Roman’s past history.

Keywords: History, memory, Naturalis Historia, past.

A história de uma civilização se constrói através de ações memoráveis, algumas dignas, outras nem tanto. Recordar fatos passados e torná-los compreensíveis é tarefa por vezes árdua, ainda mais quando não se presenciaram os eventos a serem narrados. A memória, própria e alheia, se torna, portanto, peça fundamental na empreitada de trazer para o momento presente empresas passadas. Ela pode ser considerada como um meio de coletar e preservar informações para gerações futuras, apresentando o ponto de vista do narrador, que escolhe os episódios que considerou mais relevantes, como um projeto narrativo. A memória pode ter um caráter afetivo, expondo sentimentos diversos, amores, paixões, ódios, rancores e tantos outros sentimentos. Pode ainda a memória ser um recurso narrativo, proficuamente utilizado pela retórica, sendo a última parte constitutiva do discurso, onde prevalece a coerência interna do discurso e o encadeamento lógico das ideias, a fim de proporcionar maleabilidade à narrativa.

Em sua obra História e memória, Jacques Le Goff enfatiza que a memória coletiva é essencial para as civilizações, antigas ou em progresso, dominantes ou dominadas, pois a partir dos eventos passados podemos melhor discernir como agir no presente. Ao discorrer sobre o valor da memória, diz o historiador:

Mas a memória coletiva não é apenas uma conquista: é também um instrumento e um objetivo de poder. As sociedades nas quais a memória social é principalmente oral, ou as que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, permitem melhor compreender esta luta pelo domínio da recordação e da tradição, esta manipulação da memória. (Le Goff, 2000, p. 57)

A memória pode, então, não só trazer à luz fatos passados, mas também tentar manipulá-los através de seleções, observações ou apagamentos. Não é raro depararmos com algum personagem cuja existência é quase ou completamente desconhecida pela falta de registros, pela aniquilação parcial ou total de seus vestígios. Por vezes, existia uma memória, oral, que aos poucos foi sendo mal entendida, esquecida, apagada. Como se nunca tivesse existido, como se fosse fruto de uma imaginação outrora fértil de algum indivíduo, ansioso por relatar alguma anedota, algum caso curioso. Outras vezes, a história se relacionava a um grupo tão restrito, como um grupo religioso, um clã ou uma família, que era uma questão de tempo para que sua história desaparecesse. Às vezes uma civilização inteira desaparecia, não deixando remanescentes. A memória, encerrada nas mãos de poucos, em grande parte pertencentes à ordo senatorial ou equestre, que poderia ter acesso aos estudos e ser depositária de todo o patrimônio de sua sociedade, ia se perdendo aos poucos. O desaparecimento dessas pessoas, por inúmeros motivos – sociais, financeiros, comerciais, políticos ou outros – levava a um aniquilamento da história. História esta que, por vezes, somos nós que ainda não sabemos ler, buscando em registros escritos o que pode estar encerrado em gravuras, pinturas, porcelanas, construções e monumentos. Devemos, pois, nos propor a saber ler as pegadas da história, estar abertos às evidências, atentos aos sinais.

A memória, como dissemos, pode ser encontrada em documentos e monumentos, como aponta Le Goff (2000, p. 103): “A memória coletiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos”. Por monumento, ele designa a “herança do passado”, enquanto que por documento entende ser “a escolha do historiador”. A partir daí, definirá o autor que a palavra monumento remete à memória, derivada do verbo memini (“recordar, lembrar”), como aquilo que evoca e perpetua o passado, tais como atas, atos escritos, decretos e outros. Já documento, derivado do verbo doceo (“ensinar, indicar”), “parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica [...], testemunho escrito” (Le Goff, 2000, p. 104). Com o decorrer dos séculos, outras noções foram acrescidas a um e a outro termo, como, por exemplo, “coleções de documentos” para definir monumento, conforme a história vai se utilizando ou se unindo a outras ciências para entender o passado.

Pensemos ainda em histórias ou relatos que perambulam por nossa memória, mas que, a bem pensarmos, podem ser, no mínimo do dizer, duvidosas, intrigantes e até mesmo fantasiosas. Que dizer das narrativas da Ilíada ou da Eneida? Logo virão dizer que são epopeias, narrativas inventadas, gestas que celebram heróis. E porventura não há um fundo de verdade nessas histórias? Afinal, quantas vezes se procurou aqui e ali onde se localizaria Troia? E se encontrou. Não só uma, mas uma superposição de cidades denominadas de Troia. E assim ocorreu com tantas outras nações, cidades, povos. Mesmo com ares de descrença de várias pessoas, se procura incessantemente por Atlântida. E se assim não fosse, talvez até hoje não tivessem descoberto Pompeios e Herculano, soterradas pela erupção do vulcão. Estas são igualmente histórias que integram os monumenta, analisadas sob o ponto de vista dos documenta, que se constituem em testemunhos das representações e percepções de determinadas época ou períodos, essenciais, portanto, para a História Cultural.

“O documento é a base para o julgamento histórico” disseram Karnall e Tatsch (2009, p. 9), pois o historiador se fundamenta nos documentos para tecer suas narrativas. Seguem os autores afirmando que “Discutir o que consideramos um documento histórico é, na verdade, estabelecer qual a memória que deve ser preservada pela História e qual o estatuto da própria História.” (Karnall, Tatsch, 2009, p. 9-10).

E, no entanto, nem todo documento é histórico, ao menos não necessariamente no momento de sua realização, pois depende de fatores diversos até chegar à sua valorização, como a época, o leitor e a sociedade. Assim, um livro, uma carta, um pergaminho, uma inscrição podem permanecer encerrados em arquivos, desprezados, esquecidos, até que alguém descerre o véu que lhes encobre, lhes traga à luz, lhes relembre e dê a importância que merecem, constituindo-os, de fato, como um documento histórico. E essa pessoa pode sofrer a crítica por ter lidado com material considerado menor, de pouco valor, até que outro autor, por sua vez, lhe confira autoridade, lhe reconheça como importante, necessário e eficaz para seus fins.

Os documentos históricos proporcionam um diálogo constante entre presente e passado; tornando-se, portanto, narrativas em construção constante. É um diálogo porque depende, ainda, do leitor ou das chaves de leitura comuns a cada época, pois um documento pode sugerir uma leitura da época de Catão o Censor, outra da época de Augusto, outra ainda da época de Nero ou uma nova da época de Vespasiano, só para citar alguns exemplos.

Pierre Cabanes, no capítulo “A originalidade da história da Antiguidade”, diz: “Admitamos como certo que os historiadores acreditam em fantasmas e que, de uma ou de outra maneira, eles têm o espírito frequentado pela Antiguidade que conhecem. É indispensável” (Cabanes, 2009, p. 9). Nós, leitores e estudiosos, somos confrontados a entender esse passado tal como foi, não como nós queremos que ele tenha sido, com nossos olhos embaçados por mil informações, tentando aplicar ao passado noções que não existiam, estereótipos e conceitos desconhecidos da Antiguidade. Devemos reconhecer que o mundo antigo – grego, romano, egípcio, caldeu ou qualquer outro – ainda se constitui em novidade para nós.

Em 1905, em artigo publicado no The New York Latin Leaflet, William Merrill chamava atenção para uma questão: a de que os autores latinos não determinavam explicitamente a imitação de seus antecessores. Em verdade, ao retomar gêneros, assuntos, versos ou personagens de uma literatura precedente, não era necessário mencioná-la formalmente, pois a mimesis não era só a imitação ipsis litteris. Ao fazer uso de determinada expressão, de determinado adjetivo, o leitor romano deveria ser capaz de reconhecer a(s) obra(s) aludida(s). Após citar as obras iniciais da literatura latina que se estabeleceram sob os alicerces de uma literatura grega, em que, por exemplo, Plauto sequer chegaria a citar as peças de Menandro que lhe serviram de ponto de partida, Merrill aponta para a fundamentação da literatura latina subsequente em bases gregas, salientando, no entanto, que a literatura latina não é tão somente imitativa, mas que a imitação é parte inegável de sua estrutura. Diz o autor: “Satura tota nostra est, diz Quintiliano, e a literatura grega não tem nada comparável com o trabalho de Marcial em seu campo. E desde o primeiro ao último no catálogo de escritores latinos existe uma marca tanto individual quanto nacional” (Merrill, 1905, p. 1; trad. nossa).2

É, portanto, o elemento nacional essencial à literatura latina; algo que a torna independente, embora aqui e ali imitativa da literatura grega. E o romano gosta de expressões claras, respostas para suas incertezas, daí a primazia pela tradição, pela manutenção do que, aparentemente, deu certo. Não significa, porém, que não haja espaço para novidades. Ao contrário, elas são muito bem-vindas, mas sob uma base forte. A imitação é, pois, mais que necessária e benfazeja aos olhos romanos, que, diferentemente de nós, modernos, não viam problemas no uso desse artifício. A imitação pode ser da forma, do conteúdo, da própria escrita. Afinal, quem não se compraz em descobrir Safo ou Calímaco nas entrelinhas de Catulo? Ou Homero nos hexâmetros de Virgílio? Teócrito nas Éclogas do mesmo Virgílio? Para não falar das confluências internas, como um Ovídio relendo Catulo ou Ovídio relendo a si mesmo.

A anuência dos leitores e ouvintes é parte fundamental dessa construção. O autor imita porque sabe que seus receptores serão capazes de reconhecer os originais ou que, ao menos, tentarão reconhecer. Assim como serão capazes de reconhecer a outra ponta da linha: a originalidade, que se concentra no tratamento do assunto, na adequação da linguagem, no uso de cláusulas próprias, no recurso à persuasão da escrita.

A memória e a escrita pliniana

A Naturalis Historia (História Natural) ou HN, como doravante passarei a citar, é a única obra supérstite de Plínio o Velho, que, a deduzir de seu título, trata de história. Mas que história? A história mítica? Ou a história dos antepassados, ambas comuns a uma historiografia celebrada entre gregos e latinos. A história analítica, que privilegiava o conjunto de relatos de caráter político-moral, narrando cronologicamente os eventos? Ou uma história de seu tempo, anotações, relatos ou comentários (con)centrados no papel que exercem determinados personagens? Ao longo desta exposição, veremos que podemos ter várias acepções dentro da obra de Plínio.

Momigliano, em As raízes clássicas da historiografia moderna, em sua edição brasileira de 2004, sustenta que a história, a partir de Tucídides, se transformou em “uma narração de acontecimentos políticos e militares” (p. 69), princípio a que os historiadores aderiram, preferencialmente tecendo comentários a respeito de acontecimentos presenciados por eles mesmos, ou seja, uma história preocupada com questões que levem a novas adesões, posicionamentos, críticas, que possam desencadear discussões que reflitam o cotidiano.

Esclarece ainda o pensador italiano que todos os autores de obras levando em conta a erudição, tratando de religião, leis, genealogia e tantos outros temas, não eram considerados como historiadores de fato. Suas obras, no entanto, não deixavam de ser produzidas e despertavam interesse, embora, segundo Momigliano:

[...] caracterizados por uma falta de interesse primordial pelo aspecto político, por uma indiferença pelas questões contemporâneas de importância geral e por uma falta de qualidade retórica [...], embora [...] caracterizados por um interesse pelos detalhes minuciosos do passado, por um patriotismo local não disfarçado, pela curiosidade dos eventos pouco comuns e por monstruosidades, e pela ostentação da erudição em si mesma. (Momigliano, 2004, p. 94)

Esse tipo de história, séculos mais tarde, dará origem aos estudos antiquários ou pesquisa antiquária, nomenclatura atribuída diversas vezes à obra pliniana. Trata-se de uma narrativa que se caracteriza pela sistematização, não pela cronologia dos fatos. Aí está, pois, a diferença primordial apresentada por Momigliano entre História – de fato – e a Pesquisa Antiquária: o tempo para aquela e a sistematização para esta.

Entretanto, a História continua a se transformar, digo, a escrita histórica, que permite, tempos depois, pensar em biografias, em fazer a erudição tomar seu espaço também dentro daquela História primeva. Acrescentemos ainda o caráter enciclopédico, que, a partir do século I a.C. e, mormente, entre os romanos, teve como seu expoente Varrão e suas Antiquitates rerum humanarum (Antiguidades das ações humanas). Dirá Momigliano que “a pesquisa antiquária revelou aos romanos costumes a serem reavivados e precedentes a serem respeitados” (2004, p. 103). Seria Plínio um autor enciclopédico, à maneira antiga, como sustentam alguns pesquisadores? No entanto, não me preocuparei com esta discussão.

Se pensarmos nos escritos plinianos, segundo sua mais confiável testemunha biográfica, Plínio o Jovem, o tio teria escrito uma História das guerras Germânicas, em vinte livros, A vida de Pompônio Segundo, dois livros, a História depois de Aufídio Basso, trinta e um livros, Estudioso, três livros, Expressão latina, oito livros, além de algumas outras, escritas em diferentes gêneros literários. Não faltava a Plínio, o tio, sempre – ou quase sempre – a serviço do Império Romano, assunto para suas obras, fidelidade aos fatos descritos e provável anuência de seus leitores.

Quanto à HN, há quem considere dois conceitos, ou traços, de história em Plínio: 1) a chamada história tradicional – analítica – de caráter político-moral; 2) a história de fatos, centrada nas atividades humanas e no papel que estas desempenham. Como dissemos, Plínio tem acesso às casas imperiais, é testemunha do engrandecimento do Império. E, no entanto, parece o autor ter predileção por um tempo um pouco mais remoto, em que Augusto procurava restabelecer a ordem, os costumes, a tradição.

A tomar o prefácio da HN como parâmetro, diríamos que Plínio é um autor versado em atos contemporâneos. Além do endereçamento da obra – uma praxe literária – ao Imperador, ou melhor, aos imperadores – Vespasiano (pai) e Tito (filho) – há menções aos feitos de ambos, com evidente predominância para o segundo, atento às necessidades do Império. Diríamos, então, que Plínio é um autor “testemunha de seu tempo”, tomando de empréstimo o título da obra dirigida por Jacques Pigeaud e Reta, Pline l’Ancien, témoin de son temps.

No artigo “Pline et l’historiographie latine”, do supracitado livro, Jal aponta:

De fato, o método diacrônico da exposição analítica, própria à história tradicional, parece ter marcado bastante a narrativa pliniana, mesmo que o autor, provavelmente mais que outros (haja vista a natureza de sua matéria), tenha sofrido e lastimado pequenas dificuldades. (Jal, 1987, p. 173; trad. nossa)3

A partir daí, poderíamos tomar por pressuposto que Plínio é esquecido, immemor, dos fatos antigos. Então, deixemos de lado a primeira parte do prefácio e nos voltemos para outro momento, comumente apontado por pesquisadores, em que Plínio define seu conteúdo programático. Refiro-me à famosa passagem em que nosso autor descreve como compôs a obra:

Viginti milia rerum dignarum cura – quoniam, ut ait Domitius Piso, thesauros oportet esse, non libros – lectione voluminum circiter duorum milium, quorum pauca admodum studiosi attingunt propter secretum materiae, ex exquisitis auctoribus centum inclusimus triginta sex voluminibus, adiectis rebus plurimis quas aut ignoraverant priores aut postea invenerat vita. Nec dubitamus multa esse quae et nos praeterierint. (PL., NH praef. XVII)

Incluí em 36 volumes 20 mil assuntos dignos de cuidado (posto que, como diz Domício Pisão, convém que sejam arquivos, não livros) pela leitura de aproximadamente 2 mil volumes, dos quais muito pouco os estudiosos tratam pelo segredo da matéria, cem autores escolhidos, acrescentando vários assuntos, que ou os anteriores ignoraram ou os homens descobriram depois. E não duvidamos que muitos são os assuntos omitidos. (trad. nossa)

Acrescentemos a essa nota a apresentação do livro primeiro, denominada liber 00 continentur, algo como “conteúdo do livro 00”,4 comumente designada como índice, catálogo ou mesmo sumário, onde Plínio apresenta os assuntos de cada um dos livros subsequentes, seguidos de duas listas, de autoridades nacionais e estrangeiras. Dentre tais autoridades, discernimos autores renomados lado a lado com outros pouco conhecidos ou completamente desconhecidos. Autores, em sua grande maioria, de um passado distante. Pensaríamos, assim, em uma história longínqua, talvez.

Afinal, que história Plínio escreve? Todas, a contento do tema exposto. Ou melhor, inicia-se a HN com a história antiga e, no decorrer de sua escritura, passa à história presente. Principia com a história estrangeira, alternando-a e terminando com aquela nacional.

Apraz ao autor discorrer sobre a antiguidade, os fatos memoráveis, a cronologia dos acontecimentos, mas também os detalhes que a maioria dos predecessores desprezou: os fatos esquecidos, aqueles horrendos, as abominações. Daí a passar aos fatos admiráveis é um pequeno passo.

A partir daqui podemos avançar no estudo da história pliniana de diversas maneiras: continuar na abordagem e definição do gênero, passar aos temas tratados, ao estilo de escritura e tantos outros. Frequentes são os comentários acerca de uma leitura da HN como a história dos vencedores ou conquistadores, evidenciada por uma expressão presente no Prefácio 16 – populus gentium uictor (“povo vencedor das nações”) – e também pela menção ao longo de toda a obra à grandeza romana, que produziu feitos por todas as dimensões do orbis terrarum (“mundo”).

Assim, as dimensões e conquistas do Império são enaltecidas. A grandeza se encontra não só nos feitos, mas nas próprias proporções das coisas: Roma possui o maior monumento, o mais longo sistema de aquedutos, registrou pela primeira vez um tipo diferente de animal ou de mineral.

Porém, toda essa grandeza foi angariada a custo de um preço muito alto: a deterioração dos costumes, a ambição pelas riquezas, a luxúria que grassam pelo Império. Tema esse retomado de tempos mais remotos, da República, em que Salústio já apontava como uma das causas da conjuração de Catilina a corrupção dos costumes, o amor às riquezas, a ambição desmedida em detrimento da busca pela glória, da boa glória.

A história pliniana é uma história dos grandes feitos, não da guerra, mas daqueles proporcionados por uma paz romana. Não aquela de Augusto, adquirida através da força. Mas a paz da civilização, de quem pode transitar por territórios diversos, trocar mercadorias, conhecimentos, culturas.

Rouveret, no artigo “Toute la mémoire du monde”, fala sobre uma memória artificial, que já fora apontada na Retórica a Herênio, como um dos artifícios da retórica:

Ora, a prática da memória artificial tem papel muito importante na atividade intelectual dos antigos; ela determina comportamentos específicos na percepção do mundo exterior e na apreensão de textos literários ou de obras de arte. (Rouveret, 1987, p. 125, trad. nossa)5

A recordação de lugares e personagens importantes se precisa também com a localização física em que se encontram (perto do foro, em coleções particulares ou públicas, no templo etc.). Prossegue a autora apontando que a coleção pública se constitui em “lugar privilegiado da memória” (lieu de mémoire privilégié), pois que representa a glória dos homens – entenda-se nobres romanos – e a própria história – a ação. Diz Rouveret (1987, p. 126, trad. nossa): “Roma é lugar de memória do mundo, que, dessa forma, sanciona seu domínio universal” (Rome est le lieu de mémoire du monde qui sanctionne ainsi sa domination universelle), tópos da propaganda flaviana.

Plínio é defensor absoluto de tornar públicos todos os conhecimentos, aí englobando coleções, arquivos, estátuas e o que mais o universo possuir. A utilidade (utilitas) acima de tudo! Esse é outro tópos de época flaviana, como podemos divisar através do prefácio da NH; uma forma de opor esta família àquela de alguns predecessores, como as de Calígula e Nero.

Estudos sobre a obra de Plínio se tornaram mais intensos a partir de fins do século XX e no século XXI, com discussões levadas adiante, sobretudo, em simpósios ocorridos em França, Itália e Inglaterra. Tais estudos, estendidos a artigos e capítulos de livros, segundo escolhas, referências, inclusões e exclusões, manejo de material, que orientam a leitura da obra, abordam Plínio prevalentemente de duas formas: do ponto de vista do imperialismo ou do ponto de vista historiográfico. Mas essas não são as únicas propostas, como mostrarei em uma brevíssima revisão bibliográfica das principais ideias relacionadas aos estudos plinianos: 1) Mary Beagon (1992) e Andrew Wallace-Hadrill (1990) se interessam pelo conceito romano de natureza; 2) em duas coleções de artigos publicadas na forma de Atas de Simpósios, realizados ambos em Como (1982 e 1984), exclusivamente dedicados a Plínio, prevalece o papel de Plínio habitante da região de Como e da tradição histórica; 3) Gian Biagio Conte (1986; 2003) entende que a HN revela o homem romano como alguém interessado e competente; 4) Jacqueline Vons (2000) preferiu se ater à representação da mulher como um reflexo do sistema cultural; 5) Vivian Nutton (2004) estudou a medicina antiga presente na HN; 6) Laura Ramosino (2004) confirma a tendência aos estudos históricos de Roma na obra pliniana; 7) Trevor Murphy (2004) e Valérie Naas (2002) entendem ser o imperialismo romano a temática de toda a obra, ainda com caracterizações da HN como enciclopédia; 8) Sorcha Carey (2006) se dedica ao estudo das artes, entendendo a HN como um verdadeiro extenso catálogo; 9) Aude Doody (2010) direciona seus estudos para a recepção da obra pliniana, tomada no contexto de uma enciclopédia; 10) Sandra Marchetti (2011) considera que Plínio exacerba o moralismo romano, conservador, social e intelectualmente; 11) Roy Gibson e Ruth Morello (2011) editam uma obra que pretende trabalhar com os temas e contextos múltiplos da obra; 12) Eugenia Lao (2016) privilegia a organização taxonômica contida na HN, estabelecendo uma correlação entre a produção e a recepção da criatividade de Plínio ao utilizar outras obras para compor a sua obra derradeira. Deixo de citar aqui outros estudos mais especializados, publicados na forma de artigos em periódicos ou capítulos de livros, mas que, de uma forma ou de outra, acabam por se enquadrar em algum dos temas acima destacados.

Aude Doody (2010, p. 1) ainda dirá que, por reunir tantos assuntos em uma única obra, Plínio já foi considerado como um “ícone” da pesquisa científica ou como um “mártir” da ciência racional face à ignorância e à superstição durante o século XVIII, por exemplo. Na atualidade, as três chaves de leitura prevalentes, segundo Doody, seriam: 1) a leitura do ponto de vista político ou retórico; 2) o uso da obra como uma enciclopédia para consulta de fatos isolados; 3) a leitura em seções especializadas. Aqui faço um aparte para explicar que se torna bastante problemática a classificação dos livros da HN por assuntos, pois que tal classificação em categorias – cosmologia, geografia, antropologia, zoologia, botânica, medicina e mineralogia ou ainda céus, terra, homem e outros animais, plantas, medicina herbária e animal, metais e minerais – é anacrônica e pode levar a enganos, pois, por exemplo, a descrição de plantas para o uso como remédio perpassa toda a obra. Limitar os temas a determinados livros seria, portanto, limitar as leituras da obra, mantendo a chave enciclopédica.

Em verdade, a leitura da HN como uma enciclopédia é uma função atribuída mais pela história de sua recepção do que pela própria Antiguidade, que entendia a enciclopédia como uma reescrita do que conta como conhecimento cultural comum. Mas não é essa a leitura que me interessa aqui e tornarei à leitura sobre a memória.

Plínio não recolhe simplesmente as informações para citá-las em sua obra. Trata-se de um trabalho efetivamente de investigação literária, que contém seleções, anotações, inserção de narrativas orais, descrições, identificações, comparações, oposições e opiniões, refletindo o que podemos chamar de um sistema social, político e cultural. Através de sua obra, o autor permite que seus leitores percebam seu pertencimento àquela narrativa, que é uma narrativa histórica, do passado e do presente romano.

O contexto cultural – a época flaviana – dá a Plínio a oportunidade de trabalhar com temas complexos, variados, frutos de uma prática cultural intelectual, que é capaz de propor uma espécie de conversação ou diálogo, através da justaposição de conhecimentos, do autor com o leitor. Para tanto, o leitor deve revisitar suas lembranças, os banquetes, as apresentações, as leituras. Segundo Lao: “[...] a memória era inquestionavelmente o modo predominante de recuperação de informações naquele tempo” (2016, p. 224, trad. e grifo nosso).6 Plínio incorpora o conhecimento estrangeiro a ideais tradicionais romanos, mantendo as diferenças entre nomenclaturas gregas e latinas.

Veremos agora como Plínio faz uso do próprio termo memoria em sua obra e para que fins.

Memória e a HN

O vocábulo memoria, -ae é usado por Plínio em praticamente toda a sua obra, levando em conta ainda outros termos correlatos como os adjetivos memor, -oris, memorabilis, -e e memorandus, -a, -um, os verbos memoro, commemoro e menini, o particípio memoratus, -a, -um e o adjetivo substantivado memorabilia. Ainda atentamos para a citação da falta de memória, marcada pelo verbo obliviscor e pelo substantivo oblivio, -onis, formas ausentes apenas nos livros XII, XXII e XXIV (dedicados aos remédios herbários). Entretanto, no livro XII – assim como em outros – podemos encontrar o termo monimentum, -i utilizado no sentido de lembrança ou monumento histórico.

No livro I, Plínio divulga que tratará da memória no livro VII, 24-6 – “memoria, vigor animi, clementia, animi magnitudo”7 – e no livro XXXI, 3-16 – “Medicinae: [...] quae memoriam [faciant], quae oblivionem [faciant]...”.8 Entretanto, quando abrimos o livro sétimo, não há menção alguma à memória tal como indicado, mas em outros tantos. Nos livros seguintes, a menção à memória – ou à sua carência – é constante. Veremos, pois, os usos que desses termos são feitos por Plínio.

Escolhemos,9 para exemplificar o uso da memória, o livro XXX da HN, que se insere no que comumente se indica como “Livros sobre remédios” ou “Livros de medicina”, entendidos como os livros XXVIII a XXXII, se tomarmos a divisão da obra mais corrente. Após discorrer sobre os usos de plantas, animais e mesmo de algumas secreções de origem humana como tratamentos terapêuticos, Plínio faz uma pausa em sua narrativa para traçar uma breve história da magia. Entendida em suas diversas formas e complexidades, as artes mágicas eram de uso amplo e corriqueiro em diversas sociedades pré-romanas. Plínio resgata como a magia chegou à Grécia e como, depois, se espalhou por território itálico, não obstante proibições constantes desde as Leis das XII Tábuas, que restringiam seu estudo e prática.

Desde as primeiras linhas desse livro, se torna evidente o ceticismo do autor com relação às artes mágicas. Retomamos o título de um artigo publicado por Grundy Steiner em 1955, “The skepticism of the Elder Pliny”, abrindo uma chave de leitura para especialistas posteriores que acreditavam ser Plínio cético – é exatamente esse o termo usado: cético – com relação a alguns assuntos, sobretudo magia e mirabilia (as coisas admiráveis). Dirá Plínio que “muitas coisas devem ser reveladas” sobre a verdadeira história dessa arte. Assim, somos informados de que a magia encerra em si três grandes artes ou ciências: 1) a medicina; 2) a religião e 3) a astrologia (ou artes matemáticas, como também era denominada).

A história da magia é desvendada quando Plínio resgata da “memória” de suas fontes que a arte teria se originado na Pérsia com Zoroastro. Fato indiscutível? Recuperando suas leituras, Plínio demonstrará que, embora o nome de Zoroastro seja considerado uma unanimidade entre os autores mais antigos, não há certeza quanto a sua época de existência ou mesmo se ele foi um único ou vários magos de mesmo nome. Assim, prossegue o autor com o anúncio de suas fontes ou autoridades: 1) Eudoxo, de Cnido (séc. V-IV a.C.), matemático, afirmou que Zoroastro vivera 6 mil anos antes da morte de Platão; 2) Platão, seu contemporâneo, teria concordado com essa leitura; 3) Hermipo, de Esmirna (meados do séc. III a.C.), foi o primeiro a expor os 2 milhões de versos de Zoroastro, relatando que ele próprio seguia Azonaces, mago que teria vivido 5 mil anos antes da guerra de Troia.10

Quebra-se a sequência histórica neste momento, quando Plínio insere um comentário que nos interessa. Diz ele:

Mirum hoc in primis, durasse memoriam artemque tam longo aevo commentariis intercidentibus, praeterea nec claris nec continuis successionibus custoditam. (HN XXX, 4, grifo nosso)

Antes de tudo é admirável que a memória e a arte resistiram por tão longo tempo, com comentários interrompidos, e ainda não conservados em resultados reconhecidos ou contínuos. (trad. nossa)

Eis aí o plano deste livro: resgatar e transmitir por escrito a história da magia em um relato sucinto e confiável, fundamentado em leituras as mais amplas possíveis, inclusive daquelas obras esquecidas pela memória dos homens durante séculos. Ao dar continuidade à lista de Magos, logo surgirão os nomes de Apusoro, Zárato, Mármaro, Arabantífoco e Tarmoendas, todos desconhecidos, cuja memória é resgatada por Plínio muito provavelmente de leituras de fontes secundárias, mais tarde, por sua vez, perdidas com o tempo. Confirma este fato o próprio Plínio “... dos quais não subsistiu nenhuma lembrança” (... quorum nulla exstant monumenta, HN XXX, 5). O único mago reconhecível seria Zárato, cujo nome latino ele não consegue associar a Zoroastro.

Plínio parece tão entusiasmado com seu resgate histórico-mnemônico que “repreende” Homero por ter se calado sobre o uso da magia na descrição da guerra de Troia. Acrescenta Plínio que tal informação “... não subsiste em outro lugar” (... non aliud constet, HN XXX, 5).

Em meio à narrativa histórica, pois que se delineia um quadro cronológico de autores e magos, há espaço ainda para digressões. A deixa foi justamente a alusão a Homero, que lhe permitiu falar sobre Proteu, as Sereias, Circe, as divindades infernais e as mães da Tessália, todos personagens da Odisseia. A digressão se estende a Menandro, que, por sua vez, mencionara o poder das mulheres da Tessália de “... fazer a lua descer” (... feminarum detrahentium lunam, HN XXX, 7), alusão a uma passagem presente na Bucólica VIII, de Virgílio: “Os encantamentos podem até fazer descer a lua do céu” (Carmina uel caelo possunt deducere lunam, Buc. VIII, 69),11 um artifício próprio de magas ou feiticeiras.

Plínio procede a encadeamentos completamente lógicos: primeiro ele fala da magia, depois dos magos, das autoridades que os citam, dos personagens que se servem das artes mágicas, dos relatos propriamente ditos e termina com comparações, procedimentos estes caros aos autores latinos, que se deliciavam em fazer remissões, alusões, emulações, esperando que seus leitores contemporâneos percebessem os jogos literários utilizados e se comprazessem com a lembrança de autores e textos recuperados das entrelinhas, nos modos sutis como o tema era abordado.

Finda a digressão, retorna Plínio à lista de Magos, suscitado por seu último autor – Ostanes, o qual acompanhara Xerxes, rei dos persas. É, portanto, hora de voltar à arte dos persas. Após mencionar Pitágoras, Empédocles, Platão e Demócrito, este último censurado por considerar Apolobeque e Dardano como detentores da ciência mágica, Plínio faz uma breve alusão a Hipócrates por sua dedicação ao estudo da medicina, sendo contemporâneo de Demócrito, no trecentésimo ano da fundação de Roma, isto é, em 453 a.C.

Neste ponto da narrativa, Plínio aborda o fato de as artes mágicas serem mal vistas (ou não plenamente compreendidas) porque algumas de suas práticas poderiam ser consideradas danosas. Em verdade, Plínio não se atenta para o fato de que a magia transmitida pelos Magos é uma distorção da seita persa primitiva, de Zoroastro, que era inacessível a não iniciados. Tratava-se, portanto, de uma magia propagada por pessoas que tinham mudado os primeiros ensinamentos, introduzindo elementos e cultos tidos como prejudiciais ao homem. Segundo Plínio, Ostanes teria sido o responsável por reproduzir e compartilhar seus segredos, levando os povos itálicos à sua prática indiscriminada. Até aqui, o autor procedeu ao resgate de uma memória estrangeira acerca da magia. E é a partir deste ponto que começa a narrativa sobre a memória do povo romano:

1) XII Tábuas se constituem como o primeiro registro em língua latina contendo uma proibição do uso da magia com práticas de imolação humana (HN XXX, 12);

2) Em 96 a.C. (657 da Fundação da Cidade), sob o consulado de Cn. Cornélio Lêntulo e de P. Licínio Crasso, o Senado emite um decreto confirmando tal proibição em território romano;

3) Tibério César, sucessor de Augusto, tenta expulsar os druidas e seus médicos das Gálias;

4) A Bretanha celebra a magia no tempo de Plínio, ignorando o mundo, diga-se Roma, que considera seus ritos monstruosos;

5) Nero tenta a todo custo se iniciar nas artes mágicas, chegando a prometer um reino para os Magos. Dirá Plínio: “Ninguém nunca favoreceu mais fortemente a nenhuma arte” (Nemo umquam ulli artium validius valuit, HN XXX, 14) e “Assim nos encheu mais vigorosamente de sombras” (Saevius sic nos replevit umbris, HN XXX, 15). No entanto, ele não logra êxito e volta sua atenção para outros fins.

Imediatamente, Plínio recorda as imposturas da arte, suscitado pela alusão a Nero, símbolo de tempos sombrios. Inicia-se, a partir daí, a narrativa sobre os animais usados em práticas mágicas. É neste momento que o emprego de verbos com a indeterminação do sujeito prevalece – acreditam (credunt); não julgam (nullum... iudicant); afirmam (adfirmant); não se encontrará (nec... invenietur), HN, XXX, 19; escarificam (circumscarficant); amarram como amuleto (adalligant), HN XXX, 21; lavam (coluunt); aplica-se (inditur), HN XXX, 22; tem-se como eficaz (efficax habetur); há entre eles os que... (sunt inter eos qui...), HN XXX, 23 etc., resgatando uma memória oral, não registrada por escrito.

A história da magia cede lugar à narrativa sobre os usos mágicos e o livro finda com uma alusão a Antípatro ministrando um remédio a Alexandre o Grande, fato retomado de Aristóteles, terminando, então, o livro com a lembrança de uma autoridade estrangeira.

Para encerrar nossa análise sobre a memória como característica inerente à escrita pliniana, citaremos alguns exemplos da obra como um todo, quando o autor utiliza o próprio substantivo memoria ou um de seus derivados:

Exstat annalium memoria sacris quibusdam et precationibus vel cogi fulmina vel inpetrari. (HN II, 140, grifos nossos)

Emerge da memória dos Anais que os raios podem ser condicionados e desencadeados através de determinados ritos sagrados e súplicas. (trad. nossa)

Plínio remonta a uma tradição registrada nos Anais de Roma, envolvendo rituais sagrados com as centelhas dos raios. O fato atestado na história/memória romana é de suma importância, pois assim passa a ser um fato incontestável, ainda que os mais céticos possam estranhar o fato de centelhas de raios poderem ser desencadeadas por pessoas.

Outro exemplo em que Plínio recorre à memória romana:

Maximus terrae memoria mortalium exstitit motus Tiberii Caesaris principatu, XII urbibus Asiae una nocte prostratis, creberrimus Punico bello intra eundem annum septies ac quinquagies nuntiatus Romam, quo quidem anno ad Trasimenum lacum dimicantes maximum motum nec Poeni sensere nec Romani. (HN II, 200, grifos nossos)

O maior terremoto, na memória dos homens, ocorreu durante o principado de Tibério César, arrasando doze cidades da Ásia numa única noite; a maior série de tremores ocorreu durante a guerra púnica, quando se anunciou que Roma teve cinquenta e sete terremotos, no mesmo ano em que, perto do Lago Trasimeno, nem os combatentes romanos nem os cartagineses sentiram um grande tremor. (trad. nossa)

Aqui a descrição é de um fato de grandes proporções: um terremoto que atingira doze cidades asiáticas. Mas o enunciado a que Plínio dá mais atenção é para Roma, que sofre não um, mas cinquenta e sete terremotos no mesmo ano, fato este que seria, de fato, digno de lembrança, sobretudo porque fazia parte de uma memória não tão longínqua, durante a primeira guerra púnica, portanto, durante a República. E é exatamente por isso que Plínio rememora os atos, porque a República lhe interessa como um tempo bom, de grandes feitos, tempos a serem revividos durante a época flaviana.

No livro VII, que trata do homem, o autor descreve o que entende ser a memória:

Memoria necessarium maxime vitae bonum cui praecipua fuerit haut facile dictu est tam multis eius gloriam adeptis. (HN VII, 88, grifo nosso)

Não é fácil de se dizer a quem fora notável a memória, dom muitíssimo necessário à vida, tantos os que conquistaram a sua glória. (trad. nossa)

Eis a definição de memória: “dom muitíssimo necessário à vida”. Trazer algo à memória faz parte da vida de todos nós. Sem ela, de que adiantariam os feitos gloriosos dos antepassados? As tradições a serem continuadas? E mesmo os erros a não serem repetidos?

Poderíamos continuar aqui a citar outros exemplos da HN sobre a memória, eles são muitos. Finalizamos com um exemplo que consideramos interessante, uma narrativa lendária:

Colitur ficus arbor in foro ipso ac comitio Romae nata sacra fulguribus ibi conditis magisque ob memoriam eius qua nutrix Romuli ac Remi conditores imperii in Lupercali prima protexit, ruminalis appellata quoniam sub ea inventa est lupa infantibus praebens rumin (ita vocabant mammam)... (HN XV, 77, grifos nossos)

No próprio Foro e no Comício se cultua uma figueira, nascida em Roma, consagrada aos raios ali guardados, mais pela sua memória, que, nutriz de Rômulo e Remo, fundadores do Império, primeiramente os amparou durante as Lupercálias, chamada a figueira de ruminal, porque embaixo dela foi encontrada uma loba dando às crianças sua rumin (assim chamavam a teta)... (trad. nossa)

O cenário é romano – o Foro, o Comício, os fundadores de Roma, a festividade, a loba –, mas a árvore, muito embora “nascida em Roma” (Romae nata), como frisa o autor, é de origem estrangeira, do Oriente Próximo. A história é resgatada de uma fonte inquestionável para os romanos: Varrão, que, em Res rusticae II, 11, 5,12 alude à Ficus Ruminalis (a figueira ruminal), alusão a Rumina, antiga deusa dos lactantes, à qual se oferecia leite durante seus rituais. Não seria a narrativa mais frequente relacionada a Rômulo e Remo, porém a autoridade em que se fundamenta é segura.

Conclusão

Pudemos observar ao longo da exposição que Plínio não recorre ao uso do vocábulo memoria e a seus equivalentes, contrários e derivados, como aquele último recurso da retórica, estudado após a ação, tal como nos apresenta Lineide Mosca, em Retóricas de ontem e de hoje, dizendo que a memória: “É a retenção do material a ser transmitido, considerando-se sobretudo o discurso oral, em que um orador transmite mensagem a um auditório” (Mosca, 2004, p. 29).

Não é a um auditório que Plínio se dirige, mas a um público leitor. Não é no Foro que a HN será lida, mas nos domicílios. Não é a um juiz ou a uma assembleia que a mensagem é transmitida, mas a todos que anseiam por conhecimento. Conhecimento e utilidade, como vimos, são os motes da História Natural. Entendemos que Plínio os transmite através de uma narrativa histórica, que faz uso da memória para transmitir sua mensagem. É através do estudo dos documentos, isto é, dos testemunhos escritos, lidos, selecionados e anotados, conhecidos ou desconhecidos, fontes principais ou secundárias, estrangeiras e romanas, com diferentes pesos, mas igualmente descritas e questionadas, pois, retomando Le Goff, “O documento não é uma mercadoria invendida do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que nela detinham o poder” (2000, p. 112). O documento histórico é sinônimo de poder. E a memória é uma de suas principais fontes.

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Notas

1 Conferência apresentada em novembro de 2022 para promoção a Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2 Satura tota nostra est says Quintilian, and Greek Literature has nothing comparable with Martial in his special field. And from the earliest to the latest in the catalogue of Latin writers there is both an individual and national print.
3 De fait, la méthode diachronique de l’exposé annalistique, propre à l’histoire traditionnelle, semble avoir fortement marqué l’exposé plinien, même si l’auteur en a, problablement plus que d’autres (vu la nature de son sujet), subi et deploré les étroites contraintes.
4 Devemos substituir o número 00 pelo correspondente a cada livro.
5 Or la pratique de la mémoire artificielle joue un rôle très important dans l’activité intellectuelle des anciens; elle détermine des comportements spécifiques dans la perception du monde extérieur et l’appréhension des textes littéraires ou d’œuvres d’art.
6 [...] memory was still unquestionably the predominant mode of retrieval in that era.
7 “Memória, vigor de espírito, clemência, grandeza de espírito”. (Trad. nossa).
8 Tratamentos: ... que produzem memória e esquecimento. (Trad. nossa).
9 A escolha do tema da magia, presente no livro XXX da HN, se dá por já virmos desenvolvendo pesquisas nesse campo há algum tempo. Gostaríamos de salientar que qualquer outro assunto da obra – como medicina animal, artes, minerais etc. – poderia ser usado para exemplificarmos o uso da memória, uma vez que esse se encontra por toda a obra.
10 A guerra teria ocorrido, aproximadamente, entre 1.300 ou 1.200 a.C. Portanto, Azonaces remontaria ao ano de 6.300 ou 6.200 a.C.
11 Tradução de João Pedro Mendes (1985).
12 “Eu não daria outro motivo”, digo, “para ter sido plantada por pastores uma figueira junto da capela da deusa Rumina. Lá, com efeito, costumam sacrificar com leite em vez de vinho e filhotes desmamados. Rumis, como antes se dizia, é úbere; de rumis, ainda agora se fala em carneiros subrumi, e em ‘lactentes’ de lac (Non negarim, inquam, ideo aput diuae Ruminae sacellum a pastoribus satam ficum. Ibi enim rumis, ut ante dicebant; a rumi etiam nunc dicuntur subrumi agni, lactantes a lacte). Tradução de Matheus Trevizam (2012).
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