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Cnêmon, o injustiçado: os efeitos da atuação de ΔΙΚΗ nas Etiópicas de Heliodoro
Cnemon the Wronged: The Effects of ΔΙΚΗ’s Action in Heliodorus' Aethiopica
Cnêmon, o injustiçado: os efeitos da atuação de ΔΙΚΗ nas Etiópicas de Heliodoro
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, pp. 69-84, 2021
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 27 Noviembre 2019
Aprobación: 23 Abril 2020
Resumo: No primeiro livro do romance Etiópicas, Cnêmon, o prisioneiro dos piratas do Nilo, torna-se o intérprete dos protagonistas Teágenes e Caricleia, para quem narra os seus infortúnios. Dentre as histórias, consta o relato do julgamento ao qual ele, um ateniense de família distinta, foi submetido, sob a acusação de tentativa de parricídio. Na versão de Cnêmon, os juízes são evidentemente levados pelo πάθος e pelo ἦθος dos acusadores, enquanto ele, como réu, tem seus direitos de fala cerceados. A análise desse relato secundário, que pode ser considerado um romance dentro do romance, fornece elementos fundamentais sobre a noção de δίκη. Se, por um lado, o contexto imediato do julgamento ao qual Cnêmon faz menção leva à conclusão de que ele foi, de fato, prejudicado pela justiça humana (Etiop.,1.13), por outro, o contexto maior do relato dá a entender que ele é protegido e vingado pela Δίκη (Etiop.,1.14.4). A reflexão a respeito da atuação da justiça, introduzida no romance via esse relato secundário, é retomada em outros pontos do romance, evidenciando a utilização de técnicas narrativas com fins argumentativos pelo autor das Etiópicas.
Palavras-chave: romance grego, retórica antiga, Etiópicas de Heliodoro, justiça, técnicas narrativas.
Abstract: In the first book of the novel Aethiopica, Cnemon, the prisoner of the Nile pirates, becomes the interpreter of the protagonists Theagenes and Charicleia, to whom he recounts his misfortunes. Among the stories is the account of the trial to which he, an Athenian from a distinct family, was submitted on charges of attempted parricide. In the version of Cnemon, the judges are evidently taken by the πάθος and the ἦθος of the accusers, while he, as the defendant, has his speech rights curtailed. Analysis of this secondary account, which can be considered a novel within the novel, provides fundamental elements about the notion of δίκη. If, on the one hand, the immediate context of the judgment to which Cnemon makes reference leads to the conclusion that he was, in fact, harmed by human justice (Etiop., 1.13); on the other hand, the larger context of the account implies that he is protected and avenged by Δίκη (Etiop., 1.14.4). The reflection on the performance of justice, introduced in the novel via this secondary account, is taken up elsewhere in the novel, showing the use of narrative techniques for argumentative purposes by the author of the Aethiopica.
Keywords: Greek novel, Ancient rhetoric, Heliodorus’ Aethiopica, justice, narrative techniques.
1. Introdução
Dentre os romances antigos, as Etiópicas, trama escrita pelo fenício Heliodoro (IV d.C.), é, sem dúvida, a mais requintada e ambiciosa das quatro obras que chegaram até aos nossos dias e que podem ser classificadas desta maneira.1 São elas: Quéreas e Calírroe, de Cáriton; Ântia e Habrócomes, de Xenofonte de Éfeso; Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio; Dáfnis e Cloé, de Longo. Desde meados do século passado, as técnicas empregadas por esse autor têm recebido uma atenção pormenorizada, dadas as suas particularidades, a sua complexidade e o seu alto grau de refinamento.2 Nesse romance, em que o efeito surpresa dá o tom, nem mesmo a caracterização dos personagens segue o padrão esperado. Personagens aparentemente secundários que, em outras obras, serviriam apenas como coadjuvantes do protagonismo dos heróis, tais como a criada, a madrasta e o sacerdote, nas Etiópicas acabam por desempenhar um papel significativo e determinante em cenas centrais. Semelhantemente, as várias histórias secundárias, intencional e estrategicamente incluídas pelo autor, possuem um papel didático e metafórico, na medida em que dialogam com a história principal (Futre Pinheiro, 1994).
Dentre essas histórias, destacaremos a de Cnêmon, um grego na condição de prisioneiro do temido grupo de salteadores do rio Nilo – os βουκόλοι. A história de Cnêmon é incluída logo nas primeiras páginas do romance, interrompendo e atrapalhando, de certa forma, o escopo da obra. Ao invés de saciar o leitor com respostas acerca de quem é Caricleia, quem é Teágenes, de onde vêm e o que lhes sobrevirá, o autor prefere deixar seu interlocutor no vácuo para apresentar-lhe uma história secundária, à primeira vista irrelevante.
A história de Cnêmon pode e tem sido estudada sob diversos ângulos. Alguns exemplos: (i) qual a relação da história do jovem grego com o todo do romance;3 (ii) quais os aspectos formais que fazem dessa história um romance paralelo;4 (iii) a caracterização de Cnêmon e sua relação com o teatro grego,5 (iv) a Atenas do século V sob a perspectiva de Cnêmon.6 Neste trabalho, daremos atenção à problematização que ele, como autor de sua própria história, estabelece na comparação entre os processos humanos e divinos no que diz respeito à operação da justiça. Por meio de seu relato, Cnêmon ressalta a existência de uma antítese: enquanto a justiça do plano humano e imanente é deficitária, a justiça do plano divino é eficaz.
A abordagem antitética a respeito de δίκη, presente inicialmente no relato do julgamento de Cnêmon, encontra ecos noutros trechos do romance, ampliando-se até alcançar a trajetória dos heróis. Desse modo, essa ideia deixa de ser uma tese pertencente a um personagem e a uma história secundários para tornar-se um proeminente argumento retórico da obra, habilmente encaixado e estruturado no enredo por Heliodoro, que dele se serve para transmitir uma mensagem moral ao leitor das Etiópicas.
2. A história de Cnêmon
O relato de Cnêmon inicia-se no começo do livro 1, assim que Teágenes e Caricleia chegam à ilha dos piratas egípcios e descobrem que o novo conhecido que lhes serve de guarda e intérprete é de Atenas. A relação desencadeia uma longa narrativa de aventuras e desventuras, da qual Cnêmon é ao mesmo tempo narrador e protagonista.
Na perspectiva dos seus interlocutores diretos, Teágenes e Caricleia, a longa narrativa de Cnêmon serve como um momento de entretenimento, já que traz detalhes acerca dos costumes e hábitos de Atenas. Apesar de trágica, a história de Cnêmon lhes é reconfortante, por ser ele grego, falar a mesma língua, ser igualmente prisioneiro e compartilhar infortúnios semelhantes. Não é difícil perceber que o casal rapidamente se identifica com o relato do grego:
[Findas as palavras,] Cnêmon chorava. Choravam também os estrangeiros, por um lado e aparentemente pelos sofrimentos dele, mas na verdade cada um lamentava pelas suas próprias tristes lembranças. E não teriam parado de chorar, se não fosse o sono que, caindo sobre eles por causa do relaxamento provocado pelas lágrimas, não as tivesse cessado (Etióp. 1.18.1).7
A saga de Cnêmon não termina nessa altura da obra. Pelo contrário, estende-se para muito além das primeiras páginas, visto que o relato feito ao casal representa somente uma porção da complexa história desse personagem. De fato, enquanto a narração dos eventos pré-históricos do ateniense está encerrada no livro 1, a história desse personagem no tempo do romance avança até ao livro 6, o que corresponde a mais da metade da obra. Por essa razão, as histórias de Cnêmon e sobre Cnêmon podem ser consideradas um romance à parte. Daí a acertada sugestão de Kasprzyk (2017) de designá-las por ‘Os Aigyptiaka de Cnêmon’.
Para compreender a maneira como Cnêmon destaca a antítese existente entre os dois tipos de justiça, procederemos, primeiramente, à leitura e análise de alguns trechos essenciais de seu relato. A partir dele, são-nos dados a conhecer os eventos anteriores de seu encontro com o casal, o tempo pré-romance.8
Tempo pré-histórico
No primeiro bloco narrativo de uma série de histórias que Cnêmon conta ao casal grego, o jovem lamenta sua sorte e compartilha de que modo ele, de nobre origem ateniense, veio a se tornar um expatriado. Na sua versão, a desgraça resulta de uma intriga familiar comandada por Deménete, a distinta madrasta que tentou de todas as formas e jeitos seduzi-lo, utilizando-se inclusive de Tisbe, uma criada da casa. Como não conseguia avançar em seus intentos, passou a causar intrigas entre ele e o pai, Aristipo, a ponto de a situação culminar num tribunal. Como o pivô dessa história, Cnêmon admite que agira ingenuamente, deixando-se levar por Tisbe, cúmplice dos desmandos de Deménete e que, por consequência, acabou sendo punido por um crime que não cometeu.
Embora a cena do julgamento contenha muitos ingredientes fictícios que não correspondem à prática efetiva da justiça grega, apresenta os elementos básicos de um típico tribunal.9 Na versão de Cnêmon, Aristipo conduz o próprio filho a júri popular, apresentando a acusação (κατηγορία) de tentativa de homicídio. Deménete, a madrasta mal-intencionada, reforça a acusação em segundo plano, com seu discurso ambíguo. O réu, o próprio Cnêmon, solicita a palavra na assembleia com o intuito de se defender (ἀπολογία). Um secretário (γραμματεύς) coordena o interrogatório, ainda que breve. A sentença final (τιμωρία) é o resultado de uma votação democrática.
O fantasioso relato de julgamento empenhado por Cnêmon (1.13.1-1.14.3) enfatiza o tema da justiça. Afinal, é em busca dela – τὴν δίκην λαμβάνειν (1.13.2) – que Aristipo acredita estar conduzindo o filho a júri popular. O discurso de acusação feito por Aristipo é complementado por alguns fatores determinantes. O fato de aparecer diante do público com a cabeça coberta de cinzas tem a clara intenção de atrair a compaixão dos juízes. Ele lança mão, portanto, de um conhecido recurso retórico, conhecido como πάθος.10 Utiliza-se, também, e de maneira óbvia, do ἦθος, ao relatar todos os feitos e esforços em favor do filho e resguardar, assim, sua reputação de bom pai e cidadão responsável (1.13.1-2). Por fim, ao encerrar o discurso com as lágrimas, reforça o elemento patético. Ao que tudo indica, a fala de Aristipo é decorrente de uma atitude sincera. A tristeza que ele demonstra é real e não fruto de mera representação teatral.
Já não é essa a ideia que Cnêmon transmite ao interpretar a atitude de Deménete, também presente no julgamento. Segundo ele, os gritos de lamentação por ela proferidos tinham a intenção de incriminá-lo, e não de fazer justiça. Para Cnêmon, ela é uma dissimuladora: “Deménete, por sua vez, lamentava-se e simulava estar muito abalada por minha causa” (1.13.3). Embora Deménete não tivesse, como mulher, direito à fala, ainda assim participa ativamente do julgamento. Suas palavras, ditas em alta voz e com alto grau de emoção, na opinião de Cnêmon, interferiram no parecer final.
Justamente depois do discurso do pai e da inconveniente reação de Deménete, o réu reclama o direito de resposta. Seu pedido, porém, é parcialmente concedido. Como réu, responde a uma única e objetiva questão posta por um secretário (γραμματεύς), que não lhe oferece muitas chances de defesa. Sua declaração, na verdade, coloca-o numa situação ainda mais delicada. Com a assembleia em tumulto, procura, num ato de desespero, declarar a sua inocência e reverter a opinião do público. Como não dispunha de tempo para explicar os pormenores da história, passa a gritar o que julga ser mais relevante: μητρυιά. No relato feito ao casal, é nítido que essa é a palavra de destaque: ‘Madrasta! Por causa de uma madrasta sou condenado à morte! Minha madrasta quer matar-me sem julgamento!’ (1.13.5).
Os gritos do jovem permanecem no ar e são acolhidos por alguns do público, levantando uma suspeição a respeito da realidade dos fatos. Diante disso, uma terceira possibilidade de condenação passa a ser aventada: o exílio perpétuo. Essa terceira punição não é sinônimo de justiça para o caso de Cnêmon mas, pelo menos, livra-o da morte. É nesse momento da narrativa, com o pronunciamento da sentença final, que Cnêmon sinaliza aos ouvintes do plano ficcional que essa parte da história chegou ao fim:11 ‘Assim fui expulso da minha própria casa paterna e da minha pátria’. Ao mesmo tempo, introduz um novo tópico e anuncia flashes do próximo capítulo, ao afirmar: ‘Deménete, todavia, certamente não ficaria impune, pois havia atraído a fúria dos deuses. De que modo isso ocorreu, ouvireis noutra ocasião’ (1.14.1).
Nessa altura do discurso, fica nítido que Cnêmon usa de uma estratégia retórica para atrair a atenção de Teágenes e Caricleia. Além disso, estabelece um claro paralelo entre a sua pessoa e a pessoa de Deménete, ao utilizar o termo τιμωρία. Se, por um lado, dá a entender que foi vítima de uma condenação injusta, Deménete, por sua vez, é digna de merecida punição. A seleção lexical e a construção sintática da afirmação de Cnêmon a esse respeito são enfáticas: “οὐ μὴν ἀτιμώρητός γε ἡ θεοῖς ἐχθρὰ Δημαινέτη περιελείφθη” (1.14.1). Para Cnêmon, a punição da madrasta era a simples e inevitável concretização de um princípio: ela havia atraído para si a inimizade dos deuses. E a eles seria impossível escapar. Vê-se, pois, que ao encerrar essa parte da história, Cnêmon deixa transparecer a sua crença de que a promulgação da sentença no plano terreno não representava o veredito final. Sua causa havia sido encaminhada para uma instância superior, e estava agora sob os cuidados dos deuses.
Uma vez que Teágenes suplica para que ele não interrompa a história, mas relate o que sucedeu a Deménete, fica claro que Cnêmon alcança seu objetivo retórico: “Na verdade, nos infligirás um tormento maior se permitires que, na tua história, a malvada Deménete fique impune (ἀτιμώρητον)!” (1.14.2). A sede por justiça que lhes havia sido incutida – e isso obrigatoriamente incluía a punição de Deménete – já lhes era maior do que a necessidade por descanso. Assim, Cnêmon dá continuidade às suas aventuras. Se, na primeira parte, ele trata de demonstrar como havia se tornado uma vítima injustiçada, na segunda parte, passa a testemunhar como a Justiça operou em seu favor.12 Tal qual um conto romanesco, sua história inclui perigos em terra e mar, desilusões amorosas, conflitos inesperados e viradas fantásticas. Relata que, enquanto cumpria seu exílio na ilha de Egino, inesperadamente aparece-lhe Cárias, um amigo de Atenas que, com grande euforia, anuncia-lhe:
‘Cnêmon, trago-te boas notícias! A justiça foi feita! Tua inimiga pagou pelos atos que cometeu. Deménete está morta!’ (ἔχεις παρὰ τῆς πολεμίας τὴν δίκην. Δημαινέτη τέθνηκεν). ‘Nunca’, respondeu Cárias, ‘a Justiça nos abandona por completo, segundo nos ensina Hesíodo. Se, por um lado, às faltas pequenas ela às vezes faz vista grossa, deixando que a punição se arraste no tempo, por outro, contra os sem princípios lança seu olhar fulminante. Foi desse modo que visitou a maquiavélica Deménete com vingança’ (1.14.3).
É importante observar que, neste comentário de Cárias, amparado na obra Os trabalhos e os dias de Hesíodo, o que está em jogo não é mais a justiça exercida nos tribunais humanos. Ele faz alusão à deusa Justiça, uma das filhas de Zeus e Têmis que, juntamente com Irene e Eunomia, presidiam à ordem moral e à ordem da natureza (Hacquard, 1996). A menção a Hesíodo não é gratuita. No contexto da história de Cnêmon, o objetivo é o de referendar e fundamentar a tese do narrador de que, mais cedo ou mais tarde, os deuses far-lhe-iam justiça. Nesse sentido, a citação de um dos poetas basilares da mitologia grega é um argumento poderoso.
O restante da segunda parte da história de Cnêmon ao casal de enamorados consiste em demonstrar como foi a atuação de δίκη para que Deménete recebesse a devida recompensa. Primeiramente, ela passou a ser torturada pelas Erínias (1.14.6). Depois, foi enredada pela escrava Tisbe que, ao ver a senhora cada dia mais desequilibrada, maquinou um plano para salvar a própria pele (1.15.2): um flagrante de Aristipo a um adultério de Deménete (1.17.4). O fato redunda no suicídio da madrasta. A morte é reportada por Cárias a Cnêmon nestes termos:
Mas ela, como é natural, passou a ponderar sobre tudo o que lhe acontecia de uma só vez: o atual fracasso de suas esperanças que se somava à desonra futura e a inevitável punição (τιμωρία) pela aplicação das leis. Se, por um lado, sentia aflição por ter sido pega, por outro, raiva por ter sido enganada. Então, assim que passou em frente ao poço do jardim de Academo (tu o conheces bem, é o lugar onde os polemarcos oferecem os sacrifícios aos heróis nacionais), num rompante desvencilhou-se das mãos do velho e para lá se precipitou de cabeça. Despencou a miserável, morrendo miseravelmente. Diante disso, Aristipo exclamou: “Resolveste tu mesma acertar as contas com a justiça (δίκη) sem esperar os trâmites da lei!” (1.17.5-6).
O fim do relato de Cnêmon confirma a operação da justiça, tal como havia sido predita pelo jovem grego ao casal. Na perspectiva de Cnêmon, a justiça foi levada a cabo, não pela via dos processos legais terrenos, mas como resultado de um princípio divino. Deménete havia quebrado esses princípios e, portanto, merecia ser punida, o que de fato aconteceu.
Se considerarmos única e exclusivamente o relato de Cnêmon a Teágenes e Caricleia no livro 1, já é possível detectar que o jovem grego conduz seus ouvintes, com o uso de habilidades retóricas, a perceber a distinção entre a justiça humana e a justiça divina. A mensagem, ainda que proclamada por um narrador-herói suspeito, é clara: ‘A justiça tarda, mas não falha’. Entretanto, como mencionado anteriormente, os eventos e personagens dessa história secundária, que pertencem a um passado pré-histórico de Cnêmon, sem relação ou influência alguma com/sobre os protagonistas e suas aventuras, acabam por invadir o cenário da história principal. Para tanto, personagens da pré-história de Cnêmon são engenhosamente emprestados por Heliodoro para compor a trama dos verdadeiros heróis. Além disso, a completa operação de δίκη na vida do grego transcende a versão disponibilizada pelo narrador/herói das Aigyptiaka. Dessa forma, apontaremos trechos das Aithiopika, nos quais δίκη ressurge para solucionar pontos da intrincada trama do ateniense.
A história de Cnêmon: tempo do romance
Como companheiro de Teágenes e Caricleia, Cnêmon passa a ser, no final do livro 1, coparticipante das decisões e aventuras do casal de enamorados. É a partir de então que alguns fantasmas da pré-história do jovem grego surgem ex machina no romance. Um deles é Tisbe, a escrava da família. De maneira surpreendente, Cnêmon e Teágenes deparam-se com a criada morta na entrada da caverna, no início do livro 2. Cnêmon fica, obviamente, em estado de choque:
“Que é isto?”, gritou, “Um prodígio dos deuses! É Tisbe que eu vejo!” E recuando uns passos, parou congelado de medo e assim, boquiaberto, ficou (2.5.3).
Não apenas Cnêmon fica perplexo com a cena. Da mesma maneira reagem Teágenes e Caricleia, por terem diante de si alguém que, até poucos instantes, era-lhes uma figura inatingível, em virtude dos limites impostos pelo tempo e pelo espaço. Ademais, o comentário tecido por Caricleia durante o diálogo com Teágenes, conforme o excerto abaixo, remete o leitor ao contexto do teatro. Tisbe, e tudo o mais que diz respeito a ela, é equiparada a uma personagem teatral. Nesse sentido, a aparição da criada cria um efeito inusitado na trama: a irrupção de uma outra dimensão – irreal e teatral – na dimensão real da vida do casal. A partir desse artifício, Heliodoro joga com o leitor, mesclando fantasia e realidade. No diálogo entre Teágenes e Caricleia, lemos:
“Ficarás surpresa. Era Tisbe! Cnêmon, que aqui está, o afirma; aquela ateniense, a tocadora de cítara que arquitetou o plano contra ele e contra Deménete”. Ela, perplexa, respondeu: “Que coincidência, Cnêmon! Como é que ela foi transportada do meio da Grécia para os confins do Egito como se içada por um guindaste de teatro (ἐκ μηχανῆς)? Como é que, tendo ela descido justamente aqui, nada vimos?” (2.8.2-3).
É pertinente observar que Teágenes repete a versão de Cnêmon, a de que Tisbe era uma traiçoeira, mais do que um mero joguete das maquinações de Deménete. Ela própria havia sido autora e responsável (ποιήτρια) das desgraças de Cnêmon. Sob esse ponto de vista, ela era tão merecedora de punição quanto a madrasta. Entretanto, nunca chegaria a ser punida pelos seus senhores. Pelo contrário, ao colocar em execução seus projetos, chegara, inclusive, a obter a alforria das mãos de Aristipo. Na lógica de Cnêmon, ela precisava ser punida pela justiça. A exemplo de Deménete, tal destino se cumpriu. Isso fica claro nas divagações do jovem grego diante da defunta:
Oh, Tisbe! Felicito-te por tua morte e por seres, tu mesma, a mensageira das tuas desgraças. Apesar de assassinada, trouxeste até as nossas mãos o relato de tua morte. Ao que tudo indica, uma Erínia vingadora perseguiu-te por toda a terra e, sem afrouxar o chicote justiceiro (ἔνδικον μάστιγα), trouxe-te até ao Egito, onde eu me encontrava, para que o injustiçado/a vítima (ἠδικημένον) dos teus delitos fosse testemunha ocular do teu castigo (τῆς ποινῆς). Mas o que era, afinal, que tu novamente maquinavas contra mim e habilmente dissimulavas por meio desta carta, quando a justiça (δίκη), para frustrar teus intentos, se adiantou? Como eu suspeito de ti, ainda que morta! Temo que até mesmo a morte de Deménete tenha sido uma invenção (πλάσμα) tua, com a qual aqueles que a anunciaram me iludiram, e que tu atravessaste o mar para encenar, aqui no Egito, uma nova tragédia ática conosco” (2.11.1-2).
A conclusão de Cnêmon é que ela, a exemplo de Deménete, havia sido perseguida por uma Erínia, a fim de que a justiça fosse executada. É perceptível, pelas escolhas lexicais do discurso proferido por Cnêmon, que o tema da justiça é central. Mais uma vez, e agora para além do âmbito dos eventos pré-romance, a tese de que as faltas morais são levadas para o tribunal divino é retomada. Tisbe que, a princípio, não era a inimiga número um de Cnêmon e nem mesmo participara no julgamento realizado em Atenas, é alçada para dentro da história dos protagonistas para, dentre outras coisas, receber a devida punição.
Cabe ainda destacar a maneira como a vida de Cnêmon acaba no tempo do romance. Apesar de ateniense nato, durante toda a trama o jovem não pisa Atenas sequer uma vez. Como personagem, surge na embocadura do Nilo, na ilha dos vaqueiros, e despede-se também no Egito, na casa do comerciante Nausicles. Nunca chega, portanto, a consumar o projeto de voltar para Atenas, recuperar os direitos de cidadão e restabelecer o relacionamento com Aristipo, o pai.
As últimas cenas das Aigyptiaka são as de um final feliz. Cnêmon é recompensado com uma esposa – Nausicleia – que, coincidentemente, é a filha de Nausicles, o responsável pelo traslado de Tisbe até o Egito. Nos últimos instantes dessa trama secundária, o comerciante fenício confessa ter sido o mentor do rapto de Tisbe, por quem havia se apaixonado durante sua passagem por Atenas (6.8.1). De certa forma, ao conceder a mão de sua filha em casamento, age para compensar suas faltas em relação ao jovem grego.
A conclusão da história de Cnêmon coincide com o fim de uma sina de infortúnios, desgraças e injustiças. O matrimônio inaugura um novo tempo em sua história, um tempo de alegria e de justiça, do qual o leitor não mais partilha (6.8.2-3).
3. Os efeitos de Δίκη no romance
Finda a análise da atuação de δίκη nas Aigyptiaka, cabe-nos ainda tecer alguns comentários a respeito dos efeitos dessa história no romance como um todo. Uma observação mais acurada da cena do julgamento de Cnêmon demonstra que ela não foi incluída despropositadamente pelo escritor; muito pelo contrário, a interpretação proposta neste artigo demonstra que o caso vem a desempenhar um importante papel na obra.
Em primeiro lugar, o cronotopo do julgamento de Cnêmon é um fator preponderante ao leitor: o fato se dá no período áureo da cidade de Atenas, no século V a.C. A data e o lugar remetem imediatamente a um clássico da literatura grega, a saber: a tragédia Oresteia. É nessa trilogia de Ésquilo que Atenas passa a ser relacionada diretamente à justiça. É a partir dos acontecimentos da vida de Orestes que o Areópago é instituído e que o paradigma de justiça passa por uma profunda mudança. No plano divino, o mito da conversão das Erínias (vingadoras) em Eumênides (protetoras) é um símbolo dessa nova era. Justiça deixa de ser sinônimo de vingança operada com as próprias mãos para se tornar um assunto do povo (δῆμος). Enfim, o zelo de Cnêmon por Atenas, seus costumes e história, servem como um lembrete para o leitor de que ela é a cidade da Justiça, epíteto recebido graças à contribuição da literatura.
De qualquer forma, como bem lembra Schwartz (2016, p. 32), por mais que os romancistas gregos procurem incluir situações e locais que aproximem os enredos da realidade, as tramas estão além do âmbito natural. São comandadas pela Providência ou Fortuna. Nesse sentido, a declaração de Cárias, amigo de Cnêmon, de que “a Justiça não nos abandonou por completo” (1.14.3), assume uma função profética dentro do romance, e da qual a Providência lança mão para alcançar seus desígnios.
Se a tese proverbial de Cárias aplica-se, a princípio, somente à conclusão da narrativa de Cnêmon que, a pedido de Teágenes, não deveria ser interrompida sem que a desmesurada Deménete recebesse a devida punição, essa mesma tese, no desenrolar da trama, vai gradativamente ganhando amplitude, a ponto de se tornar um princípio válido a demais eventos do romance. Como em ondas, propaga-se através do romance: (i) primeiramente na história pregressa de Cnêmon; (ii) num segundo momento, nas Aigyptiaka, i.e., na história de Cnêmon situada no tempo do romance; (iii) por fim, nas Aithiopika, i.e., na história de Teágenes e Caricleia. Representamos essa ideia no gráfico 1:
Vejamos como se dá a propagação do prognóstico de Cárias através do romance, a começar pela pré-história de Cnêmon:
A categórica afirmação do grego, de que “Deménete, todavia, certamente não ficaria impune, pois havia atraído a fúria dos deuses” (1.14.1), é baseada na tese de Cárias. Em seu relato, Cnêmon apenas retransmite os fatos e garante que a punição da madrasta está fundamentada em um princípio divino. A narração de Cnêmon tem o objetivo de comprovar que a atuação de Δίκη não é uma tradição mitológica em desuso para os seus dias ou restrita apenas à teoria, mas sim um princípio válido e operante, capaz de mudar o destino de indivíduos injustiçados;
Essa parte da história de Cnêmon, já concluída, integra eventos anteriores ao tempo do romance e, por se tratarem de um mero passatempo para os heróis, não teriam necessariamente vínculo ou influência sobre os acontecimentos do tempo do romance. Na prática, entretanto, não é isso o que acontece. Como foi indicado anteriormente, os eventos da vida pregressa de Cnêmon acabam por invadir o cenário das Etiópicas, criando uma situação, no mínimo, intrigante: a coocorrência de dois romances. Se é verdade que o leitor, por sua perspicácia e conhecimento do que seja o enredo de um romance, sabe que os protagonistas são Téagenes e Caricleia, é verdade também que esse mesmo leitor percebe que a história de Cnêmon representa uma sutil concorrência ou paralelismo. As duas histórias andarão lado a lado até ao livro 6, quando ocorre o matrimônio de Cnêmon e as Aigyptiaka chegam ao fim. A intrusão da história de Cnêmon na trama principal serve, dentre outras coisas, para confirmar o vaticínio de Cárias, dessa vez no tempo do romance. O fato de Tisbe ser brutalmente assassinada e de Cnêmon receber a esposa justamente das mãos de Nausicles corrobora a tese apresentada na pré-história do personagem. Assim, o prognóstico de Cárias a respeito de Δίκη ganha uma nova perspectiva, uma vez que sai de uma história secundária, anterior e sem vínculo com a trama, para influenciar diretamente os acontecimentos do tempo do romance;
É possível perceber, a partir de então, que o prognóstico de Cárias propaga-se para além da história de Cnêmon; alcança, também, a saga dos heróis. Semelhantemente a Cnêmon, os protagonistas Teágenes e Caricleia são protegidos pela Δίκη. Durante a narrativa, personagens que se caracterizam pela desmesura – ὕβρις – e que prejudicam os heróis são julgados e punidos. É o que sucede a Ársace, por exemplo, a irmã do Grande Rei persa e esposa do sátrapa Oroondates. Descrita como uma mulher dominadora e sem controle dos seus instintos sexuais, Ársace, enlouquecida de paixão por Teágenes, tenta de todas as formas convencê-lo a ter um caso com ela. Assim como Deménete, Ársace lança mão de sua criada, Cibele, para obter o que quer. Os planos dela, entretanto, são finalmente frustrados por uma reviravolta na trama (8.12.2ss). Nessa altura, quando o casal é inesperadamente liberto da masmorra, Teágenes exclama:
Logo em seguida, Ársace morre. A descrição, fornecida pelo súdito Bagoas, é feita nos seguintes termos:
“Ficai despreocupados, estrangeiros! Vossa inimiga recebeu a justiça [Δίκην ὑμῖν ὑπέσχεν ἡ πολεμία]. Ársace está morta. Enforcou-se assim que soube da vossa partida em nossa companhia. Com esta morte espontânea escapou da que lhe seria inevitável. Pois não seria poupada da punição [τιμωρία] que lhe seria infligida por Oroondates e pelo Rei. Ou seria condenada à pena capital, ou estaria fadada a uma vida de opróbrio pelo resto de seus dias” (8.15.2).
É notória a semelhança estrutural entre a morte de Deménete e a de Ársace. Não apenas o fim dessas duas mulheres é bastante parecido, como também os elementos integrantes das duas histórias: uma paixão desmedida é a motivação de ambas, tanto de Deménete quanto de Ársace; as criadas Tisbe e Cibele são coparticipantes dos projetos de sedução de suas senhoras; Cnêmon e Teágenes, os alvos do projeto de sedução, fazem afirmações categóricas acerca da atuação da justiça; Cárias e Bagoas, dois personagens simpáticos às vítimas, anunciam notícia da vingança; a atuação de Δίκη é bastante semelhante em ambos os cenários; tanto Deménete quanto Ársace cometem suicídio; os motivos são os mesmos: querem fugir da inevitável punição e da vergonha pública; ambas as criadas compartilham de um trágico fim. Tisbe é morta de forma covarde na entrada da caverna, enquanto Cibele bebe do próprio veneno.
Além disso, os dois suicídios são antecedidos por julgamentos tendenciosos. No primeiro, Cnêmon é o réu. No segundo, comandado pela própria Ársace, Caricleia é injustamente condenada à fogueira sob a acusação de envenenamento. É nesse contexto que, antes de subir à pira, a heroína dirige uma prece pública – que não deixa de estabelecer um paralelismo com os gritos de Cnêmon no tribunal:
“Sol, terra e divindades que, acima ou debaixo da terra, vigiai e castigai os homens ímpios! Vós sois testemunhas de que sou inocente das acusações a mim imputadas. Ainda assim, entrego-me de forma voluntária à morte, por causa das insuportáveis maquinações do destino. Recebei-me com benevolência. Quanto a esta execrável, criminal e adúltera, porém, Ársace, que é a autora de todos esses males para roubar-me o noivo, castigai-a sem demora [τάχιστα τιμωρήσασθε]” (8.9.12).
Vê-se, pois, que o vaticínio anunciado por Cárias é recuperado em outros momentos da trama. Dessa forma, ecoando pelo romance, vai ganhando amplitude e consistência, impregnando no leitor a máxima: “a justiça não nos abandonou por completo”.
4. Considerações finais
O efeito de propagação do vaticínio sobre Δίκη pelo romance é um efeito artístico construído pelo autor da obra, obviamente. Heliodoro é, afinal, o único narrador. A forma como ele escolhe narrar os eventos, contudo, cria no leitor a impressão de que há vários romances dentro de um ou de que é possível personagens de teatro existirem na vida real.13
O que é importante ressaltar no caso do julgamento de Cnêmon é que essa aparente intromissão de uma fortuita história de briga de família no escopo das Etiópicas, na qual o conceito de δίκη é sublinhado, afeta definitivamente a obra como um todo. É fato que Cnêmon é introduzido no romance pelo próprio Heliodoro. Ao fazê-lo, dá ao personagem como que permissão para levar para dentro do plano do romance toda a temática de sua pré-história, as Aigyptiaka. Uma vez aí inserida, essa temática passa a vigorar para as Aithiopika.
Como bem observa Morgan (1999, p. 274), a história secundária de Cnêmon reforça os valores morais do romance. Embora a ênfase da análise de Morgan repouse no tema do amor, é possível estender esse princípio para a análise aqui empreendida, cujo tema central é a justiça. Nesse sentido, é possível afirmar que, sob a perspectiva da operação da justiça, a pré-história de Cnêmon é uma antecipação da história dos heróis. Ainda que Cnêmon seja um pseudo-herói, pois faltam-lhe virtudes essenciais para ser chamado de herói, o vaticínio acerca da justiça, baseado em Hesíodo, mostra-se verdadeiro.
Em seu relato, Cnêmon consegue comprovar que, ainda que um julgamento conduzido por autoridades humanas venha a ser falho, a justiça em algum momento se concretizará. Se não ocorrer na primeira instância, sê-lo-á na segunda ou terceira instâncias. Se não se efetivar no plano humano, certamente o será no plano divino. A reverberação dessa máxima pelo romance demonstra a preocupação de Heliodoro em construir um elaborado arrazoado sobre o tema, embora esse não seja o eixo principal da obra.
No mundo de Heliodoro, Atenas é a célebre cidade, o lugar onde o tema da justiça é inaugurado. Ela é relacionada ao drama de Cnêmon e, consequentemente, à obra de Hesíodo. A partir dela, a mensagem a respeito de Δίκη ganha espaço e ecoa por todo o romance. Os ecos de “a Justiça nunca nos abandona por completo” no interior do romance são, por sua vez, oriundos de uma tradição literária da qual Hesíodo e Ésquilo fazem parte. E a qual Heliodoro passa a integrar.
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Notas