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Esaú e Raquel sem a letra ‘e’, por Fulgêncio, o mitógrafo: tradução lipogramática do Livro V da De aetatibus mundi et hominis

Esau and Rachel without the letter ‘E’, by Fulgentius, the Mythographer: lipogrammatic translation of Book V from De Aetatibvs mvndi et hominis

Cristóvão José dos Santos Júnior
Universidade Federal da Bahia, Brasil

Esaú e Raquel sem a letra ‘e’, por Fulgêncio, o mitógrafo: tradução lipogramática do Livro V da De aetatibus mundi et hominis

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, pp. 315-324, 2021

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Febrero 2020

Aprobación: 28 Mayo 2020

Resumo: Esta é a primeira tradução lipogramática do Livro V da De aetatibus mundi et hominis, o mais antigo lipograma atestável. Essa composição é atribuída a Fábio Plancíades Fulgêncio, mais conhecido como Mitógrafo, que seria um escritor africano pertencente à Antiguidade Tardia, tendo vivido entre os séculos V e VI. Note-se, ainda, que o texto tradutório proposto é realizado a partir da edição crítica estabelecida pelo filólogo latinista Rudolf Helm (1898). Nesta quinta seção da obra, Fulgêncio condena o pecado da inveja descrevendo poeticamente as narrativas bíblicas dos irmãos Esaú e Jacó e das irmãs Lia e Raquel sem empregar unidades lexicais que apresentem a letra ‘e’, o que foi mantido em nosso texto de chegada.

Palavras-chave: Bíblia Sagrada, Fulgêncio, Antiguidade Tardia, lipograma, escrita constrangida.

Abstract: This is the first lipogrammatic translation of Book V of De aetatibus mundi et hominis, the oldest attestable lipogram. This composition is attributed to Fabius Planciades Fulgentius, better known as Mythographer, who would be an African writer belonging to Late Antiquity, having lived between the 5th and 6th centuries. It should also be noted that the proposed translation text is based on the critical edition established by the Latinist philologist Rudolf Helm (1898). In this fifth section of the work, Fulgentius condemns the sin of envy by poetically describing the biblical narratives of the brothers Esau and Jacob and the sisters Lia and Rachel without using lexical units that present the letter ‘e’, which was maintained in our arrival text.

Keywords: Holy Bible, Fulgentius, Late Antiquity, lipogram, constrained writing.

O Mitógrafo e a De aetatibus

A obra presentemente traduzida está revestida por um conjunto de problemáticas que envolvem desde questões relativas à autoria até aspectos concernentes à sua própria integralidade. Nesse sentido, é importante, antes de tudo, destacar que a De aetatibus mundi et hominis (Das idades do mundo e da humanidade)1 representa o mais antigo testemunho lipogramático materialmente apreciável, seguindo os dizeres de Georges Perec (Oulipo, 1973). Assim, esse estudioso salienta que, por vezes, são mencionados escritos ainda mais pretéritos, que teriam sido realizados por autores como Píndaro, Partênio de Niceia, Nestor de Laranda, Trifiodoro e Laso de Hermíone. Ocorre que, de todos esses compositores, só teriam remanescido alguns fragmentos creditados a Hermíone, de forma que a De aetatibus seria o mais antigo lipograma cuja condição formal pode ser atestada (Oulipo, 1973).2

Por lipograma, compreende-se uma modalidade de escrita constrangida marcada pela deliberada omissão de unidades lexicais que possuam registro em uma determinada letra. Desse modo, essa manifestação estilística também se associa a outras conformações assinaladas por uma diretriz constritora, a exemplo do palíndromo, do acróstico, do centão, do anagrama e do caligrama, que também se inserem em uma longeva tradição (Santos Júnior, 2019).

Indubitavelmente, Perec é um grande estudioso da elaboração lipogramática, que era por ele também explorada em sua escrita. Nesses termos, o oulipiano francês se notabilizou pela realização do lipograma La Disparition, em que, ao longo de todo o romance, é evitado o emprego da letra ‘e’. Há pouco, essa obra foi traduzida para o português com o título O Sumiço por Zéfere (2015), persona poética de José Roberto Andrade Féres, que também não empregou, em sua proposta tradutória, o referido grafema.

É notável que a escrita constrangida foi alvo de grande interesse por parte do Concretismo, situado no século XX, em que se buscou tensionar o arcabouço literário por via, até mesmo, de princípios matemáticos de ordem técnica. Conquanto inegável a repercussão dos concretistas, é preciso sinalizar que esses construtos poéticos já tinham sido explorados na Antiguidade, alcançando certa difusão na Idade Média, em que a constrição linguística estaria, muitas vezes, ligada a um prisma enigmático de cunho espiritualista, vinculado à perspectiva teocêntrica cristã da época, algo que é observável em nosso autor, Fábio Plancíades Fulgêncio.

O lipogramista ora apresentado é uma figura ainda pouco conhecida no Brasil, pertencendo à Antiguidade Tardia, um período igualmente pouco examinado. Ressalte-se, todavia, que os pesquisadores da obra fulgenciana apontam uma significativa repercussão de seu legado, que exerceu influência nos Mitógrafos do Vaticano, em Dante Alighieri e em Giovanni Boccaccio. Este último haveria, inclusive, levado em conta as Mitologias na realização de sua Genealogia, consoante Marcos Martinho dos Santos (2016).

Nosso compositor teria vivido entre os séculos V e VI no norte da África, portanto após a derrocada do Império Romano do Ocidente, em razão das migrações de povos não latinos. Assim, Fulgêncio estaria ainda subordinado à dominação do povo vândalo, relatando, nos prólogos de suas obras, um cenário político conturbado. Note-se, todavia, que, segundo Gregory Hays (2003), as problemáticas relatadas podem dizer respeito a mero topos poético. Ademais, para o conhecimento desse autor, tendo em vista a escassez de dados efetivos, os estudiosos costumam se valer de citações de outros escritores, questões linguísticas, aspectos estilísticos e referências intratextuais, no que assumem certa importância a pesquisa e a tradução desenvolvidas por Martina Venuti (2009, 2018) do prólogo do Livro I das Mythologiae.

As Mitologias correspondem ao escrito de maior ressonância de Fulgêncio, sendo responsáveis pelo epíteto de Mitógrafo. Quanto a isso, é oportuno destacar que essa alcunha também é largamente utilizada para diferenciar nosso lipogramista de seu homônimo Fulgêncio de Ruspe, o Bispo. Ocorre que, entre esses dois autores, desenvolveu-se uma particular discussão filológica concernente à fortuna textual, na medida em que a tradição manuscrita e a impressa misturaram, em dados momentos, algumas obras desses escritores em um mesmo volume, como se elas fossem de um único compositor. Atualmente, entretanto, resta superada a hipótese unitarista, que considerava apenas a existência de um único Fulgêncio, prevalecendo a hipótese dualista, segundo a qual existiriam, em realidade, dois Fulgêncios, a serem diferenciados por fatores linguísticos e estilísticos (Santos Júnior, 2019).3

Individualizando, então, os escritos de nosso autor, a crítica hodierna costuma lhe atribuir a elaboração das Mythologiae, da Continentiae, da Sermonum e da De aetatibus. Note-se que as três primeiras obras já foram objeto de recentes traduções para o português brasileiro, realizadas, respectivamente, por José Amarante (2019), Raul Moreira (2018) e Shirlei Almeida (2018).4 Sendo assim, a única composição fulgenciana que ainda carecia de exercício tradutório no Brasil era a De aetatibus.

O lipograma do Mitógrafo foi escrito em uma costura consecutiva, estando subdividido em 14 seções marcadas por narrativas e constrições grafêmicas distintas. Nesse sentido, em cada parte da obra é omitida uma determinada letra, o que é realizado de ‘a’ a ‘o’, na sequência dos 14 elementos iniciais do alfabeto líbico-latino5 de Fulgêncio. O fato de não ter adotado todas as letras, combinado com uma passagem de seu prólogo que indicaria que ele pretenderia usar cada um desses grafemas, além do final abruto de sua última narrativa, são sugestivos de uma possível incompletude. Por outro lado, é também crível que o término em ‘o’ sirva para indicar a oposição entre o alfa e o ômega, associados, em uma diretiva teológica, ao início e fim dos tempos.

Nesse itinerário, Fulgêncio constrói suas narrativas com uma mutabilidade estilística singular, o que potencializa a própria dimensão poético-formal de seu escrito, que Hays (2019) associa à técnica conhecida como spoudaiogeloion.6 Assim, o desafio imposto se revela oscilante na De aetatibus, caso ponderadas as diferentes frequências das letras suprimidas. A omissão de vogais é, nesse âmbito, muito mais grave do que a limitação consonântica, de modo que cada Livro ostenta não apenas uma história em particular, mas também um estilo próprio. Dessa maneira, somente a título de exemplo, é apresentada, no Livro II, a narrativa da Arca de Noé sem a letra ‘b’; no Livro III, aborda-se a passagem bíblica da Torre de Babel sem a letra ‘c’; no Livro IV, é indicada a história de Isaque e Abraão sem a letra ‘d’; e no Livro XII, é discutida a vida de Jesus Cristo sem a letra ‘m’.7

Nosso projeto tradutório, por sua vez, está sendo desenvolvido com uma dupla finalidade, visando a empreender uma versão alipogramática e outra lipogramática da De aetatibus, ambas, até então, inéditas em nosso idioma. Tal intento resulta de uma busca por atender a interesses notadamente diversos, considerando a multiplicidade de articulações que podem ser engendradas a partir do escrito investigado, que pode ser de interesse tanto pelo público não especialista como por pesquisadores de estudos históricos, filosóficos, teológicos e literários.

Assim, é importante considerar que a constrição em voga acarreta, em dados instantes, certa nebulosidade linguística. Nesse vértice, o próprio Fulgêncio, objetivando escapar de determinados grafemas, recorreu a um conjunto de estratégias com largo uso de verdadeiros malabarismos retóricos, englobando o emprego de perífrases, antonomásias, metáforas, metonímias, arcaísmos, grecismos, supressões e uma inusual sintaxe, excessivamente truncada. Disso deriva uma escrita pouco palatável e que impõe a seu leitor uma sensível dificuldade quanto ao empreendimento interpretativo.

Para aquele que busca uma mais célere apreensão do cerne semântico da obra de partida, é possível que uma tradução lipogramática de uma composição que já seja assinalada por tal restrição não se afigure como uma proposta muito interessante. Por óbvio, é até mesmo possível que a aludida obscuridade possa ser intensificada com uma tradução similarmente constritora. Por outro ângulo, merece ser igualmente sopesada a relevância do testemunho artístico consubstanciado na forma da De aetatibus, de modo que pode ser proveitosa, a depender dos fins do leitor, uma tradução que valorize a restrição seguida pelo Mitógrafo.

Assim, tendo em vista diferentes critérios e objetivos, nosso itinerário tradutório difere daquele adotado pelos tradutores estrangeiros, que apenas empreenderam versões alipogramáticas, uma para o inglês, feita por Leslie Whitbread (1971) e outra para o italiano, realizada por Massimo Manca (2003). Desse modo, ao término de nossa perquirição, o leitor será convidado a confrontar nossas duas propostas, uma mais livre de amarras restritivas e que permita uma mais rápida assimilação do conteúdo temático atinente ao texto latino, além de outra, lipogramática, que ressalte suas marcas estilísticas constritoras.

Saliente-se, por fim, que a seção ora traduzida diz respeito a duas passagens bíblicas relativas à personagem Jacó. A primeira está relacionada a seu irmão Esaú, que acabou perdendo a benção concernente aos direitos da primogenitura, após seu pai Isaque, que já não via bem, ser enganado por Jacó. A segunda, por sua vez, versa sobre as também irmãs Lia e Raquel que, casadas com Jacó, passaram a disputar por uma maior prole.

Texto de partida latino (Abest E)

Nunc nostris in manibus mundi ordo quintus obuoluitur, cui humana uita similis coaptatur. Hoc igitur cursu iustorum hominum instituta monstrabimus, ubi primi duo unita partus fusura probati, minor maioris subplantator crura subducit, ut aut primus in lucis iubar prosiliat aut fratris uiuificos partus in auersum tardando concludat. Quid ultra? Monstrat nondum homo sui cordis inuidiam; nam cui adhuc uita non fuit, liuoris toxicum non natus adsumsit. Numquidnam diuina iustitia in matris uulua prior formatur inuidia quam figura? Aut quo liuor in loco habitaculum accipit, ubi adhuc anima non fuit? Nascitur paruus qui nasci uoluit primus; optauit primordia si possit uinci natura. O admirandum auctoris ac sacratum iudicium: oditur maior qui nihil incurrit, amatur minor qui adhuc in uulua positus concipit. Nullus nascitur, unus diligitur. Nulla fuit minoris iustitia, nulla maioris constitit culpa, cur diuinitatis dispar sit gratia. An quia dicit apostolus: O homo, numquid tu dabis iudicium domino? Igitur paruum fuit quod adhuc uulua inclusus odium monstrat, nisi ut [p. 145 Helm] primatum fratris inuidus rapiat. Fatigato rubidam cocturam dum in muscipulum parat, commutat prandium cum primatu subtilis ac lassatos in agro cursus non doluit fratris. Paruum hoc fuit nisi ut alias amplius moliatur insidias. Oblato subtili prandio matris armatur consilio, fallit tactum orbati, pilosi furans machinam corii subripit patri, donum abstulit callidus primitiui. Sanctificatur in fructibus, consancitur suis fratribus primus, confirmatur inimicis omnibus dominus. Quam igitur culpam innoxius habuit, qui nihil malignum suspicans patris prandium campo uagabundus inquirit? Numquidnam oportuit matris astutia, fratris captura innocua circumscribi simplicitas? Nam ut agnosco non fratri inuidit, non patri subripit, non prandium postulanti distraxit, non inordinatos primatus optauit. Additur quia dum armatus fratri iam coniugato occurrit, scandalum aliquod non arripuit, osculum primus pacificum obtulit, iniurias oblitus omisit, illum cum coniugibus ac filiis traicit. Quam in his omnibus diuinitati culpam incurrit? Aut cur non tam munificus placuit? Sit igitur sui consilii sacra illa diuinitas conscia, quam humana non possit conspicari natura. Vidit igitur in spiritu dominus quod humanus numquam inspicit oculus. Quid dicam Liam sororis inuidam ac pulchrioris thoro subpositam lippam, dum maior minoris inuadit sponsum, noctis opitulato suffragio sororium fallax corripit thorum, ac sic matutino sponsus conprobato muscipulo duplato matrimonium conparat famulatio. Paruum hoc fuit nisi quod mandragorio malo nocturnum liuida nundinatur concubitum. [p. 146 Helm] Aut quid pluribus: duarum coniugum litigantium scandalo duplas matronarum rixa porrigit concubinas, quarum partus cum naturalibus filiis socius adoptatur. Quanto liuoris toxico humana constringitur captiua natura; ut soror sorori dum parat inuidiam, ancillam sibi sociam maluit quam matronam. Quomodo igitur hic mundi ordo hominis similitudo sit, conquiramus. Numquidnam non propria in his ordinibus mundi imago monstratur, dum in Lia matronalis inuidia, dum in pulchra casualis fortuna, dum in Iacob liuor fratrum, dum in maiori quoddam fortuitum; in Iob passionum indicia ac futura corona, in Iacob communis hominum uita, dum concubinarum amori non parcitur, dum uxoris uoluptatibus famulatur. Nota igitur quod in mundo unus pulchro sortitur coniugio, alius horridiori damnatur consortio; illic filiorum gratia diuino tribuitur aliquando solatio. Subito iustum malis damnatum conspicimus, subito impium bonis [diuitiis] ampliatum notamus; aliquando infimior in altum porrigitur, aliquando sublimis post tumidas pompas prostratus ab omnibus conculcatur. Sit solo domino laus, incommutabili bono; nam humanitas non nouit unito sortiri proposito.

Texto de chegada em português (Ausente E)

Agora o quinto curso do mundo avança nas nossas mãos, ao qual anda associada, análoga, a vida humana. Portanto, nisto, vamos mostrar os institutos dos humanos justos, quando dois irmãos com vínculo primordial foram postos à prova por uma soldatura unida num parto. O mais novo traidor alça as patas do maior buscando ou vir logo ao brilho da luz ou atrasar o vívido parto do irmão, findo num aborto.8

Algo mais? Mostra, não ainda criatura humana, a ambição do coração. Na prática, ainda não surgiu vida, contudo ainda não nato, tomou para si a malícia da invídia. Quiçá por justiça divina, o íntimo da matriarca forma com favoritismo a ambição no lugar da figura humana?9 Qual posto a cobiça toma por morada, quando ainda não surgiu a alma? Brota parvo o humano cobiçoso para logo surgir no mundo. Buscou o status10 como inicial, procurando domar o cosmos.

Ó magnífico, ainda por cima sacro, juízo do Criador! O maior, o qual nada tramou, fica odiado, mas fica amado o mais novo, o qual, ainda disposto no íntimo da matriarca, forja a invídia. Um não brota, ficando só o outro amado. A justiça do mais novo foi nula, a culpa do maior foi nula, para justificar a graça do Altíssimo, a qual figuraria díspar. Por isso, o apóstolo diz: “ó criatura humana, por acaso tu darás juízo ao Altíssimo?”.11

Portanto, foi parvo o ódio mostrado ainda confinado no íntimo da matriarca, afora o cobiçoso roubo do status do irmão como inicial. Quando cozinha ao cansado irmão uma comida rosada como armadilha, o ambicioso troca, sutil, o prato do maior por um status, não lastimando as corridas cansativas do irmão no campo.12

Isso foi pouco comparado às insídias as quais, no futuro, o mobilizariam. Dado um prato apurado, o cobiçoso, armado com a opinião da matriarca, ludibria o tato do invisual, com a simulação possibilitada por uma lã hirsuta, conquistando, com astúcia, o dom do status como inicial.13 Santificado nos frutos, fica consagrado o inaugural dos irmãos, acabando confirmado como patrono dos inimigos.

Portanto, qual culpa possuiu o abnóxio humano, o qual, nada supondo maligno, procura por comida para o pai, vagando no campo? Quiçá foi oportuna a astúcia da matriarca, a abnóxia parcimônia ficar iludida como corolário da ganância do irmão?

Na prática, admito tal humano não possuir invídia do irmão, não ludibriar o pai, não viciar a comida do solicitador, não buscar o status como inicial tumultuoso. Outrossim, quando armado, achou o irmão já casado, não produziu alvoroço, a princípio, praticou o ósculo pacífico, abandonou, olvidado, as injúrias, o conduzindo tanto com as donas como com filhos.14 Nisso tudo, qual culpa possuía aos olhos do Altíssimo? Por qual razão não agradou, malgrado tão munífico? Portanto, o sacro Altíssimo vá notificado do instituto, conquanto15 a substância humana não possa notar. Portanto, o Altíssimo fita na sua alma uma coisa a qual o olho humano nunca nota.

Já quanto à carrancuda Lia? Cobiçosa da irmã, a substituiu na cama da mais formosa, quando a maior usurpa o marido da mais nova. Com o auxílio da vigília noturna, usurpa, falaciosa, a cama da irmã. Assim, na manhã, confirmada a dupla armadilha do compromisso, a submissão contrai o matrimônio.16 Isso foi pouco, afora a cobiçosa viciar a luxúria noturna na troca por frutos das mandrágoras.

Quanto aos outros? Por causa do alvoroço das duas matriarcas rivais, a rixa das matronas adiciona duas concubinas, cuja filiação conjugal toca aos filhos como naturais. Por quanta malícia cobiçosa a substância humana vira cativa! Quando uma irmã, nutrindo invídia da outra irmã, mais quis como sócia uma criada, no lugar duma matrona.

Inquiramos, portanto, como tal curso do mundo importaria análogo à criatura humana. Quiçá tal curso do mundo não traja uma pintura análoga, quando há insídia matronal quanto a Lia, quando fortuna casual na formosa, quando cobiça dos irmãos quanto a Jacó, quando um fortuito no filho maior? Quanto a Jó, os indícios da angústia junto à futura coroa, quanto a Jacó, a vida comum das criaturas humanas, quando não poupa o amor das concubinas, quando fica cativo com as volúpias da matrona.

Nota, portanto, isto: no mundo, um ganha como fado um formoso matrimônio, outro fica obrigado a uma união pavorosa. Nisso, logo, o consolo divino atribui a graça dos filhos. Visualizamos um justo súbito ficar obrigado ao infortúnio, como notamos um ímpio ficar súbito riquíssimo. Logo, um indigno fica alçado ao alto, logo, o distinto caído após muitas pompas fica pisado por todos.17 Só o Altíssimo ficará louvado como organismo imortal, pois a raça humana não assimilou o fado quanto a um plano unitário.

Referências

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Notas

1 A De aetatibus mundi et hominis é muitas vezes referenciada abreviadamente como De aetatibus. As outras obras fulgencianas também apresentam formas abreviadas: Mythologiae para Mythologiarum libri tres; Continentiae para Expositio Virgilianae Continentiae; e Sermonum para Expositio SermonumAnriquorum.
2 Para um estudo mais direcionado para a tradição de escrita constrangida, é oportuna a leitura, em língua portuguesa, do meu artigo (Santos Júnior, 2019) intitulado Rastros da Tradição Literária Experimental e do artigo Elementos da Tradição Palindrômica Antiga, realizado por mim em coautoria com José Amarante (2019).
3 Para um estudo mais detalhado, em língua portuguesa, dessa problemática filológica, é oportuna a leitura de meu artigo intitulado O problema da transmissão textual entre os dois Fulgêncios.
4 A produção fulgenciana também já foi objeto de traduções para línguas estrangeiras. Desse modo, as Mythologiae apresentam uma versão para o inglês, efetuada por Leslie Whitbread (1971) e outra para o francês, empreendida por Étienne Wolf e Philippe Dain (2013), além de traduções parciais em italiano de seu prólogo por Martina Venuti (2009 e 2018), de algumas passagens por Ferruccio Bertini (1974) e de excertos poéticos por Silvia Mattiacci (2002). A Continentiae possui traduções para o inglês, feitas por Whitbread (1971) e Zanlucchi (vd. Agozzino, 1972), para o italiano, realizada por Fábio Rosa (1997), para o francês, empreendida por Étienne Wolff (2009), e para o espanhol, feita por Valero Moreno (2005). A Sermonum já foi traduzida para o inglês por Whitbread (1971) e para o italiano por Ubaldo Pizzani (1968). A De aetatibus, por fim, só conta com uma tradução para o inglês de Whitbread (1971) e outra para o italiano de Massimo Manca (2003).
5 Conforme Whitbread (1971) e Manca (2003), o alfabeto empregado por Fulgêncio possui 23 letras, sendo similar ao nosso atual português, com a supressão da letra ‘w’ e das ramistas ‘j’ e ‘v’.
6 Técnica compositiva que mescla registros poéticos variados, conjugando elementos sérios com triviais. Esse recurso já encontra registro nas Rãs de Aristófanes, ostentando uma antiguidade notável.
7 Estão disponíveis as traduções lipogramáticas dos Livros II, III, IV e XII, empreendidas por mim (2019 e 2020).
8 Vide Gênesis 25: 24-26. O vocábulo ‘aborto’ faz referência à conjectura de Schanz (apud Manca, 2003), no que diz respeito à forma ‘aborsum’, atestada no códice Bruxellensis, como alternativa à lição ‘auersum’, que, conquanto acolhida por Helm, é lipogramaticamente inaceitável.
9 Hays (apud Manca, 2003) aponta que a discussão fulgenciana acerca da alma no feto pode derivar de uma interferência tertuliana, notadamente da obra De anima.
10 Uma das estratégias lipogramáticas de Fulgêncio é a adoção de grecismos. Em nosso caso, pareceu oportuno o emprego de um latinismo largamente utilizado na atualidade.
11 Vide Coríntios 2:16, Romanos 11:34.
12 Vide Gênesis 25:29-34.
13 Vide Gênesis 27.
14 Vide Gênesis 33.
15 A fim de marcar menos o texto com termos em relativo desuso no registro oral, optou-se por uma alternância desses elementos.
16 Vide Gênesis 29.
17 Vide Lucas 1:52.
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