Dossiê Temático: LEC-UFF - Classical Studies Seminar & Lecture Series

MORALES, Helen. Presença de Antígona: o poder subversivo dos mitos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2021. 192 p. ISBN: 978-65-5532-097-8

Maria Fernanda Gárbero
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil

MORALES, Helen. Presença de Antígona: o poder subversivo dos mitos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2021. 192 p. ISBN: 978-65-5532-097-8

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 36, pp. 1-3, 2023

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 04 Agosto 2023

Aprobación: 30 Agosto 2023

Publicado nos Estados Unidos em 2020, Antigone Rising, o terceiro livro da professora da Universidade da Califórnia Helen Morales, chega ao Brasil em 2021 pela Editora Rocco, traduzido por Angela Lobo de Andrade. Embora tenha como título uma personagem trágica muitas vezes desconhecida do grande público, a leitura que Morales propõe dos mitos da Antiguidade ao longo de oito capítulos parte de episódios contemporâneos e acessíveis, em diversos contextos, desde um massacre num campus universitário norte-americano até o clipe APESHIT, de The Carthers, duo composto pelos músicos estadunidenses Beyoncé e Jay-Z.

Em O que é o contemporâneo? e outros ensaios (2009), Giorgio Agamben nos propõe uma perspectiva teórica que vemos espelhada nos exemplos de Presença de Antígona, pois, para o filósofo italiano, é como se o passado ao ser parte do presente permitisse que “aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora” (Agamben, 2009, p. 72). Nesse sentido, a posição que Morales adota para ler a Antiguidade aproxima o leitor contemporâneo dos mitos por meio de exemplos atuais, viáveis ao entendimento de acontecimentos que rememoram narrativas culturais arraigadas e sustentadas há séculos.

Com base na perspectiva interseccional, por todos os capítulos do livro são postas em xeque questões de identidade, gênero, raça, classe, localização geográfica e etnia como elementos constitutivos de narrativas culturais eurocentradas, para pensar o lugar dos corpos destinados à dominação nos mitos tecidos e cantados por homens. De Homero a Ovídio, a autora subverte o caminho dos poetas na composição de sua rapsódia contemporânea, na qual uma assassina de violadores na cidade de Juárez, no México, as ativistas do #MeToo e a cantora pop Beyoncé, como rainha coroada numa história reescrita em pleno Louvre, se encontram com múltiplas imagens de mulheres que, desde a Antiguidade, subvertem com seus corpos a espacialidade do silenciamento. Logo, não nos parece estranho que, no lugar das musas evocadas pelos poetas, Morales evoque, em seu primeiro capítulo, as Amazonas outrora mortas brutalmente nas narrativas que, até hoje, exaltam personagens como Aquiles, o herói da Ilíada.

Ao afirmar que seu “livro começa onde a misoginia é consumada, com homens matando mulheres” (Morales, 2021, p. 19), percebemos que há um(a) leitor(a)-modelo (Eco, 1986) imbricada nesta partilha, isto é, uma leitora inclinada a compreender esse compilado de memórias provenientes dos mitos clássicos para a discussão de temas que trazem à cena violências históricas que ainda parecem legitimar o ódio às mulheres. Dessa maneira, a misoginia se torna o fio de Ariadne que conectará todos os exemplos do livro, possibilitando, inclusive, que seja questionada com contundência a romantização de “guerra dos sexos”, quando recuperada a peça Lisístrata, de Aristófanes, nas produções audiovisuais, bem como a indústria da dieta que, na distorção de Hipócrates, precisa ser responsabilizada pelos preconceitos de raça e gênero, preconizados na ideia de “corpos perfeitos” que há anos subjuga e mata mulheres.

Numa sociedade em que o corpo feminino é constantemente vigiado e formatado, não é incomum que surjam códigos absurdos de vestimenta como instrumentos de controle para justificar uma cultura misógina que culpabiliza as vítimas de abusos cometidos por homens. Como os gunaikonomoi, os controladores de mulheres na Grécia antiga que, de acordo com uma inscrição localizada na atual cidade de Andania (antiga Messênia, no Peloponeso), rasgavam as roupas das mulheres e as ofereciam aos deuses, os controladores de hoje se apoiam numa falsa moralidade que nos recorda a arrogância de Penteu, como se vê em Eurípides, na proibição do culto das bacantes ao deus Dioniso.

Na esteira das problematizações de base misógina acerca desse corpo que, quando violado, se torna o culpado, Morales revisita uma série de mitos de mulheres estupradas e, consequentemente, castigadas, conforme é possível ler nas Metamorfoses, do poeta latino Ovídio, e ver em muitos quadros expostos em grandes museus. É, portanto, diante dessa naturalização histórica das violências contra as mulheres que movimentos como o #MeToo, fundado em 2006, e, de maneira mais extrema, mulheres dispostas a se vingar de violadores coexistem como estratégias de resistência, pela via legal ou não, em nossos dias. Mais uma vez, o audiovisual é lembrado para exemplificar as recriações da mulher caçadora-guerreira, que remete às releituras da deusa Diana/Ártemis, na composição de personagens contemporâneas amplamente conhecidas, como Katniss Everdeen, da série de filmes Jogos Vorazes, baseada nos livros de Suzanne Collins, e Lisbeth Salander, da Trilogia Millennium, de Stieg Larsson.

Já questionados pelo que representam na escrita da história, os museus voltam no penúltimo capítulo, por meio de uma das construções mais poderosas desse jogo de poder e memória que carregam consigo: o Louvre, ou melhor, o Louvre ocupado pelos corpos pretos de Beyoncé e Jay-Z. O mote das discussões neste momento é o clipe APESHIT (2018), gravado no museu parisiense, para questionar a apropriação das culturas gregas e romanas realizada ao longo dos séculos pelos europeus autoidentificados na ilusão branca das imagens de mármore. Embora Morales não compare os efeitos de tais distorções ao mito de Narciso, o projeto de ver-se refletido nessas personagens míticas nos faz pensar no termo “pacto narcísico da branquitude” (Bento, 2016), fundamental para a manutenção do racismo, de acordo com a intelectual brasileira Cida Bento.

Atenta às pautas dos movimentos LGBTQIAPN+, Morales finaliza seu livro discutindo a presença queer na Antiguidade, ao lembrar-nos de Safo, Dioniso, Tirésias, Aquiles e Pátroclo, bem como de Hermafrodito, o filho de Hermes e Afrodite, nome que histórica e pejorativamente indicava as pessoas intersexuais. Essa memória, ora trazida para o debate de gênero de nossos dias, se enlaça à esperança de um futuro menos violento. Nos fios-laços de Ariadne, Morales conecta todos os capítulos à conclusão, curiosamente intitulada “Coda: Presença de Antígona”. Ao “arrematar sua peça” trazendo Antígona novamente à cena, em comparação com as atitudes de jovens mulheres, como Malala Yousafzai e Greta Thunberg, entre outras que se levantaram contra diferentes formas de iniquidade, a autora afirma que “a criação de mitos subversivos é um processo que envolve passado e presente, e todas as versões do entremeio” (Morales, 2021, p. 156). Assim, Antígona segue entre nós porque há injustiças que não nos deixam esquecer que ainda há muito por que lutar. O tempo presente, como a presença de Antígona, hoje se dá entre nós, e passado e futuro enlaçam histórias de violência e esperança.

Referencias

AGAMBEN, Giorgio. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

ECO, Umberto. Lector in Fabula. Tradução de Attílio Cancian. São Paulo: Perspectiva, 1986.

MORALES, Helen. Presença de Antígona: o poder subversivo dos mitos. Tradução de Angela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.

MORALES, Helen. Antigone Rising: The Subversive Power of the Ancient Myths. Nova York: Bold Type Books, 2020.

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