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A recriação, o retorno e o eterno novo: epigramas ausonianos em português1

Recreation, return and the new eternal: ausonian epigrams in Portuguese

José Amarante
Universidade Federal da Bahia, Brasil

A recriação, o retorno e o eterno novo: epigramas ausonianos em português1

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, pp. 85-107, 2021

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 03 Enero 2020

Aprobación: 27 Mayo 2020

Resumo: Propõe-se, neste artigo, ao se retomarem as relações entre Filosofia e Literatura, uma discussão sobre a tradução de poesia, levando-se em conta, principalmente, o pensamento de Walter Benjamin, Roman Jakobson, Ezra Pound, Jacques Derrida e Haroldo de Campos. Para além da discussão, o trabalho traz ainda recriações de epigramas latinos da autoria de Décimo Magno Ausônio, um poeta do séc. IV e.c., também ele recriador de outros poemas. Nessas recriações, realizadas a partir da edição crítica de Roger Green, experimenta-se o exercício de enfrentamento de poemas inçados de dificuldades e, portanto, mais abertos a recriações, conforme propõe Campos. Trata-se, pois, de uma forma de investimento criativo em um dos tipos do make it new poundiano, uma vez que as recriações lidam com aspectos do extratexto cuja tradução se mostrou esteticamente potente e produtiva não via transcriação, mas via recriação, reimaginação ou reinvenção.

Palavras-chave: tradução, recriação, epigramas latinos, Ausônio.

Abstract: By resuming the relationship between Philosophy and Literature, this article proposes a discussion about poetry translation, taking into account, mainly, the ideas of Walter Benjamin, Roman Jakobson, Ezra Pound, Jacques Derrida and Haroldo de Campos. In addition to the discussion, the work also brings recreations of Latin epigrams by Decimus Magnus Ausonius, a poet of the IVth century c.e., who is also a recreator of other poems. In these recreations, carried out from the critical edition of Roger Green, we experience the exercise of standing up to the challenge of translating certain poems that would be full of difficulties and, therefore, more open to recreations, as Campos proposes. It is, then, a form of creative experience in one of the types of Ezra Pound’s make it new, since recreations deal with aspects of the extratext whose translation has been aesthetically potent and productive not via transcreation but via recreation, reimagination or reinvention.

Keywords: translation, recreation, Latin epigrams, Ausonius.

1. Voltando à recriação: advertência

Em sua coleção de epigramas, o poeta Ausônio, do quarto século e.c., nos apresenta uma composição (50 Green), em dísticos iâmbicos, em que a língua e a cultura latinas são os elementos fortes de uma logopeia a brincar com a questão de gênero: o gramatical e o sexual. Basta que nos lembremos de que a língua latina tem três gêneros gramaticais (o masculino, o feminino e o neutro) para constatarmos o caráter escarnecedor da crítica ao retórico ou gramático flagrado, em um banquete de núpcias, em uma espécie de demonstração de hybris, a exibir seus dotes gramaticais:



Rufus vocatus rhetor olim ad nuptias.
Celebri ut fit in convivio,
grammaticae ut artis se peritum ostenderet,
haec vota dixit nuptiis:
“et masculini et feminini gignite 5
generisque neutri filios”.

O retor Rufo foi chamado certa vez a umas núpcias.
Como ocorre em uma festividade concorrida,
para se mostrar perito na arte de gramática,
disse estes votos aos noivos:
“Gerai filhos não só do masculino e feminino, 5
mas também do gênero neutro”.

A tradução apresentada em português nada mais é que uma proposta interpretativa ou mediadora do poema,2 por enquanto, para retomarmos o tema da recriação como exercício retórico na Antiguidade Romana. Basta que recuperemos um poema da Antologia Grega (9, 489), atribuído a Paladas, para percebermos que Ausônio o recria em latim, seguindo uma trilha aberta de uma visão de tradução interessada em recriação:3



Γραμματικοῦ θυγάτηρ ἔτεκεν φιλότητι μιγεῖσα
παιδίον ἀρσενικόν, θηλυκόν, οὐδέτερον.

A filha do gramático ajuntou-se e teve uma criança
do gênero masculino, feminino e neutro.4

Conforme se lê na tradução de José Paulo Paes, no poema grego, destaca-se o forte papel genético do pai retórico – versado em gramática – para garantir uma descendência completa em gêneros sexuais em sua única neta. A recriação ausoniana retira o papel genético do gramático e o coloca em uma cena de desmedida (ou de desmedida em uma ceia), produzindo um inoportuno discurso em cuja ambiguidade reside o elemento criador do cômico na composição, e esse elemento resultaria compreensível, à primeira vista, aos conhecedores da língua e de suas características.

Eu ainda voltarei a esse poema mais à frente, com uma proposta de recriação em português, mas o trago no início deste texto para advertir o leitor quanto à natureza do trabalho que aqui se discute. Então, se, em princípio, a tradução de poesia seria impossível, a transcriação é uma possibilidade. E há poemas que podem se configurar como altamente desafiadores à transcriação, momento em que a recriação – no sentido de reimaginação, conforme veremos – se desenha como alternativa. Este trabalho trata disso, guardadas as devidas diferenças entre a prática recriadora na Antiguidade e a que se fará neste texto, de forma que, desde já, antecipamos as nossas escusas ao leitor que não aprecia recriações. Eu sigo nos caminhos de Haroldo de Campos, acompanhado de outros.5

2. Seguindo uma filosofia para a tradução

As relações entre Filosofia e Literatura remontam ao surgimento do próprio discurso filosófico, mantendo-se produtivas até nossos dias, haja vista o fato de que a ambas os teóricos da tradução costumam atribuir a etiqueta de “intraduzíveis”; embora, em relação à Literatura, isso ocorra mais especialmente quando se refere à tradução de poesia.6 Márcio Seligmann, enfatizando o aspecto tradutório, destaca como certo modelo de tradução que consideramos geralmente pelo rótulo de “tradicional” estaria bastante articulado a uma vertente da filosofia que teria como característica básica uma visão representacionista da linguagem. É, pois, assim, que sugere a expressão “filosofia da tradução” como uma abertura à reflexão crítica a esse modelo.7 Naquela visão, se a linguagem é uma representação das ideias, de forma que a própria língua seria já uma forma de tradução, pois o mundo é visto como um texto e a filosofia poderia restituir a verdade do mundo, ela – a filosofia – poderia ser considerada uma forma de tradução, capaz de ler a essência perdida; o conhecimento, então, seria a “leitura-tradução” do mundo. Como bem adverte Seligmann, apesar da revisão dessa concepção a partir da filosofia racionalista do séc. XVIII, em que o signo é visto como uma criação arbitrária, ela ainda é passível de ser encontrada até nossos dias.

Do ponto de vista da tradução, essa visão essencialista está no bojo de uma concepção tradutória que privilegia o chamado “original”, o texto de partida, de forma que a composição resultante, na língua de chegada, seria sempre devedora do original, este visto como o portador da essência e da verdade. Será a partir de uma desassociação entre significantes e significados que a ideia de tradução se constituirá como impossibilidade, já que, se, por um lado, haveria a possibilidade de tradução do significado, por outro, o significante seria intraduzível, especialmente nos textos poéticos, em que o trabalho com a forma é elevado a um grau máximo de significação e onde “a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”,8 de forma que apresentaria uma fragilidade máxima e qualquer nova estruturação dos signos verbais em outra língua “perturbaria sua realização estética”.9 Dessa forma, dada a imprevisibilidade e a fragilidade da informação estética, restaria a possibilidade de alguma forma de transcriação, para retomar esse termo difundido particularmente por Haroldo de Campos (a partir do conceito jakobsoniano de transposição criativa).10

Neste trabalho, que se dedica à tradução de poemas latinos que apresentam demandas tradutórias particulares, parte-se de uma concepção de tradução como forma de sobrevivência, que modifica o chamado original ao lhe trazer algo que resulta em crescimento, em reincorporações em outra língua, original então submetido a conformações não necessariamente previstas em seu estado primeiro. Mas a tradução, em dupla via, modifica também a própria língua de chegada, uma vez que a experiência de contrato e de contato com a língua então esteticamente trabalhada provoca na língua traduzida um reconfigurar-se no estranhamento da experiência estética.11 Nessa perspectiva, a posição pode inverter-se, de forma que o original não seria “uma plenitude que viria a ser traduzida por acidente”,12 mas serviria “de certo modo à tradução, no momento em que a desonera da tarefa de transportar o conteúdo inessencial da mensagem”.13 Segue-se, pois, aqui, com Derrida, a ideia de tradução como “uma escrita produtiva evocada pelo texto original”.14

Trajano Vieira, em um envio de newsletter de seu site,15 nos apresenta uma declaração-resumo do pensamento sobre tradução que se ajusta ao que proponho aqui e que, de algum modo, retoma o pensamento de Benjamin,16 Derrida e Campos:

É possível imaginar que, para o tradutor de poesia, exista, num horizonte utópico, um conjunto de traduções poéticas que componham um mosaico, irradiando no original ausente um sentido composto de formulações complementares. [...] A ilusão do idêntico diferente, do quase idêntico do mesmo, do quase mesmo do diferente, acaba concebendo o “original” não como núcleo da unidade, mas como confluência do diverso. O “original” não mais é visto como o primeiro de uma hierarquia, mas como a construção indelimitável de uma ausência. (Vieira, 2020; as aspas em “original” são nossas).

É, pois, esse contrato que aqui se estabelece, decorrente do contato entre línguas e culturas, de forma que os poemas latinos aqui apresentados ao lado de sua reescrita portuguesa (brasileira, diga-se de passagem), se inscrevem como uma experiência de tradução como um suplemento que almeja enriquecer o dito original, não uma tradução posta ao lado “por acréscimo”, mas uma tradução que quer acrescer.17

Então, me pauto também em Jakobson, para quem, em relação à poesia, só é possível falar de “transposição criativa”,18 ou, em uma palavra, transcriação. Esse termo, difundido entre nós por Haroldo de Campos, refere-se, pois, à tradução de poesia em geral, para a qual, em sua visão de poeta e teórico, deveria haver uma espécie de hiperfidelidade, associada principalmente ao modo de construção do poema (e isso quer dizer não apenas a seus efeitos mais superficiais ligados à métrica ou à rima); ou seja, a ideia de transcriação não implica a liberdade para criar ou se fazer uma adaptação livre, mas, ao contrário, demanda uma fidelidade extrema.19 Ou seja, dado que, com as inseparáveis relações entre forma e conteúdo no jogo poético, a informação poética em uma língua é intraduzível sem algum tipo de perda da informação estética, é a transcriação que permite que o poema reviva, de alguma forma, em uma outra língua.20

Por outro lado, Campos também reconhece a possibilidade de não somente se fazer a transcriação, mas ainda uma re-criação, de forma que o texto da língua de partida seria ‘reimaginado’, ou seja, ‘refeito’, ‘criado novamente’, um tipo de produção a que Campos se referia como transiluminuras, a partir do make it new de Ezra Pound, em que o passado literário se vivifica via tradução.21 São experiências em que não haveria “apenas uma transcriação do texto, mas uma recriação do extratexto”.22 Ou seja, seriam reimaginações ou reinvenções,23 elas mesmas experimentadas por Haroldo, como a que se registra na seção “greguerias e latinórios” do livro Crisantempo, em que uma ode de Horácio (1, 38) é recriada em diálogo com a Conversa de botequim de Noel Rosa (1935) e a que o próprio Campos se refere como “um modo de fazer o novo” – make it new –, “de fazer Horácio cantar Noel Rosa”.24

Se a tradução de poesia implica sempre uma transcrição, podendo o tradutor se direcionar a uma recriação, reimaginação ou reinvenção, há casos em que, consideradas as diferentes realidades culturais entre a língua de partida e a língua de chegada, a opção pelo recriar, reimaginar, reinventar se mostra ainda mais sedutora e produtiva. São aqueles casos extremos de construções repletas de entraves – ou de possibilidades. Como diz Campos, “quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação”.25

Em um certo tipo de construção textual, com inçamentos específicos de dificuldades, como as que veremos mais à frente, as relações entre a estrutura intratextual é problematizada também pela existência de fatores extratextuais marcadores de distanciamentos entre realidades culturais. Nesse caso, mais do que a “transcriação como prática paramórfica”,26 comum à tradução de poesia de um modo geral, teríamos uma questão associada à função, e um incremento na necessidade de recriar, de reimaginar, de reinventar, dada a relação do texto literário com o contexto sócio-histórico:

Como o conceito de função tematiza a relação do texto com a realidade extratextual, permite ele elucidar os problemas salientes que o texto buscava levantar. Deste modo, torna-se possível reconstruir um mundo passado e assim recuperar uma experiência histórica da qual se pode dizer que se abre à compreensão, muito embora nunca seja uma realidade concretamente vivida pelo presente (Iser, 1983, p. 943).

É com esse intuito que sigo, então, com a seleção de poemas e suas recriações, reafirmando – diante de textos poéticos – sua dupla problemática já apresentada: i) a necessidade da tradução de poesia; ii) a necessidade de “encaixe” de elementos culturais que poderíamos chamar de equivalentes. A indicação da primeira problemática – traduzir poesia – já deixa claro que não se escolhe aqui abandonar o caminho de “levar o leitor para mais perto do mundo estrangeiro do autor”,27 mas, ao contrário – pela valorização da poesia e diante de questões contextuais sócio-históricas – escolhe-se fazer, na medida do possível, os poemas viverem em língua portuguesa, rítmica e contextualmente, desvinculados do imperativo de notas explicativas.28

Agora que nos dirigimos à parte do texto em que apresento as recriações propostas, reitero, conforme disse na parte introdutória, o pedido de escusas ao leitor que não aprecia reimaginações de poemas. A experiência aqui quer ser – de alguma forma – antropofágica.

3. A experiência da recriação de poesia latina

Os textos latinos que serão objeto de recriação em língua portuguesa são atribuídos a Décimo Magno Ausônio, um poeta do séc. IV e.c. que foi preceptor de Graciano, filho de Valentiniano I, imperador romano de 364 a 375. O autor tem uma obra de transmissão complexa e de gêneros variados, mantendo ainda uma produção de tom pagão, especialmente em seus Epigrammata e Epitaphia. Os epigramas, cuja influência estaria mais associada aos epigramatistas gregos que a Marcial, são um conjunto de 121 composições ora próprias, ora recriações em latim de poemas gregos da Antologia Palatina, dos Epigrammata Bobiensia e de outros autores. Obviamente, dada a complexa transmissão dos textos, o número de epigramas varia de edição para edição, de forma que, seguindo a praxe, esclareço que os textos latinos aqui utilizados são da edição crítica de Green (1991), mantendo-se neste trabalho a sua numeração.29

Então, parece que nos dirigimos a uma proposta de recriação portuguesa de outras recriações latinas ausonianas, de forma que essa maneira de metatradução se reveste também de uma carga recreativa. Se, por um lado, intentaremos apresentar os poemas selecionados em uma forma funcional em nossa língua, com recriações do extratexto, por outro, não pretendemos desconsiderar uma recriação atenta aos jogos poéticos na língua de partida, vendo som e ritmo como parte do sentido, “como parte material do significante, indissociável do significado”,30 de forma que se estabeleça algo do estranhamento que as composições tomadas poderiam ter provocado aos leitores contemporâneos à produção.31

Na recriação, contudo, o tradutor se depara com a necessidade de dizer, em outro sistema linguístico e em outra realidade cultural, aquilo que, obviamente, não foi previsto no chamado original. Se a tradução envolve uma situação de hospitalidade,32 em que acolhemos o estranho em nossa casa, é preciso que se considere que o hóspede se modifica com nossa forma de acolhimento e que nos modificamos também com a presença dele. Como bem lembra Derrida, o anfitrião, o que oferece hospitalidade, é o dono da casa, mas eticamente vinculado a uma situação de prover o cuidado, evitando a hostilidade.33 Então, como nunca é possível dizer o mesmo em uma outra língua, assim como toda situação de hospitalidade implica modificação em dupla via – a do hóspede e a do anfitrião –, a ética do acolhimento e da recriação implica “uma reconstrução, uma interpretação do que se leu no original e que se pretende verter em outra língua: enfim, não uma reprodução, propriamente, mas uma (re)criação condicionada pelo original”.34

Na sequência, então, apresento seis epigramas ausonianos e suas recriações portuguesas, com comentários a pontos problemáticos específicos em relação não somente ao extratexto, mas também a escolhas ligadas ao ritmo e à sonoridade das recriações propostas: três epigramas dedicados ao retor Rufo (48, 49 e 50), em que os jogos com a língua latina desafiam o tradutor e abrem caminho à recriação; dois outros a respeito de uma bebida de nove ingredientes chamada dodra (96 e 97), em que as relações entre língua e cultura se extremam, e a recriação se mostra também um caminho produtivo; e, por fim, um dedicado a Méroe, uma velha que se entrega à embriaguez (21), em que as relações entre língua, etimologia e cultura são os provocadores de inçamentos de dificuldade ao tradutor.

Iniciemos com os poemas em torno do retor Rufo, em sua versão latina e em uma tradução mediadora ou interpretativa do poema:

48

Rĕmĭnīscŏ Rūfūs | dīxĭt īn vērsū sŭo;35
cŏr ērgŏ vērsŭs, | īmmŏ Rūfūs, nōn hăbet

Rufo disse reminisco em um verso seu;
portanto, o verso não tem cor, nem tampouco Rufo.

A composição latina é realizada em trímetros iâmbicos e apresenta uma construção rica em logopeia, em um jogo entre a primeira pessoa do presente do depoente reminiscor (‘eu me lembro’), escrito à moda de um não depoente, i. e., sem o –r de –cor, de forma que é possível galhofar do retórico que tem fama de durão e que demonstra, em sua escrita, o desconhecimento de um elemento da gramática latina, que é o fato de existir verbos depoentes.36 O jogo se torna possível, na língua de partida, com a palavra latina cor (‘coração’), que tanto se refere ao coração como sede da sensibilidade (de forma que o professor seria insensível) quanto quer dizer ‘inteligência’ ou ‘bom senso’ (de forma que o professor seria falho). No ritmo saltitante do trímetro iâmbico, com a alternância frequente de breves e longas, em associação aos jogos de sentido, o poema ganha contornos de escárnio.

Mas a tradução mediadora apresentada acima, ainda que à moda estrangeirizante, com a manutenção das formas latinas reminisco e cor, só faz sentido se enriquecida de notas, mas ainda assim careceria de atenção ao ritmo do texto latino. Se pensarmos em termos de economia e de escopo,37 é possível que as traduções possam existir prescindindo de notas, especialmente a tradução de poesia, conforme nos recorda Derrida quanto ao fato de qualquer problema poder ser discutido em uma nota, muito embora a nota, no caso do texto poético, já não seja mais o poema, mas um texto que lhe dá suporte.38 Dada a irrepetibilidade, em português, do jogo com o depoente reminiscor e o substantivo cor, vejamos a recriação proposta:



Estar ‘lembrano’ Rufo usou, num verso seu;
o verso não tem ‘dó’, igual ao rude Rufo.

Como se vê, a recriação que propus, então, ao poema, em português, foi em dodecassílabos, para refletir, em alguma medida, a quantidade de sílabas do verso latino, quantidade enriquecida com as possibilidades de substituição de elementos livres que podem ser realizados com duas breves. Na recriação, como exercício poético e de economia de notas, retomamos uma construção perifrástica do português brasileiro empregada fora da norma padrão e conhecida como gerundismo, e com ela operamos a simplificação do –ndo do gerúndio para –no (uso típico de certos falares brasileiros e alvo de preconceito linguístico), de modo que a forma verbal resultaria sem “-do” (na recriação fazendo jogo com o substantivo “dó”), assim como o reminisco de Rufo ocorre sem –cor (em um jogo com o substantivo cor).

Poderíamos ter traduzido dixit (‘disse’) por ‘escreveu’, pois o “escrever” remete à nossa forma de produzir poesia, ao invés de “dizer” poesia em voz alta para uma plateia de ouvintes, como se fazia na Roma antiga. Optei por traduzir a forma verbal por uma outra que mantivesse, de algum modo, os dois sentidos, aproximando as duas línguas, i. e., uma forma que pudesse se associar em português tanto à fala quanto à escrita (daí ‘usou’ – metricamente funcional).

A forma rude, no verso dois, ocorre na tradução enfaticamente, considerando não somente esse poema em especial (cor Rufus non habet) mas também os demais poemas dedicados a satirizar o retor. Retoma-se, então, a ambiguidade, já que em português o termo faz referência tanto à insensibilidade de Rufo, sem cor – sem ‘dó’, quanto à sua imperícia no uso da língua. ‘Rude’ ao lado de ‘Rufo’, no verso dois, é uma aliteração lembrete daquela que ocorre no verso um do original latino: reminisco Rufus. Em português, a inclusão de ‘rude’, – em duas sílabas – ocupa metricamente o lugar de ergo, mais prosaica e não presente na recriação.39

Nesse caso, preferimos deixar o poema viver em português prescindindo de notas, mas admitimos o inverso, que uma nota poderia advertir o leitor quanto ao tipo de construção que se registra no dito original, depois de a fruição estética ter sido realizada a partir da leitura do poema, plenamente funcional em nosso idioma.40 Assim, se, por demanda editorial, as notas forem eliminadas, o poema não terá seu sentido comprometido, nem se converterá em objeto de fruição apenas a latinistas ou a alguém com rudimentos do latim.41

O poema que se segue é derivado do anterior e parece ser a demonstração do exercício de aemulatio, em que o poeta parece estar experimentando variações sobre o mesmo tema.42 Veja-se em latim e em uma tradução mediadora possível:

49

Quī ‘rĕmĭnīscŏ’ pŭtāt | sē dīcĕrĕ pōssĕ Lătīne,
hīc ŭbĭ ‘cō’ scrīptum ēst, | făcĕrēt ‘cōr’, sī cŏr hăbēret.

Quem se julga poder dizer reminisco em latim,
neste lugar onde escreveu co, colocaria cor, se coração tivesse.

Nota-se, no texto latino, o mesmo jogo com o depoente reminiscor (realizado reminisco) e com o substantivo cor, mas agora a realização rítmica se dá em hexâmetros, e o jogo com elementos linguísticos se explicita com a presença do nome da língua sob a forma do advérbio Latine (‘em latim’).



Quem pensa, em português, poder dizer ‘lembrano’
Onde pôs ‘no’, poria um ‘do’, se dó tivesse.

A recriação em dodecassílabos, em número de sílabas inferior ao original latino, preserva o jogo com a construção perifrástica (aqui com a elipse do auxiliar ‘estar’, por necessidade de economia de sílabas) e o uso do substantivo ‘dó’, conforme já ocorrido no poema anterior. A realização da composição em outra língua resultou na tradução do advérbio latine (‘em latim’) pela locução adverbial ‘em português’, de forma que a recriação aqui também dispensa que a fruição se dê pela leitura da nota e permite que haja uma dupla fruição, caso se opte pela nota, na recriação portuguesa, informando o jogo criado na língua latina: o leitor frui no jogo do sentido com o ritmo em língua portuguesa e, havendo nota, observa o mesmo jogo na língua de partida, potencializando a fruição. Seja como for, nesse caso, a nota seria, a princípio, dispensável, porque o texto é recriado em português.43

A terceira composição em torno de Rufo é, na verdade, conforme vimos no início deste texto, menos concisa que seu modelo da Antologia Palatina. Trata-se, pois, de uma recriação ausoniana, de forma que minha recriação é metarecriação, ou recriação de recriação. Na tradução mediadora que apresentamos antes, o poema, do ponto de vista do sentido, se converte em uma anedota de latinista ou de conhecedores de línguas que apresentam três gêneros gramaticais. O poema se constrói também forte em logopeia, em um jogo entre sexo e gênero gramatical, resultando que, com a inapropriada exortação aos noivos, em suas bodas, o retórico, apesar de bom conhecedor de gramática ou ao menos exibicionista quanto a qualquer mínimo conhecimento que tivesse, demonstra sua inabilidade social ao criar uma situação inoportuna, já que à época, ao fazer referência ao sexo do gênero neutro, ele estaria a desejar, aos noivos, entre sua prole, um hermafrodito ou algum filho que viria a se tornar um eunuco.44 A recriação ausoniana do poema atribuído a Paladas não encontrou problemas quanto à questão dos três gêneros, já que grego e latim são semelhantes nesse aspecto: em ambas as línguas há gênero masculino, feminino e neutro. Ausônio recria o poema por outras razões. Já na gramática portuguesa, temos apenas os gêneros masculino e feminino, existindo aqueles biformes e aqueles que apresentam uma única forma para o masculino e o feminino (são os chamados: comuns-de-dois, epicenos e sobrecomuns).

O poema latino é escrito em sistema iâmbico, com dísticos de trímetros e dímetros. Dada a quantidade de sílabas dos versos latinos, com as substituições possíveis de elementos livres e longas por duas breves, optei por uma recriação em dodecassílabos, para os trímetros, e em decassílabos, para os dímetros. Nossa recriação reflete a mescla latina entre sexo e gênero gramatical, com a utilização de nomenclatura sexual e gramatical para gênero em português.

50

Rūfūs vŏcātūs rhētŏr ōlim ād nūptĭas.
Cĕlĕbri ūt fĭt īn cōnvīvĭo,
grāmmătĭcae ŭt ārtīs sē pĕrītum ōstēndĕret,
haēc vōtă dīxīt nūptĭis:
“ēt māscŭlīni ēt fēmĭnīnī gīgnĭte 5
gĕnĕrīsquĕ neūtrī fīlĭos”.

Foi chamado a um casório, então, Rufo o linguista.
Como sói ocorrer nas cheias bodas,
querendo ser o tal, na arte gramatical,
aos nubentes tais votos declarou:
“que vocês gerem filhos, em gênero vário: 5
fêmeas, machos, biformes e epicenos”.

A próxima sequência de poemas é dedicada à dodra, uma bebida latina composta de nove ingredientes e que tira seu nome exatamente dessa sua forma de composição, já que um dodrante, no sistema de medidas latino se refere aos 9/12 (o que equivale aos 3/4) de um todo.45 Ora, como o sistema de medidas em nossa cultura é bastante diverso e isso se reflete na língua, a tradução dos poemas que se seguem, efetivamente no tecido de poema, somente pode ocorrer sob a forma de recriação, o que pode ser visto pela tradução mediadora que apresentamos primeiramente, exatamente para mostrar a necessidade de notas explicativas para que o poema faça sentido em outra cultura:

96

Dōdra ēx dōdrānte ēst. | Sīc cōllĭgĕ: iūs, ăquă, vīnum,
sāl, ŏlĕūm, pānīs, | mēl, pĭpĕr, hērbă, nŏvem.

A dodra existe segundo um dodrante. Reúna assim: caldo, água, vinho,
sal, óleo, pão, mel, pimenta, erva: nove.

Como se vê, efetivamente a tradução não funciona em sua plenitude estética no português, demandando, além de investimento rítmico, uma nota explicativa que faça algum tipo de ajuste entre as culturas. Com a devida vênia da letra do poema latino, escrito em um dístico elegíaco e recriado, pela quantidade de sílabas em latim, em dodecassílabos e decassílabos em nossa língua, a construção proposta buscou trazer outro elemento do campo semântico da alimentação com nome também motivado pela quantidade, já que em nossa cultura o sistema de medidas desconhece dodrante:



Já que a base é dual, o baião sabe a dois.
Tempera bem, mas põe feijão e arroz.

A aliteração em /d/, de dodra e dodrante, se mantém em português em ‘dual’ e ‘dois’. Na recriação portuguesa, o campo semântico da alimentação é mantido, mas os ingredientes se alteram e deixam de ser nove, conforme está no original, embora esse elemento possa se manter, caso uma recriação tenda a ver em português um elemento de nossa cultura associado ao número nove, conforme vemos na recriação a um outro poema sobre o mesmo tema da dodra:

97

“Dōdră vŏcōr”. “Quaē caūsă”? |”Nŏvēm spĕcĭēs gĕrŏ”. “Quaē sunt?”
“Iūs, ăquă, mēl, vīnūm, | pānīs, pĭpĕr, hērba, ŏlĕūm, sal.”

Me chamo dodra. “Por quê?”. Levo nove ingredientes. “Quais são”?
Caldo, água, mel, vinho, pão, pimenta, erva, óleo, sal.

Nesse caso, agora em hexâmetros, Ausônio parece estar criando e recriando dentro do mesmo tema, experimentando até encontrar a medida do poema, razão pela qual não nos furtamos também de, em nossas recriações, experimentar formas de vida do poema em português,46 jogando com nomes motivados por quantidades ou ligados à alimentação, nas composições em dodecassílabos que se leem a seguir:



Baião de dois me chamo. “Por quê?”. Sou em dois.
“Como assim”? É porque levo feijão e arroz.
Sim, me chamo novena. “E por que tu dirias?”
Não sou tríduo, ou trezena, e tudo é em nove dias.

Ainda seguindo no território das experimentações, de algum modo como fazia Ausônio, mas hoje com intuito diverso, uma opção mais aproximadora do poema latino seria considerar uma bebida de nome ‘garrafada’, que se deriva de ‘garrafa’, um termo geralmente utilizado como equivalente a 3/4 do litro (assim como a dodra equivalia a 9/12, i. e., 3/4 do asse). A garrafada é nome que se dá a um composto feito com plantas medicinais em infusão em bebidas alcoólicas, principalmente o vinho, mas ainda podem ser utilizadas outras substâncias solventes ou extratoras como a água, o mel ou o vinagre.47 Vejam-se, pois, as traduções que proponho a seguir aos dois poemas (o 96 e o 97). O 96, originalmente um dístico elegíaco, é recriado em dodecassílabo e decassílabo em português; o 97, por sua vez, escrito em hexâmetros, é traduzido em dodecassílabos:

96

Garrafada provém de garrafa. Una assim:
erva em vinho ou água, vinagre ou mel.

97

Garrafada me chamo”. “E por que diz assim?”
“É em garrafa a conserva: água ou vinho ou mel e erva.”

O último poema a que me dedico neste texto é um direcionado a uma velha que gosta de beber e que, chamada Méroe, tem seu nome explicado à moda de uma etimologia popular. O poema todo se constrói a partir dos chamados speaking names, i. e., dos ‘nomes que falam’, que trazem em si um significado baseado em alguma forma de etimologia e que o poeta utiliza para explicar como eles dariam indícios da forma como seriam os costumes da pessoa ou então sobre sua sorte ou sua morte (v. 3-4). Sob a forma de um pequeno catálogo, desfilam os nomes de Hipólito (v. 2), Protesilau (v. 5), Ídmon (v. 7), Iápige (v. 7), e – a partir da explicação desses nomes, sobre seu destino ou sua morte – o poeta buscará explicar o costume de beber de Méroe (v. 9-12) como se isso já tivesse sido anunciado por seu nome. A tradução que apresento primeiramente é mediadora, focada no entendimento do significado ou, em uma palavra de Benjamin, carregada do inessencial:

21

Quī prīmūs, Mĕrŏē, nōmēn tĭbĭ cōndĭdĭt, īlle
Thēsīdaē nōmēn ‖ cōndĭdĭt Hīppŏlĭto
Nām dīvīnāre ēst nōmēn cōmpōnĕrĕ, quōd sit
fōrtūnae ēt mōrūm ‖ vēl nĕcĭs īndĭcĭum.
Prōtĕsĭlāĕ, tĭbī nōmēn sīc fātă dĕdērunt, 5
vīctĭmă quōd Troīaē ‖ prīmă fŭtūrŭs ĕras.
Īdmŏnă quōd vātēm, mĕdĭcūm quōd Iāpўgă dīcunt.
Dīscēndās ārtēs ‖ nōmĭnă praēvĕnĭunt.
Ēt tū sīc, Mĕrŏē, nōn quōd sīs ātră cŏlōre,
ūt quaē Nīlĭăcā ‖ nāscĭtŭr īn Mĕrŏe, 10
īnfūsūm sēd quōd vīnūm nōn dīlŭĭs ūndis,
pōtāre īmmīxtūm ‖ suētă mĕrūmquĕ mĕrum.

O primeiro que estabeleceu a ti o nome, Méroe, aquele mesmo
estabeleceu o nome ao Tésida Hipólito.
De fato, predizer é compor um nome que seria um indício
do destino e dos costumes ou da morte.
Protesilau, os fados te concederam assim o nome, 5
porque virias a ser a primeira vítima de Troia.
Os nomes com que chamam o adivinho Ídmon ou o médico Iápige
anteciparam as artes que iriam ser aprendidas.
Assim também és tu, Méroe, não porque sejas de cor negra,
como a que nasce na Méroe do Nilo, 10
mas porque não dissolves em água o vinho vertido,
acostumada a beber não misturado e puro o vinho puro.

A compreensão do poema demanda a observação das relações entre nomes e pressupostas etimologias, de forma que, ambientado em uma cultura que lê cotidianamente os clássicos e estuda o latim e, minimamente que seja, o grego, a percepção do jogo estabelecido pelo poeta pode se fazer de forma mais ou menos natural. A tradução obviamente poderia trazer dados do texto que o situassem em outra cultura e em outro tempo (conforme se lê na tradução mediadora) e que produzissem “estranhamento por serem diferentes da nossa realidade, não se apagando o que constitui marcas da alteridade de uma outra cultura nele impressas”.48 Mas eu continuaria concordando com Vasconcellos (2011, p. 73) no fato de que essa postura representa uma fidelidade por vezes mais ao sentido privilegiado pelo tradutor-intérprete, em desprezo da forma, e uma obediência ao sentido que enclausura o poema em notas intermináveis.

Nessa perspectiva, a chamada tradução mediadora que apresentamos acima demandaria notas que justificassem que a menção a Hipólito, no verso 2, se explica pelo fato de seu nome Ἱππόλυτος ser associado etimologicamente a ἵππος, ‘cavalo’ e ao verbo λύω, ‘soltar’, quer dizer, “aquele que solta, que deixa andar os cavalos”,49 de forma que estaria demonstrado assim como se daria a sua morte.50 Para explicar o destino e a morte de Protesilau, vaticinado como o primeiro a tombar na guerra de Troia, seria preciso considerar as formas gregas πρῶτος (‘primeiro’) e σῦλον (‘rapina’), i. e., “o primeiro a saquear Troia”, ou πρῶτος (‘primeiro’) e λαός (‘povo’, ‘multidão’, ‘exército’), i. e., “o primeiro do povo a saltar em Troia”.51 Mesmo assim, tais nomes ainda estariam no repertório da cultura literária clássica de muitos leitores, diferentemente de outros, menos conhecidos.

Para entender o destino de Ídmon, que participou da expedição dos Argonautas como adivinho, seria preciso associar seu nome ao verbo οἶδα (‘saber’, ‘conhecer’), cuja forma ἴδμων significa “aquele que conhece”,52 de fato um nom parlant para ‘adivinho’. Talvez ainda menos parte do repertório de cultura literária clássica geral seja a referência ao médico de Eneias,53 Iápige, cujo nome Ἰάπυξ tem etimologia controversa e é geralmente compreendido como “aquele que cura”. Consideradas essas informações de ordem literária, cultural, a tradução assumiria a versão mediadora que exibimos (sem a atenção aos efeitos rítmicos latinos). Contudo, o maior problema na tradução – o trecho “inçado de dificuldade” – reside no fato de o jogo construído se basear na tentativa de associação do nome da velha Méroe ao seu costume de beber excessivamente.54 Se seu nome é um nome falante, para o leitor é preciso que se conheça o latim para vinculá-lo a duas formas latinas exploradas pelo poeta no verso final, revelador de todo o jogo que se começou a construir desde o verso 1: merum, um adjetivo neutro que significa ‘puro’, ‘autêntico’, e o substantivo neutro merum, que significa ‘vinho puro’, não misturado, em uma referência ao costume, considerado bárbaro, de se beber o vinho sem mescla com água. Aqui, mais uma vez, a fruição na leitura do poema depende do conhecimento da língua e da cultura romanas ou de notas que retirariam a plenitude estética do poema, fazendo-a depender de outros signos de construção não poética.

Em especial no caso dessa composição, me senti inclinado à recriação do poema, considerando a sua realização em língua portuguesa e alçando nomes da nossa cultura literária (da mesma forma como o texto latino alça os nomes da mitologia e da literatura clássicas) para se vivificarem no poema, de forma a recriar em português não somente seu estrato sonoro e imagético, mas o estrato logopeico do jogo com etimologias por vezes populares. Obviamente, o faço assumindo os custos de, na recriação, estar praticando um “sacrilégio supremo”.55 Considerando a composição latina em dísticos elegíacos, recomponho o poema traduzindo os hexâmetros por dodecassílabos e os pentâmetros por decassílabos.



Quem primeiro a ti, Branca, deu o nome, por certo
o mesmo deu nome ao Amado Jorge.
Predizer é compor, assim, um nome, indicando
ou a sorte, ou os costumes, ou a morte.
O verso alexandrino em nome de Bilac
por certo era um prenúncio de su’arte.
Anjos abrandariam a angústia d’Augusto.
Quão profundo, murchou tão cedo o Rosa.
Assim também tu, Branca, não porque és clara,
em tua pálida origem ariana,
mas porque não temperas o álcool em teus drinks,
dada a, pura, beber, braba a branquinha.

O Hipólito da versão latina, morto por uma intriga da madrasta não amada por ele, abre espaço ao escritor Jorge Amado, na versão portuguesa. O poema em latim evidencia a sorte de Protesilau, que será o primeiro a morrer na guerra de Troia, e, em português, o destino do poeta Olavo Bilac estaria definido no seu nome completo, que é um dodecassílabo alexandrino (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac). Os destinos de Ídmon e de Iápige, menos presentes em nossa cultura literária, aparecem em português ressignificados sob os nomes de Augusto dos Anjos, com seu conhecido epíteto reducionista de poeta da melancolia ou da morte, e de Guimarães Rosa, morto antes dos 60 anos.

No poema latino, o nome de Méroe poderia se referir, conforme nos lembra o verso 10, ao nome de uma antiga cidade na margem leste do rio Nilo (daí a Niliaca Meroë), na Núbia, cuja população tinha a pele bem escura, mas também é uma referência a uma mulher com hábitos masculinos, haja vista o fato de os homens serem mais conhecidos por ter pele escura entre os romanos, pela vida fora do âmbito da casa (as mulheres costumavam ser mais claras).56 Em nossa recriação, antropofagicamente e em uma direção inclinada mutatis mutandis ao decolonial, a beberrona Méroe, negra do Nilo, se vinga em uma Branca ariana com o mesmo hábito (lá o do vinho, aqui o da cachaça): os tempos são outros. Nesse sentido, se este trabalho se propusesse a recuperar aspectos da transmissão textual dos epigramas ausonianos, o poema poderia ter o título “Contra uma velha alcóolatra nos trópicos”.57

Seguindo a prática ausoniana de escrita de uma série de poemas para experimentar o mesmo tema e pensando em como as recriações poderiam tender ao infinito, em um universo de reflexos de que fala Trajano Vieira, finalizo esta seção com uma recriação desse poema feita por alunos em um curso de poética e tradução latina, recriação marcada pelo ritmo e pela incorporação de elementos de nossa cultura literária e em que Méroe toma o nome de uma vodka popular no Brasil:



Natasha, dar nome a alguém
É dar-lhe – qual profecia – a sorte,
Os modos de ser, ou mesmo a morte.
Foi assim com teu nome também.
Nenhum nome ao acaso foi dado,
Disso duas provas deu-nos o Fado:
Uma, Bentinho e seu eu taciturno,
Outra, o trágico fim de Baleia:
Ela, morta no seco, agonizando,
Como o bicho que a nomeia;
Ele, aspirando a santo, tanto,
Que, tolo, tornou-se Casmurro.
Tu, Natasha, não és branquinha,
Como uma russa importada,
Mas não misturas vodca com nada
E bebes sempre pura a purinha.58

4. Considerações finais

O trabalho aqui apresentado seguiu algumas premissas: a operação tradutória implica mais do que léxico e gramática, já que o texto corporifica a língua que não é apenas uma estrutura, mas um fato histórico e social, e é também um ato de fala e de discurso,59 e que se converte na poesia em uma expressão estética. Além disso, um texto naturalmente incorpora uma determinada expressão da realidade ou uma forma de ver a realidade, de modo que as operações linguísticas, incluindo as tradutórias, remeteriam e se refeririam a elementos culturais extralinguísticos.60 Daí que a perspectiva assumida, ideologicamente marcada, é a de uma tradução cultural que eticamente resguarde o estético, atravessado, na amostra apresentada, por elementos linguístico-culturais inçadores de dificuldades tradutórias.

No programa do make it new poundiano há espaço para “a modernização, a aproximação do contexto do tradutor, a apropriação que abala a primazia do original em proveito da eficácia estética da tradução na língua de chegada”,61 obviamente contrariando outras formas de se fazer tradução. Aqui assumimos essa perspectiva por exigência dos próprios textos, não por uma escolha por uma forma de praticar a recriação.

Esses casos de poemas – cujos jogos logo-fônico-imagéticos engendram efeitos estéticos ampliadores das relações entre língua e cultura – se, por um lado, inçam as dificuldades para o tradutor, por outro parecem autorizar (se é que é preciso) a recriação, parecem convidar à reinvenção, ou parecem obrigar-nos à reimaginação, de forma que, de outro jeito, a realização em outra língua seria menos poesia e mais texto explicado em notas.

Há que se considerar, também, que há outras dimensões codificadas no poema, seja a sintática, a semântica, a sonora e a prosódica. Considerando essas dimensões, talvez um projeto de tradução, ou melhor, de recriação de poesia seja mesmo o de pensar o poema em sua totalidade, em um movimento de articulação das relações entre forma e fundo.62 E isso não significaria, como aponta Faleiros, “tratar os aspectos sonoros como sendo irrelevantes, mas implica colocá-los em relação com as equações semânticas, explorando as potencialidades do português, sem engessar a reescrita em moldes rígidos”.63

Por fim, os textos aqui recriados nos convidam também a pensar antropofagicamente, a fazer a carne do outro viver em nossa carne. Dessa forma, menos que soar como hostilidade ao corpo alheio, trata-se na verdade de praticar a hospitalidade, de receber o outro e de, pela ética do acolhimento em realização também estética, fazer o texto acolhido perdurar em recriação. Mas, acima de tudo, uma tradução como processo antropofágico naturalmente irá devorar o diferente e, de alguma forma, criar diferença.64 Finalizo com Campos:

Refazer esta alquimia, incluindo no seu “quimismo” ingredientes novos, para reativá-la em nossa língua, compensando assim aqueles que ficaram “recessivos” no câmbio forçoso de horizontes, é um privilégio do “transcriador” de poesia. Sobretudo quando esteja empenhado na reinvenção da tradição, para propósitos produtivos (não meramente conservativos), na perspectiva agora de um “transumanismo” latino-americano, necessariamente “antropofágico”.65

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Notas

1 Este trabalho é fruto de um projeto de tradução dos epigramas ausonianos que resultará numa edição em parceria com a Profa. Luciene Lages (UFS). Gostaria de registrar meus agradecimentos ao Prof. Milton Marques Jr. (UFPB) por ter me convidado a participar do II Colóquio de Letras Clássicas, em 09 de agosto de 2019, momento em que apresentei o trabalho intitulado “Questões tradutórias em poesia latina tardo-antiga: experimentos com os epigramas ausonianos”; fico-lhe muito grato por suas lições sobre métrica portuguesa. Agradeço também a Jacqueline Ramos (UFS) pelo convite para participar do III Seminário do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Literatura (GeFeLit), em 13 de dezembro de 2019, no qual apresentei o trabalho intitulado “Literatura e filosofia da tradução: experiência de recriação de poesia latina em português”. Este trabalho surge das reflexões feitas para as palestras desses eventos. Agradeço ainda a Marlene Holzhausen (UFBA), pelas conversas que iniciamos sobre Haroldo de Campos, a Renato Ambrosio, pela leitura cuidadosa que resultou nesta versão de meu texto, e a Shirlei Almeida e a Cristóvão Santos Jr., por aceitarem discutir comigo essas traduções. Registro também os meus agradecimentos aos pareceristas deste texto, que generosamente me fizeram excelentes sugestões, incorporadas a esta versão.
2 Campos (2005, p. 184) utiliza a expressão “traduções mediadoras” para aqueles casos em que o foco é simplesmente auxiliar na leitura do original. É esse o sentido que atribuo à expressão ao longo deste texto.
3 Sobre a recriação como exercício retórico para os romanos, ver Furlan (2001).
4 Paes (1993, p. 111). O texto grego é da edição da Antologia Palatina (1980), aos cuidados de Filippo Maria Pontani.
5 Para traduções de outros textos ausonianos ao português, leia-se o texto de Moreira (2012).
6 Ver Seligmann (1998).
7 Berman (2009 [1989], p. 345), citando nomes como Benjamin, Heidegger e Derrida, irá dizer que “a filosofia é tocada de perto pela tradução”, mas não faz referência a uma filosofia da tradução e sim a “um entrelaçamento do filosofar e do traduzir”.
8 Campos (2011, p. 32). A discussão sobre informação estética por Campos é tomada do filósofo e crítico Max Bense. O texto de Campos teve sua primeira publicação em 1963; a paginação apresentada aqui segue a edição de 2011.
9 Campos (2011, p. 32).
10 As bases do pensamento de Campos sobre a tradução de poesia se encontram em dois pólos complementares: o da metafísica da tradução, ligada às relações entre a tradução e o original, cujo alicerce é Benjamin, e o da física da tradução, associada à função poética da linguagem, a partir de Jakobson.
11 Nesse sentido, veja-se Derrida (1985, p. 122): “[...] the translator must assure the survival, which is to say the growth, of the original. Translation augments and modifies the original, which, insofar as it is living on, never ceases to be transformed and to grow. It modifies the original even as it also modifies the translating language. This process – transforming the original as well as the translation – is the translation contract between the original and the translating text. In this contract it is a question of neither representation nor reproduction nor communication; rather, the contract is destined to assure a survival, not only of a corpus or a text or an author but of languages” (Derrida, 1985, p. 122). O texto de Derrida é da edição inglesa de Christie V. McDonald (1985).
12 Ver Derrida (1985, p. 152): “[...] the so-called original is in a position of demand with regard to the translation. The original is not a plenitude which would come to be translated by accident. The original is in the situation of demand, that is, of a lack or exile, the original is indebted a priori to the translation”.
13 Campos (2005 [1981]) aqui se refere obviamente a mensagens estéticas, a partir do que propõe Benjamin em A tarefa do tradutor, para quem ao tradutor desse tipo de mensagem é dispensada a tarefa de comunicar algo, já disponível no original, de forma que estaria completamente livre para se centrar no essencial. A edição que utilizo aqui do ensaio “Transluciferação mefistofáustica”, presente no livro Deus e o diabo no Fausto de Goethe, é a de 2005 (p. 179). A edição do ensaio A tarefa do tradutor (1923) utilizada aqui é a do volume organizado por Branco (2008).
14 Derrida (1985, p. 153): “A productive writing called forth by the original text”.
15 Em https://www.trajanovieira.com.
16 Exceto, talvez, o que em Benjamin remeteria mais à dita língua pura do que ao original.
17 Ver Derrida (1985, p. 152-3): “He calls out, he desires, he lacks, he calls for the complement or the supplement or, as Benjamin says, for that which will come along to enrich him. Translation does not come along in addition, like an accident added to a full substance; rather, it is what the original text demands [...]”.
18 Ver Jakobson (1959, p. 238): “Poetry by definition is untranslatable. Only creative transposition is possible”.
19 Santana-Dezmann; Milton (2016).
20 Ver a influência de Bense e Fabri nessa forma de pensar a transcriação para Campos. Cf. Santana-Dezmann; Milton (2016).
21 Nesse sentido, veja-se a citação de Elliot que Campos apresenta, a respeito de uma tradução que o helenista Murray havia feito de Eurípides: “Necessitamos de uma digestão capaz de assimilar Homero e Flaubert. Necessitamos de um cuidadoso estudo dos humanistas e tradutores da Renascença, tal como Mr. Pound o iniciou. Necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o próprio presente. Eis o olho criativo; e é porque o Prof. Murray não tem instinto criativo que ele deixa Eurípides completamente morto” (Campos, 2011, p. 36).
22 Campos (1983, p. 245). Nesse extratexto, Campos inclui, a partir de W. Iser, não somente o referente contextual mas também o intertexto citacional. A citação se refere ao comentário de Haroldo ao trabalho de recriar os Rubáiyát de Omar Kháyyam “via Fitzgerald” de seu irmão Augusto.
23 Campos (1983, p. 245-6).
24 Campos (1996, p. 24-5). Ver tb. Nóbrega (2006, p. 250).
25 Campos (2004, p. 35).
26 Campos (1983, p. 240). Nesse texto, se assume a sua preferência pelo termo paramorfismo ao invés de isomorfismo. Por bem explicativo, transcrevo aqui o comentário de Tápia (2010) sobre esses dois conceitos: “A fim de esclarecer, metaforicamente, sua noção de ‘criações paralelas’, Haroldo lança mão (em seu referido texto de 1962) de um conceito da cristalografia, o de ‘isomorfismo’: o poema original e o poema recriado seriam como dois cristais isomorfos – duas substâncias de composição química diferente, mas com a mesma estrutura cristalina. No caso dos poemas, seriam “diferentes enquanto linguagem”, mas se cristalizariam “dentro de um mesmo sistema”, como os corpos isomorfos. Mais tarde, o poeta preferiria adotar o termo “paramorfismo” (o grego pará- significa “ao lado de”, como em paródia, “canto paralelo”).”
27 Gonçalves (2017, p. 63). Nesse texto, retoma-se o pensamento de Schleiermacher (2001 [1813]) sobre dois caminhos possíveis envolvidos no trabalho do tradutor: “trazer o autor traduzido para o mundo do leitor ou levar o leitor para mais perto do mundo estrangeiro do autor”. Obviamente, devemos nos atentar a Berman em A tradução e a letra e aos perigos da tradução etnocêntrica e da tradução hipertextual. Certamente, não procuramos nos situar no que aí se chama de etnocêntrico: “Etnocêntrico significará aqui: que traz tudo à sua própria cultura, às suas normas e valores, e considera o que se encontra fora dela – o Estrangeiro – como negativo ou, no máximo, bom para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura” (2007, p. 28). Também a natureza do que se propõe aqui se afasta do que Berman chama de tradução hipertextual, voltada à imitação ou alguma espécie de transformação formal de um texto existente. A questão aqui é de outra natureza: quando a recriação não é opção, mas a única possibilidade de o texto sobreviver acolhido em outra língua e em outra cultura. Sobre a visão de Berman, além do texto de Gonçalves, veja-se também Pym (2017, p. 294) e Francisco (2014). Sobre os problemas ligados às formas de tradução conhecidas como naturalizadoras e identificadoras, ver Rodrigues (1994) e as críticas a modelos normativos e universalizantes, onde se conclui que a tradução é política em cujo território sempre haverá cruzamento intercultural.
28 Obviamente, não se declara aqui a desvalorização do uso de notas como suporte à tradução de textos antigos. Na verdade, o que se defende é que, diante de poemas com determinadas questões de tradução da ordem do praticamente impossível, a recriação pode dar a esse poema uma forma de sobrevivência autônoma, sem depender de notas explicativas para que venha a fazer sentido em outra língua/cultura. Mais à frente, este artigo trata melhor a questão.
29 Em alguns casos, é possível que tenhamos alterado a pontuação utilizada por Green.
30 Vasconcellos (2011, p. 69). As discussões que se seguem sobre problemas de tradução de poesia latina se baseiam, principalmente, nesse texto de Vasconcellos.
31 Vasconcellos (2011, p. 69)
32 Derrida em seu texto Hospitalité (1999; sigo a edição em inglês Hospitality, de 2000) associará a tradução a uma atividade de hospitalidade: “translation also being, as we noted earlier, an enigmatic phenomenon or experience of hospitality, if not the condition of all hospitality in general” (2000, p. 6); “and the question of translation is always the question of hospitality” (2000, p. 10).
33 “The host, he who offers hospitality, must be the master in his house, he [...] must be assured of his sovereignty over the space and goods he offers or opens to the other as stranger” (Derrida, 2000, p. 14). Recorde-se que, em latim, hospes é tanto aquele que acolhe em casa, o anfitrião, quanto aquele que recebe a hospitalidade; e hostis é o hóspede, o estrangeiro, mas também o inimigo, daí hostil.
34 Vasconcellos (2011, p. 71).
35 As vogais em posição indifferens, no último elemento do verso, em que geralmente não é relevante a realização por uma breve ou uma longa, não aparecem aqui com marcação de quantidade. Ver Ceccarelli (1999, p. 44).
36 Sabemos que Rufo é um rhetor ou um grammaticus, para além do fato de ele se dedicar à escrita de versos, provavelmente como exercício retórico, também pelo que se depreende de outros poemas ausonianos.
37 Segundo a teoria do escopo, “o fator dominante é aquele pretendido pelo usuário de uma tradução” (Pym, 2017, p. 97) ou as escolhas do tradutor poderiam ser determinadas em função do propósito da tradução, incluindo o interesse do solicitante da tradução. Algumas editoras, por exemplo, podem decidir que as traduções que publica preferencialmente sejam acompanhadas de um número reduzido de notas.
38 Derrida (1985, p. 154-5): “but what he [o tradutor] is doing at that point is not an operation of translation: commentaries, analyses, warnings are not translations”.
39 Sobre os epigramas em torno da imperícia de Rufo ou à sua grosseria e dureza, ver, neste texto, os dois que se seguem. Veja-se ainda o epigrama 45, por exemplo, que é dedicado a uma estátua do retor e em que se diz que ela seria exatamente como ele, i. e., dura, sem língua e sem cérebro: Rhetoris haec Rufi statua est; nil verius ipsa est. / Ipsa adeo linguam non habet et cerebrum.
40 A recriação que aqui proponho, fruto de uma primeira versão apresentada em sala de aula, em disciplina de estudo de métrica latina, recebeu contribuições essenciais de Eudes Barletta, a quem agradeço.
41 O que não quer dizer que a existência da recriação desconsidere o original; pelo contrário, se o original demanda a tradução, é sempre bom poder ler a construção nas duas línguas, razão pela qual as edições bilíngues apresentam a vantagem da dupla fruição a quem conhece os dois idiomas.
42 Apesar de Ausônio por vezes recriar composições da Antologia Grega, não há registro sobre algum que lhe tenha servido de base para as duas composições, embora haja na Antologia alguns poemas fazendo troça de retores.
43 Na recriação em português, com a ausência do auxiliar ‘estar’ na perífrase ‘estar lembrano’, ainda seria possível uma espécie de compensação, com a inclusão de um acento em ‘nó’, de forma que se leria também um substantivo que poderia ativar a ideia de ‘problema’, ‘dificuldade’ com a construção e com a recriação em português; seria, pois, uma tradução que também discutiria o próprio processo tradutório.
44 Pellegrini (2011).
45 Ausônio, nas suas Écoglas (6, 21), apresenta alguma descrição das medidas: Nec dextans retinet nomen sextante remoto / et dodrans quadrante carens auctore carebit / divulsusque triens prohibet persistere bessem (“Nem o dextante [10 onças] conserva seu nome se retirado dele um sextante [2 onças], e o dodrante [9 onças], sem o quadrante [3 onças], carecerá de seu criador, e ao restar um triente [4 onças], se impede que exista o bes [8 onças]”). Se a onça (uncia) vale 1/12 do asse (moeda romana em um sistema duodecimal), um dodrante equivalendo, pois, a nove onças, seria o mesmo que 9/12, ou seja, a medida seria um asse menos um quadrante.
46 Nessa perspectiva, como adverte Vieira (2020), na newsletter anteriormente citada, poderia haver um conjunto de traduções poéticas que criaria “um universo de reflexos que poderia tender ao infinito, inúmeras são as formulações possíveis de uma manifestação, nunca igual, mas sempre idêntica, ao redor de um original que, pelo efeito multiplicador das versões, se ausenta”.
47 Ver Passos et al. (2018). Agradeço a Renato Ambrosio pela sugestão da garrafada para essa composição.
48 Vasconcellos (2011, p. 73).
49 DEMGOL (2013, s.v. Hipólito).
50 Iludido por uma carta que sua esposa Fedra lhe deixa após suicidar-se por conta da recusa amorosa de seu enteado Hipólito, Teseu expulsa o filho de casa e invoca uma punição a Posídon, que fará o jovem morrer precipitando seus cavalos pelas rochas ao se assustar com um monstro marinho. Ver, em Ausônio, Cupido cruciatus, 26.
51 DEMGOL (s. v. Protesilau).
52 DEMGOL (s. v. Ídmon).
53 Virgílio (Aen. 12, 391ss.).
54 Nas Metamorfoses de Apuleio (1, 7), também se registra uma velha com o mesmo nome: ad quandam cauponam Meroen, anum sed admodum scitulam... (“uma certa taberneira Méroe, velha mas bastante encantadora”).
55 Vasconcellos (2011, p. 73).
56 Os afrescos de Pompeia, por exemplo, são testemunhos dessa diferença. Certamente, as mulheres retratadas são da aristocracia, são mulheres que não precisavam trabalhar expostas ao sol. A pela clara às mulheres parece ser também um ideal de beleza (diz-se, p. e., que Cleópatra costumava se banhar em leite; para uma visão crítica relacionada à cor de Cleópatra, ver Shohat, 2004).
57 Para o título que propusemos em português, ver Horácio no Baixo, uma excelente recriação de Paulo Henriques Britto à famosa ode horaciana dedicada a Leucônoe (1, 11). Ver Britto (2011 e 2012). Em sua edição crítica, Green (1991) expunge os títulos dos epigramas, já que há divergências entre os testemunhos e alguns deles devem ser tardios. Para este em especial, a edição de Peiper (1886, p. 327), a de Evelyn White (1921, p. 180) e a de Prete (1978, p. 304) registram o seguinte título: InMeroen Anum ebriosam (“Contra Méroe, uma velha que se entrega à embriaguez”).
58 Recriação de Alberto Guimarães e Eudes Barletta (em curso de poética latina e tradução, na Universidade Federal da Bahia, em 2019).
59 Aubert (1995, p. 32).
60 Continuo com Aubert (1995, p. 32).
61 Nóbrega (2006, p. 251)
62 Ver Laranjeira (1963 apud Faleiros, 2015).
63 Faleiros (2015, p. 274).
64 Ferreira; Rossi (2013).
65 Campos (1983, p. 246-7).
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