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A GEOGRAFIA DE ESTRABÃO E A DESCRIÇÃO DO NORTE DA ÁFRICA NO IMPÉRIO ROMANO

STRABO’S GEOGRAPHY AND THE DESCRIPTION OF NORTHERN AFRICA IN THE ROMAN EMPIRE

Alaide Matias Ribeiro
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Marcia Severina Vasques
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

A GEOGRAFIA DE ESTRABÃO E A DESCRIÇÃO DO NORTE DA ÁFRICA NO IMPÉRIO ROMANO

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 2, pp. 1-21, 2021

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 19 Noviembre 2020

Aprobación: 31 Marzo 2021

Resumo: A Geografia de Estrabão apresenta uma sistematização do mundo habitado no início do primeiro século do império romano. O livro XVII compreende a descrição dos territórios do Egito, Etiópia e Líbia e é aqui analisado com o objetivo de explicitar como o geógrafo amasiano caracterizou as regiões norte-africanas e seus respectivos povos. Argumenta-se que, na construção discursiva desses, Estrabão explicita uma dicotomia do tipo bárbaro versus civilizado, por meio da qual estabelece não só a distinção entre dois grupos, mas operacionaliza dentro desta uma diferenciação gradativa. Consideramos que esta gradação ocorre em razão de sua localização geográfica, a qual, para o autor, era um dos importantes fatores a determinar o modo de vida dos mesmos.

Palavras-chave: Estrabão, Geografia, Egito, Líbia, Etiópia, África.

Abstract: Strabo’s Geography presents a systematization of the inhabited world at the beginning of the first century of the Roman Empire. The book XVII comprehends the description of the territories of Egypt, Ethiopia and Libya and it is here analyzed with the purpose of displaying how the Amasian geographer characterizes the North African regions and their respective peoples. It is argued that in this discursive construction, Strabo makes explicit a dichotomy such as barbarian versus civilized, through which he establishes not only the distinction between the two groups but operationalizes from within a gradual differentiation. We consider that such a gradation occurs because of their geographical localization which, to the author, was an important factor that determines their way of life.

Keywords: Strabo, Geography, Egypt, Libya, Ethiopia, Africa.

A Geografia é uma obra atribuída a Estrabão (64 a.C.-24 d.C.),1 historiador, geógrafo e filósofo2 descendente de uma família aristocrática da cidade de Amásia, no Ponto Euxino, Ásia Menor. Propõe-se que a obra teria sido produzida entre os anos 18 e 24 da era comum (Dueck, 1999, p. 475), organizada em dezessete livros, sendo recomendada ao uso tanto de um público médio como ao homem culto e político, em sequência aos Comentários históricos, obra elaborada em quarenta e sete livros.3 Os dois primeiros livros da Geografia constituem os prolegômenos da obra e se dedicam à defesa de Homero, o poeta, como o primeiro geógrafo e fundador da geografia empírica (Estrabão, Geografia, I.1.2), à discussão das premissas dos geógrafos predecessores4 e, consequentemente, dos temas que Estrabão considera pertinentes à matéria. Os demais livros contêm uma descrição etnogeográfica dos territórios do mundo habitado nas primícias do império romano, conformando-se, cada um em particular, em uma corografia.5

A Geografia foi tratada como uma fonte histórica por estudiosos do mundo antigo desde o século XIX, sendo vista como um discurso em que é possível identificar um processo de romanização6 perpetrado pelo império romano ao longo dos territórios em contato com o Mar Mediterrâneo. Estrabão chegou a ser percebido como um agente a serviço do império e, em especial, da divulgação da imagem de Augusto.7 Todavia, entendemos que essa abordagem parece estreitar as possibilidades de significação da obra e da atuação do seu produtor, considerando-se os três espaços de circulação do mesmo: Grécia, Roma e Ponto (Clarke, 1999, p. 228-44). Dessa forma, consideramos pertinente a leitura da fonte tanto no contexto do imperialismo romano, compreendendo-o como um processo dinâmico (Mattingly, 2011, p. 6), como na tradição helenística de produção de geografia.

O livro XVII incorpora em três capítulos a descrição dos territórios que constituíam o norte do continente africano na Antiguidade. O primeiro descreve o Egito, sendo seguido pelo breve comentário sobre o Egito e Etiópia,8 e o terceiro, por fim, contempla a descrição da Líbia.9 Em uma primeira leitura, essa divisão parece indicar a existência de três áreas geográficas que integrariam a terceira parte do mundo habitado (οἰκουμένη),10 cada uma compreendendo povos com características singulares e distintas. Nosso objetivo é apresentar como o geógrafo amasiano construiu discursivamente esses territórios e seus respectivos povos, utilizando, para isso, a ideia de que as constituições do território e do comportamento humano estão diretamente relacionadas à influência do meio ambiente.

Percebemos que o discurso de Estrabão faz coro à enunciação de uma dicotomia do tipo bárbaro versus civilizado. Todavia, apesar desta e da relação estabelecida entre o determinismo geográfico e a influência das zonas climáticas, é importante ressaltar que o geógrafo apresenta um quadro singular ao operacionalizar uma gradação dos povos considerados bárbaros. Essa ideia de decrescimento do nível de civilização foi identificada por Patrick Thollard (1987) e Edward Van der Vliet (1984), tendo este último destacado, em sua leitura, a apreciação de Estrabão sobre as diferenças entre os povos bárbaros (Clarke, 1999, p. 215). Destarte, nossa reflexão será voltada para a discussão do sujeito no seu próprio tempo e sua geografia helenística. Em seguida, abordaremos a relação entre território e determinismo geográfico, que nos permitirá visualizar o discurso de Estrabão na perspectiva de explicitação da enunciação dos territórios e da caracterização e classificação dos povos.

Um sujeito do seu próprio tempo

Estrabão11 tem como cidade natal Amásia, localizada no Ponto Euxino, no vale do rio Íris, uma região que pouco antes do seu nascimento havia se tornado uma província de Roma.12 Segundo o geógrafo, à época da conquista do general Pompeu, o Grande, sobre o rei Mitrídates VI Eupator em 66 a.C., ao fim das Guerras Mitridáticas (97-66 a.C.), membros da sua família por parte materna entraram em divergência com o rei do Ponto. No entanto, para além das prováveis atuações de seus parentes13 frente a um contexto de tensão política e social, destacamos dois elementos essenciais para compreender de que lugar esse sujeito enuncia. Esses itens são o pertencimento a um grupo de status social elevado e a uma zona asiática na extremidade oriental do Mediterrâneo, um espaço fronteiriço, híbrido, grego e bárbaro, haja vista a influência persa, presente na região antes do período helenístico.

Dessa forma, consideramos que o geógrafo, de origem híbrida, tornara-se um grego, provavelmente em sua própria visão e na dos romanos, ao ser integrado na comunidade de língua e cultura grega,14 possível de ser verificada no próprio discurso proferido em grego. Era, em suma, um sujeito que transitava entre os mundos grego e romano, que teve acesso à elite romana (Clarke, 1999, p. 193) e recebera uma educação tradicionalmente helenística, na qual a filosofia, a retórica e a gramática cumpriram papel importante. Seus mestres, tal como o educando, eram gregos da Ásia Menor e adeptos do aristotelismo.15 Estrabão também empreendeu viagens pela Ásia Menor e em algumas regiões ao longo do Mediterrâneo ocidental e, apesar de não sabermos as datas específicas dessas viagens e detalhes acerca de sua estadia, García Ramón (1991, p. 11) propõe que o geógrafo esteve em Roma mais de uma vez: antes de 44, antes e depois de 31, e, por fim, depois do ano 14 da era comum. Perceber a mobilidade de Estrabão ao longo do Mediterrâneo, seja nos centros de formação ou em razão de outras iniciativas como expedições militares,16 faz com que pensemos nos modos pelos quais se deu a apreensão do mundo habitado e dos diversos sujeitos que são apresentados na Geografia.

Definir com precisão o período em que foi produzida a Geografia envolve as mesmas problemáticas sobre a vida do autor. Sobre essa peculiaridade, Daniela Dueck aponta para a indissociabilidade entre produto e produtor, sendo a análise da Geografia uma imersão no próprio autor e vice-versa, portanto, uma investigação da personagem-obra (Dueck, 2000, p. 1). Concordando com esta perspectiva, ressaltamos a possibilidade de inferir pela situação política, social e cultural do período entre a república e o império romano, os prováveis encaminhamentos da obra-autor. Partindo para um contexto mais específico, é válido mencionar que os intelectuais que transitavam nesse mundo em transformação se apropriaram de uma tradição de produção de conhecimento notadamente helenística.17 Discutindo esse momento, François Hartog assevera que:

O termo helenístico, no domínio da cultura, designa de início um momento de recapitulação, de triagem, de ordenação em fichas, de produção de um saber em segundo grau, que vai de par com o desenvolvimento dos instrumentos da crítica. Trazem-se livros que são copiados de novo. Os livros viajam e viaja-se nos livros. Para o homem de ciência, ver é ler, saber é corrigir (Hartog, 2004, p. 119).

Como homem de ciência, o geógrafo amasiano observou, leu e descreveu o mundo habitado. Estando munido tanto do conhecimento obtido pela observação direta como pelo acesso a obras de cunho histórico e geográfico, fez a crítica aos predecessores, oferecendo a seu público tanto as ideias defendidas pelos sujeitos engajados na produção de geografia, como sua própria opinião. O diálogo proposto na Geografia, principalmente nos dois primeiros livros, evidencia a preocupação de Estrabão em apresentar as questões que considera pertinentes sobre a geografia do mundo habitado, como orientar aqueles engajados na ciência da descrição da terra sobre como deveriam proceder.

Além de ser um relato de como o mundo físico era percebido, é preciso considerar a Geografia como um discurso que pode informar sobre o mundo cultural e político da época. Katherine Clarke argumenta que a preocupação de Estrabão estava, predominantemente, relacionada à descrição das cidades, legando pouca atenção aos povos que não viviam segundo o modelo urbano da πόλις (Clarke, 1999, p. 205). Todavia, a descrição dos povos nômades nos indica certa necessidade de informar e tornar visível os componentes do mundo habitado. Dessa forma, à descrição dos caracteres de uma geografia física é articulada a vida dos povos que habitam os territórios, configurando-se uma geografia humana que considera a relação natureza-homem (Van der Vliet, 2003, p. 257-8). Essa particularidade deve ser considerada, já que pesquisadores tendem a destacar o caráter apelativo da obra em relação aos romanos, identificando-a como um relato das terras (αἱ χώραι) e povos (τὰ ἔθνη) que eram de interesse do domínio romano (Clarke, 1999, p. 204), especialmente no campo econômico (Whittaker, 1994, p. 16).

Uma das ideias que parte dos objetivos propostos pelo geógrafo ao longo da obra é a seguinte:

διότι τῆς γεωγραφίας τὸ πλέον ἐστὶ πρὸς τὰς χρείας τὰς πολιτικάς. [...] βέλτιον γὰρ ἂν διαχειρίζοιεν ἕκαστα εἰδότες τὴν χώραν ὁπόση τις καὶ πῶς κειμένη τυγχάνει καὶ τίνας διαφορὰς ἴσχουσα τάς τ᾽ἐν τῷ περιέχοντι καὶ τὰς ἐν αὐτῇ.

Assim, a geografia está orientada para as necessidades políticas. [...] a melhor maneira de manejar cada território é sabendo qual sua extensão e a que distância está de outros lugares e que características diferentes possui em seu clima como em si mesma. (Estrabão, Geografia, I.1.16)

A explicitação da utilidade e orientação política da ciência geográfica e, consequentemente, da Geografia nos remete a certo caráter de inventário, voltado para o saber a respeito de territórios conquistados ou a conquistar. Com essa percepção, que segue a ideia do pragmatismo da sociedade romana, especialmente no interesse particular em regiões interioranas, fronteiriças e nos territórios localizados nas extremidades do mundo habitado (Dueck, 2012, p. 18), é que se compreende a afirmação incisiva de Claude Nicolet de que a geografia romana “era factual e não alegórica. Era baseada na lei do território, demarcando de forma precisa as fronteiras, indicando direções e distâncias” (Nicolet, 1991, p. 57).

De fato, não devemos excluir da interpretação sobre esse momento histórico a preocupação administrativa dos territórios, especialmente, no principado de Augusto, quando ainda havia a necessidade de guarnecer as províncias imperiais e senatoriais (Rowe, 2011, p. 115) dos possíveis ataques dos inimigos do império ou da autocracia exacerbada de governadores locais. No entanto, consideramos importante articular a essa discussão perspectivas de pesquisadoras como Helen Peck, a qual, analisando o discurso de Estrabão, argumenta que o geógrafo não deve ser visto apenas como um admirador da administração de Augusto, mas também como um crítico do sistema imperial (Peck, 2017, p. 8). Já Mary Beard, discutindo a partir do relato geográfico sobre a viabilidade de anexação da Britânia pelos romanos, argumenta que o discurso de Estrabão evidencia um comportamento cauteloso da cultura imperial romana (Beard, 2017, p. 474), que vai de encontro à ideia de um expansionismo romano desenfreado.

Essas interpretações sobre o discurso geográfico indicam a necessidade de uma reflexão ampliada da Geografia, em que sejam observadas as especificidades e pistas lançadas pela obra-autor sobre o seu próprio tempo. No caso da África do Norte, sabe-se que durante a Antiguidade ela foi habitada por povos denominados líbico-berberes e saarianos, dos quais fazem parte os mouros, númidas, gétulos, farúsios, nigritas, garamantes e etíopes (Desanges, 2010, p. 459). Após a derrota de Cartago em 146 a.C., a África é organizada em províncias controladas pelos romanos e reinos locais e, a partir de 40 d.C., todo o norte da África será administrado por Roma, pois não existirão mais reinos autóctones (Mahjoubi, 2010, p. 501). Partindo destas informações, é preciso considerar a singularidade do contexto predominantemente romano dos territórios do Egito, Etiópia e Líbia e, assim, traçar paralelos com a descrição geográfica do amasiano, considerando que seu período de experiência no mundo e escritura se deu antes do ano 40.

Com relação às teses geográficas na Antiguidade, Katherine Clarke aponta que a teoria das zonas climáticas das linhas formadas pelo Equador e as linhas latitudinais que lhe são paralelas deriva da tradição geográfica helenística, sendo Posidônio quem insere o critério de caracterização étnica nesse sistema de divisão do mundo (Clarke, 1999, p. 208). A autora argumenta que essa teoria teria sido pouco utilizada na Geografia – no entanto, entendemos que tal concepção foi de grande relevância no processo de constituição discursiva de Estrabão, tanto dos territórios como dos povos que os habitam. Também é preciso considerar o próprio valor que determinados meios parecem implicar no espaço geográfico e que faz com que sejam inscritos na descrição do mundo.

De acordo com o geógrafo, a zona tropical (τῷ τροπικῷ) é caracterizada por ser

αὐτή τε γάρ ἐστιν δίαμμος καὶ σιλφιοφόρος καὶ ξηρά, τῶν νοτιωτέρωνμερῶν εὐύδρων τε καὶ εὐκάρπων ὄντων.

uma região arenosa, produtora de sílfio e seca, enquanto as mais meridionais estão bem regadas e férteis. (Estrabão, Geografia, II.5.37)

Por outro lado, as zonas frias são desabitadas e, portanto, não merecem atenção do geógrafo. Devido à preocupação com o fator humano, consideramos que o espaço geográfico descrito por Estrabão é compreendido na dimensão de território, uma região delimitada e caracterizada por ser habitada por um povo com determinados costumes e práticas culturais. O território também pode ser definido como um espaço físico e tangível que tem relação com o poder de domínio e controle de um determinado sujeito ou instituição. E, partindo dessas noções, consideramos possível pensar nesse macrocontexto a instituição dominante como o império romano e o sujeito de controle, Augusto.18

No microcontexto do discurso de Estrabão, o geógrafo produz uma imagem geral sobre os territórios que é, posteriormente, detalhada. Dessa forma, seguindo o esquema narrativo do livro XVII,19 percebemos como um Egito, uma Etiópia e uma Líbia vão sendo construídos e articulados ao projeto geral de descrição do mundo habitado. De acordo com Estrabão, a ordenação dos espaços provinciais organizada por Augusto seguia uma divisão que é definida segundo a necessidade de uma administração territorial mais incisiva do princeps. O que corrobora a ideia de que o raciocínio territorial dos romanos estaria relacionado ao controle e manutenção de Roma nesses espaços, expressando, assim, uma dimensão geográfica do poder (Whittaker, 1994, p. 16). Avaliemos, por exemplo, a seguinte passagem:

ταύτης δὲ τῆς συμπάσης χώρας τῆς ὑπὸ Ῥωμαίοις ἣ μὲν βασιλεύεται, ἣν δ᾽ἔχουσιν αὐτοὶ καλέσαντες ἐπαρχίαν, καὶ πέμπουσιν ἡγεμόνας καὶ φορολόγους. εἰσὶ δέ τινες καὶ ἐλεύθεραι πόλεις, αἱ μὲν ἐξ ἀρχῆς κατὰ φιλίαν προσελθοῦσαι, τὰς δ᾽ ἠλευθέρωσαν αὐτοὶ κατὰ τιμήν. εἰσὶ δὲ καὶ δυνάσται τινὲς καὶ φύλαρχοι καὶ ἱερεῖς ὑπ᾽ αὐτοῖς. οὗτοι μὲν δὴ ζῶσι κατά τινας πατρίους νόμους.

Do conjunto do território sujeito aos romanos, uma parte é governada por reis enquanto eles [romanos] possuem o resto sob o nome de províncias para onde enviam governadores e coletores de tributos. Existem também algumas cidades livres, aquelas que nutriram desde o início relações de amizade com os romanos, e estes últimos lhe fizeram homenagem. Existem também certas dinastias, filarquias ou grandes sacerdotes que lhes são sujeitos, mas que vivem de acordo com seus costumes ancestrais. (Estrabão, Geografia, XVII.3.24)

O principal elemento a destacar no excerto é que, apesar de esse poder de domínio territorial romano se apresentar consolidado em determinados territórios controlados pelo império, é perceptível que esse mesmo poder era flutuante nas extremidades do mundo habitado, o que gerava a necessidade de vigilância dessas zonas fronteiriças ao desconhecido. Além disso, é possível verificar certa dinamicidade no lidar com o outro a partir da referência às relações de amizade, apesar do discurso não apresentar explicitamente os termos em que essa amicitia se dava. É explícito que, apesar da administração romana nesses territórios, a sua presença não significava diretamente uma subjugação cultural de práticas e costumes discrepantes em relação aos de Roma. Dessa forma, deve-se levar em consideração que, apesar de territorialmente organizado entre as províncias do povo (senatoriais) e as imperiais, esse império compreendia diversas culturas, uma multiplicidade de gentes e identidades.

François Hartog identificou uma dicotomia das identidades na Antiguidade grega clássica, a qual é definida pelo elemento grego em contraposição ao não grego, o bárbaro20 (Hartog, 2014, p. 229). Apesar de generalista, essa polarização pode ser identificada no discurso de Estrabão, o que indica que uma tal concepção de mundo circulou no período helenístico e permaneceu na época romana. No entanto, além dessa dicotomia, é possível identificar mais duas que são apresentadas ao longo da Geografia: civilizados versus não-civilizados, romanos versus não-romanos (Van der Vliet, 2003, p. 257). Assim, compreendemos que essas categorias são operacionalizadas pelo geógrafo tanto para compreender as diferenças existentes entre as gentes conjugadas neste império romano como para instituir uma forma de se lidar com essa diversidade, selecionando determinadas características em detrimento de outros aspectos desses povos.

Analisando a questão da classificação dos povos do mundo habitado e conhecido para os antigos romanos, percebe-se que o epíteto bárbaro, aplicado ao não-civilizado ou ao não-romano, dizia respeito a uma condição situacional inferior e não, especificamente, a uma natureza inferior. A condição inferior estaria diretamente relacionada ao meio ambiente em que os povos estavam inseridos e não, necessariamente, a uma inata natureza inferior dos sujeitos (Saavedra, 1999, p. 60 apud McCoskey, 2005, p. 60-1). É importante destacar que tal condição seria sanada por meio do cultivo da sociabilidade e do contato entre os povos (Isaac, 2006, p. 10-11). Dessa forma, compreende-se que, na mentalidade dos antigos, o isolamento social era considerado um perigo e uma provável causa da adjetivação de determinados grupos humanos como bárbaros.

A civilização, o viver em sociedade é, portanto, derivada da adaptação social e a sua inexistência é característica dos bárbaros. De acordo com Estrabão, o nomadismo ou o não estabelecimento dos povos em aglomerados urbanos (πόλεις) mais as influências externas das zonas climáticas estavam diretamente ligados ao barbarismo. Na visão do geógrafo, parece ser impossível viver de forma regrada se os grupos humanos não estão assentados numa cidade, se habitam uma zona tórrida, se não são governados por leis e não estão em contato com os demais povos. No entanto, o discurso do geógrafo, especialmente no último livro do tratado, adota a noção de níveis de barbárie e apresenta aspectos que aproximariam os povos bárbaros daqueles do lado invertido da imagem.

Seguindo a estrutura narrativa do primeiro capítulo do livro XVII, podemos organizar a descrição em três partes principais. A primeira trata dos aspectos gerais sobre o Egito como localização e sociedade; a segunda trata de Alexandria; já a terceira parte engloba a passagem de Estrabão nos nomos (νομός) do Egito, no seu percurso partindo do delta do Nilo. No capítulo dois, há uma exposição geral da qualidade de vida dos povos que habitam as extremidades do mundo habitado, articulada à descrição do modo de vida dos habitantes de Méroe, dos víveres existentes e de seus costumes. Neste capítulo são apresentados elementos da fauna e flora nativa tanto do Egito como da Etiópia, destacando-se a forma de produção de alimentos. O terceiro capítulo e última parte da Geografia contempla a apresentação da Líbia, em especial dos territórios situados na costa mediterrânea, com uma descrição que, seguindo o modelo de périplo, vai do ocidente em direção ao oriente.

Egito, Etiópia e Líbia

συλλήβδην δ᾽ εἰπεῖν, ἡ ποταμία μόνον ἐστὶν Αἴγυπτος ἡ ἑκατέρωθεν ἐσχάτη τοῦ Νείλου, σπάνιον εἴ που τριακοσίων σταδίων ἐπέχουσα συνεχῶς πλάτος τὸ οἰκήσιμον ἀρξαμένη ἀπὸ τῶν ὅρων τῆς Αἰθιοπίας μέχρι τῆς κορυφῆς τοῦ Δέλτα.

O Egito se resume à planície aluvial que se estende de uma parte e de outra do Nilo a partir das fronteiras da Etiópia até ao cume do Delta e não oferece uma superfície habitável contínua de mais de trezentos estádios de largura. (Estrabão, Geografia, XVII.1.4)

Em uma breve sentença Estrabão define topograficamente o que é o Egito, sua circunscrição e limites com os territórios vizinhos. O território egípcio é reduzido à planície aluvial, uma estreita zona habitável que margeia e subsiste do rio Nilo.21 Este se torna a principal característica que diferencia o Egito dos demais territórios do Norte da África. Reverberando o enunciado por Heródoto (Histórias, III, 5-10), o geógrafo discorre sobre o elemento hidrográfico como o meio que viabiliza a manutenção da fertilidade e da organização e modo de vida regrado dos egípcios. O Nilo é apresentado como constante, sendo tomado como referência quando se avança ao interior do território. A sua presença lega ao Egito uma variedade de víveres e produtos, e o leitor, ao longo das seções, é apresentado a uma multiplicidade de fauna e flora nilótica.22 Essa paisagem favorável ganha detalhes enquanto ele avança de Alexandria23 para o sul, em direção ao Alto Egito até a fronteira com a Etiópia.

O trajeto é feito seguindo o curso do Nilo, passando por nomos, cidades e vilas,24 e o que se destaca é um território que, quando recebe o status de província romana, manteve as suas antigas fronteiras. A mudança mais evidente estaria na administração provincial do império, distinta daquela observada nos períodos faraônico e ptolomaico, especialmente no que concerne à presença no território da figura de autoridade máxima. Como província imperial, um membro do grupo equestre fora designado para a sua administração geral. Diferentemente das províncias senatoriais, o Egito foi governado por prefeitos nomeados diretamente pelo princeps. Na época de Estrabão, o prefeito do Egito era Élio Galo, o segundo a assumir a tarefa. Estrabão, que afirma ter acompanhado aquele, define esses funcionários como homens racionais que governavam em substituição à figura do imperador, exercendo autoridade não só sobre os habitantes, mas também sobre os demais funcionários designados pelo próprio Augusto.25

Ao longo do relato, entendemos que tais funcionários eram de origem diversa da população egípcia nativa e que as elites locais, grupos que poderiam negociar com o poder romano no território, estão ausentes do discurso. Percebe-se que Estrabão decide operar uma generalização dos povos que habitam o vale do Nilo, indicando que os egípcios, tal como o seu território, podiam ser agrupados em seções. Neste caso, o geógrafo argumenta que a sociedade egípcia “nativa” seria dividida em três grupos: os soldados, os camponeses e os sacerdotes. É interessante pensar que essa divisão geral parece indicar uma forma de tornar inteligível o território de modo ordenado, sempre através da relação entre território e povo. Seguindo essa classificação genérica, Estrabão nos apresenta seu julgamento sobre o Egito e egípcios, indicando que:

καὶ γὰρ πολιτικῶς καὶ ἡμέρως ἐξ ἀρχῆς ζῶσι καὶ ἐν γνωρίμοις ἵδρυνται τόποις, ὥστε καὶ αἱ διατάξεις αὐτῶν μνημονεύονται· καὶ ἐπαινοῦνταί γε δοκοῦντες ἀξίως χρήσασθαι τῇ τῆς χώρας εὐδαιμονίᾳ, μερίσαντές τε εὖ καὶ ἐπιμεληθέντες.

[...] eles vivem desde as suas origens de modo regrado e civilizado, habitando uma região conhecida, tanto assim que mantemos a memória de suas instituições, que nós elogiamos além, porque eles dizem que tiraram um ótimo partido da qualidade de seu território graças a uma boa divisão e sua gestão. (Estrabão, , XVII.1.3)

O primeiro aspecto do excerto a considerar é a informação de que o Egito é uma região conhecida. Essa característica indica que o território egípcio, seja por sua localização geográfica nas margens do Mediterrâneo oriental ou pela sua historicidade enunciada já na poesia homérica, não se configurava como zona do desconhecido, privada da comunicação com outros povos. Em segundo lugar, o fato de que os egípcios viveram e continuam a viver “de modo regrado e civilizado”. É curioso que, apesar de não especificar a zona climática em que está posicionado o território egípcio, Estrabão enuncia o bom modo de viver da população, que deve a sua prosperidade à boa gestão do Nilo. No entanto, cabe mencionar que o geógrafo omite a descrição das características físicas dessa população, apresentando ao leitor apenas algumas generalizações sobre o grupo.

Exemplo disso é o comentário de que todos os egípcios cultuam em comum determinados animais: três animais terrestres, duas aves e dois peixes.26 Apesar dessa informação, que faz coro à tripartição apresentada anteriormente, ao longo da descrição dos nomos e suas cidades, o geógrafo nos apresenta cultos a animais específicos, que indicam uma diferenciação da população a ser contraposta à generalização inicial e o papel significativo da religião. Em acordo com a narrativa de Heródoto, marcada pela inversão dos costumes próprios aos gregos (Hartog, 2014, p. 229), o geógrafo afirma a veracidade do hábito egípcio de amassar a argila com as mãos, enquanto o preparo da massa do pão (κάκεις) seria feito com os pés. Por fim, Estrabão comenta e contesta a ideia de que os egípcios não seguiriam a prática da hospitalidade, expulsando os estrangeiros e, portanto, comportando-se como bárbaros. Na visão do geógrafo, os egípcios não estão inseridos dentro da categoria do desregrado, mas do regrado, do conhecido, do civilizado.

Siene é apresentada como a fronteira que separa o Egito da Etiópia. O território, apesar de compartilhar das benesses do Nilo, em razão da sua localização geográfica na extremidade do mundo habitado, não contribuiria para o desenvolvimento e manutenção do que o geógrafo considerou como um bom modo de vida, regrado e conhecido. Estrabão afirma que

καὶ μὴν οἵ γε Αἰθίοπες τὸ πλέον νομαδικῶς ζῶσι καὶ ἀπόρως διά τε τὴν λυπρότητα τῆς χώρας καὶ τὴν τῶν ἀέρων ἀσυμμετρίαν καὶ τὸν ἀφ᾽ ἡμῶν ἐκτοπισμόν.

[...] os etíopes, em geral, levam um modo de vida nômade, com poucos recursos em razão da pobreza do solo, do clima excessivo e do seu distanciamento de nós.27 (Estrabão, Geografia, XVII.1.3)

Nesta passagem, é explícita a ideia de que quanto mais afastados dos que viviam πολιτικῶς, que residiam em cidades e habitavam a zona temperada, mais árdua era a vida dos povos. Estrabão também argumenta que os habitantes da zona tórrida não seriam dispostos a atividades de guerra,28 o que reforça a ideia exposta no tratado hipocrático Ares, águas e lugares de que o meio ambiente influenciaria no caráter físico e moral da população (Frias, 2004, p. 63).29

Da mesma forma que o meio ambiente influenciaria os povos, os animais também estariam sujeitos aos seus efeitos. Ao falar sobre os animais domésticos dos etíopes,30 Estrabão anuncia que tanto o gado como os cães são de pequeno porte, o que vai de encontro com a fauna selvagem encontrada no mesmo território também descrito pelo geógrafo, compreendendo elefantes, leões, panteras e serpentes. Sobre os etíopes é dito que:

ζῶσί τ᾽ ἀπὸ κέγχρου καὶ κριθῆς, ἀφ᾽ ὧν καὶ ποτὸν ποιοῦσιν αὐτοῖς ἔστιν. ἔλαιον δὲ βούτυρον καὶ στέαρ. οὐδ᾽ ἀκρόδρυα ἔχουσι πλὴν φοινίκων ὀλίγων ἐν κήποις βασιλικοῖς. ἔνιοι δὲ καὶ πόαν σιτοῦνται καὶ κλῶνας ἁπαλοὺς καὶ λωτὸν καὶ καλάμου ῥίζαν. κρέασι δὲ χρῶνται καὶ αἵματι καὶ γάλακτι καὶ τυρῷ. σέβονται δ᾽ ὡς θεοὺς τοὺς βασιλέας κατακλείστους ὄντας καὶ οἰκουροὺς τὸ πλέον.

Eles vivem de milho e cevada, dos quais eles fazem também uma bebida, e, como óleo, eles têm manteiga e sebo. Eles não têm muitas árvores frutíferas, exceto algumas tamareiras nos jardins reais. Alguns se alimentam de ervas, brotos jovens e macios, lótus e raiz de cana. Eles comem carne, sangue, leite e queijo. Eles honram como deuses seus reis, que ficam a maior parte do tempo confinados em seus palácios. (Estrabão, Geografia, XVII.2.2)

Apesar da insistência na identificação dos etíopes como povos nômades, o excerto menciona a existência de espaços que agregavam pessoas. A cidade de Méroe é descrita como a residência real mais importante do território31 e seus habitantes são apresentados como nômades agricultores e caçadores que cultuavam tanto divindades bárbaras, não especificadas no discurso, como deuses conhecidos: Héracles, Pã e Ísis. É interessante destacar que o panteão de deuses selecionado pelo geógrafo indica, para além da prática do culto, a circularidade de divindades de origens diversas nas extremidades do mundo habitado e, portanto, fora do escopo central dos espaços abarcados pelo Mediterrâneo.32 Curiosamente, as divindades grega, romana e egípcia referem-se a três espaços distintos que compartilhavam, apesar de suas particularidades, um modo de vida regrado e sociável. Todavia, operacionalizando a generalização dos etíopes neste âmbito religioso, Estrabão enuncia que eles creem em dois deuses, um imortal e um mortal, honrando-os da mesma forma que aos seus reis e benfeitores.33

Em relação aos costumes funerários são apresentadas três formas de tratamento do morto. Este poderia ser lançado ao rio, ser conservado e mantido pela família dentro das residências ou ser inumado em um caixão de terracota ao redor dos templos. É importante ressaltar que, ao contrário do discurso sobre o Egito, em que se destacam os cultos e templos, Estrabão se abstém de comentar detalhadamente os monumentos etíopes, preferindo focar na descrição dos costumes. No entanto, é possível identificar no relato que existem tais monumentos e a omissão do geógrafo deixa ver sua concepção sobre o que é considerado pertinente e válido para ser mencionado na Geografia. Sobre a administração do território, Estrabão assevera que:

βασιλέας τε καθιστᾶσι τοὺς κάλλει διαφέροντας ἢ ἀρετῇ κτηνοτροφίας ἢ ἀνδρείᾳ ἢ πλούτῳ. [...] ἔστι δὲ καὶ τοῦτο ἔθος Αἰθιοπικόν. ὃς γὰρ ἂν τῶν βασιλέων πηρωθῇ μέρος τι τοῦ σώματος ὁπωσοῦν, τὸ αὐτὸ πάσχουσιν οἱ συνόντες αὐτῷ μάλιστα, οἱ δ᾽ αὐτοὶ καὶ συναποθνήσκουσιν. ἐκ δὲ τούτου φυλακὴ τοῦ βασιλέως ἐστὶ πλείστη παρ᾽ αὐτῶν.

Eles escolhem como reis os homens que se distinguem pela beleza, pela aptidão em batalha, pela coragem ou pela riqueza. [...] Ainda há outro costume etíope: caso um rei venha a ser mutilado de qualquer parte de seu corpo, sua corte mais próxima sofre a mesma mutilação, até morrendo com ele. É por isso que entre eles o rei é o objeto de máxima proteção. (Estrabão, Geografia, XVII.2.3)

Apresenta-se a figura do rei etíope, o qual é selecionado para o cargo a partir de uma série de critérios: beleza, aptidão guerreira, coragem e riqueza. Tais elementos necessários à função, articulados à ideia de que a corte exercia a proteção da figura real, demonstram a existência de um paradigma cultural de escolha do governante e um conjunto de regras de conduta dos etíopes ligados ao grupo real. Estrabão enuncia práticas que evidenciam um modo de vida regrado, apesar dos condicionantes ambientais a que esses sujeitos estariam expostos. E, mais uma vez, percebe-se que os etíopes empreendiam atividades de guerra, o que contradiz o comentário anterior sobre a sua indisposição para a prática. Acima de Méroe, Estrabão localiza um grande lago chamado Psebo, onde se encontra uma ilha povoada cuja administração é alternada entre os etíopes e os líbios. Dessa forma, é possível argumentar que, apesar do objetivo de descrição do mundo habitado sob o império romano, a “paisagem imperial” (McCoskey, 2005, p. 58) apresentada comporta áreas independentes da administração romana. Isso indica a dinâmica dos poderes locais sobre um território que, mesmo em contato com Roma, não estava sob o seu jugo.

Estrabão define a Líbia como tudo o que está à direita do rio Nilo quando se vai do Delta ao Alto Egito. O geógrafo apresenta um esboço geral do continente, conjecturando que, em tamanho, a região possui a forma de um triângulo retângulo e que poderia ser, em extensão, menor do que a Europa ou a Ásia. Estando a maior parte do seu território na zona tórrida e, portanto, havendo regiões desérticas e áridas nas partes mais distantes da costa mediterrânea, seus recursos são considerados inferiores em comparação aos víveres oriundos de solo fértil e clima ameno. Seus habitantes seriam nômades que ocupam o território de forma esparsa. No entanto, Estrabão também afirma que todo o litoral situado entre o Nilo e as Colunas de Héracles é habitado e próspero. Diante dessas duas apresentações sobre a Líbia, argumentamos que Estrabão empreende no discurso dois esquemas narrativos: inicialmente, aborda os aspectos gerais que formam uma ampla paisagem etnogeográfica; em seguida, dá-se ênfase às cidades nessa zona favorável.34

Observa-se o destaque a certos territórios, dentre estes

τὸ μέντοι τὴν Μαυρουσίαν εὐδαίμονα εἶναι χώραν πλὴν ὀλίγης ἐρήμου, καὶ ποταμοῖς τε καὶ λίμναις κεχορηγῆσθαι παρὰ πάντων ὁμολογεῖται. μεγαλόδενδρός τε καὶ πολύδενδρος ὑπερβαλλόντως ἐστὶ καὶ πάμφορος.

a Maurúsia que, excetuando uma pequena zona desértica, é um território fértil e que está bem provido de cursos d’água e lagos. É dotada de árvores extraordinariamente grandes e numerosas, produz de tudo” (Estrabão, Geografia, XVII.3.4).

Esse território localizado na extremidade ocidental da Líbia é caracterizado pela fertilidade do solo, proveniente de uma rede hidrográfica extensa que resultou na grandiosidade dos recursos naturais, da flora e da fauna. Mais uma vez, Estrabão recorre ao elemento hidrográfico como um dos principais elementos que constituirão, de forma geral, a boa qualidade do solo do território. O geógrafo também relata a abundância de animais selvagens como serpentes, elefantes, gazelas, antílopes, leões, panteras, ginetes, macacos, girafas e rinocerontes. Todavia, esse quadro se modifica a caminho do interior, onde as condições climáticas se acentuam e a fertilidade do território, agora configurado por desertos e montanhas, não contribui para o desenvolvimento da população, que é então caracterizada pelo nomadismo.

[...] ὅμως καὶ μέχρι δεῦρο τοῦ χρόνου νομαδικῶς ζῶντες οἱ πολλοί. καλλωπίζονται δ᾽ ὅμως κόμης ἐμπλοκῇ καὶ πώγωνι καὶ χρυσοφορίᾳ σμήξει τε ὀδόντων καὶ ὀνυχισμῷ. σπάνιόν τε ἂν ἴδοις ἁπτομένους ἀλλήλων ἐν τοῖς περιπάτοις τοῦ παραμένειν αὐτοῖς ἄθικτον τὸν κόσμον τῶν τριχῶν. μάχονται δ᾽ ἱππόται τὸ πλέον ἀπὸ ἄκοντος, σχοινοχαλίνοις χρώμενοι τοῖς ἵπποις καὶ γυμνοῖς· ἔχουσι δὲ καὶ μαχαίρας. οἱ δὲ πεζοὶ τὰς τῶν ἐλεφάντων δορὰς ὡς ἀσπίδας προβάλλονται· τὰς δὲ τῶν λεόντων καὶ παρδάλεων καὶ ἄρκτων ἀμπέχονται καὶ ἐγκοιμῶνται.

a maioria [dos maurusienses] ainda leva uma vida nômade, mesmo hoje em dia. Eles gostam de se adornar: trançam os cabelos, cortam suas barbas, portam objetos de ouro, limpam os dentes e cortam as unhas; e raramente os vemos entrar em contato uns com os outros quando eles caminham, para manter intacta a bela ordem de seus cabelos. Eles lutam montados em cavalos, principalmente, com o dardo, montam sem sela e utilizam rédeas feitas às pressas; eles também possuem facões. Quanto aos soldados a pé, eles se protegem com uma pele de elefante, utilizada à guisa de escudo; quanto às peles de leão, de panteras ou de ursos, eles as vestem e dormem sobre elas. (Estrabão, Geografia, XVII.3.7)

Além do fator temporal explícito nesta passagem que nos informa sobre a permanência do nomadismo, é digna de atenção a acuidade do geógrafo em identificar uma série de comportamentos que, em sua perspectiva, sendo próprios aos habitantes da Maurúsia, não passaram por transformação. Esses comportamentos dizem respeito a duas dimensões principais: o cuidado com o corpo e as atividades de combate. Ambas são permeadas pela descrição dos apetrechos, vestimentas e adornos, os quais, seja pela sua função ou pelo material de que são feitos, evidenciam tanto as práticas realizadas como o meio em que estas se davam. Por último, consideramos que essa caracterização, apesar de fazer referência a um grupo em específico, pode ser atribuída também a outros grupos, em especial aqueles distanciados da costa mediterrânea.

Na descrição da Líbia, o geógrafo tece uma narrativa articulando várias cidades que existiram antes do seu tempo e registrando episódios históricos relacionados às disputas políticas entre as populações nativas e os romanos. Essa estratégia discursiva empreendida por Estrabão, em que são apresentadas personalidades históricas conhecidas nos âmbitos políticos local e romano, aponta para a questão da disputa pelo território e para o fato de seu status ter sido transformado após a influência de Roma. Dessa forma, o geógrafo investe em descrições na perspectiva de apresentar ao leitor a diversificação da administração territorial da Líbia, pois a relação entre os locais e os romanos poderia se dar em termos de amizade (φιλία) ou de inimizade. Ao evocar o passado da região, ele argumenta que:

μικρὸν μὲν οὖν πρὸ ἡμῶν οἱ περὶ Βόγον βασιλεῖς καὶ Βόκχον κατεῖχον αὐτήν, φίλοι Ῥωμαίων ὄντες. ἐκλιπόντων δὲ τούτων, Ἰούβας παρέλαβε τὴν ἀρχήν, δόντος τοῦ Σεβαστοῦ Καίσαρος καὶ ταύτην αὐτῷ τὴν ἀρχὴν πρὸς τῇ πατρῴᾳ. υἱὸς δ᾽ ἦν Ἰούβα τοῦ πρὸς Καίσαρα τὸν θεὸν πολεμήσαντος μετὰ Σκιπίωνος. Ἰούβας μὲν οὖν νεωστὶ ἐτελεύτα τὸν βίον, διαδέδεκται δὲ τὴν ἀρχὴν υἱὸς Πτολεμαῖος γεγονὼς ἐξ Ἀντωνίου θυγατρὸς καὶ Κλεοπάτρας.

Pouco tempo antes de nós, os reis Bogos e Boccos possuíam essa terra, em toda a amizade com os romanos. Depois de suas mortes, Juba recebeu o poder, poder que lhe é dado por César Augusto além do que herdou de seu pai; ele era o filho de Juba que combateu com Cipião contra o deus César. Juba morreu recentemente e Ptolomeu, nascido de uma filha de Antônio e Cleópatra, é quem o sucede no poder. (Estrabão, Geografia, XVII.3.7)

Dessa forma, é possível afirmar que o geógrafo, apesar de manifestar certo poder de decisão nativo nas relações com o governo romano, reconhece este último como instância central e operacionalizadora na concessão ou tomada de territórios. Todavia, apesar da aparente influência de Roma no continente, a administração dos sujeitos nativos não está excluída do discurso. Dessa forma, encontramos na descrição a identificação dos territórios dos masésiles,35 dos gétulos,36 farúsios e nigritas37 que, ocupando o interior do território, compartilham um modo de vida simples, aproximando-se em semelhança aos nômades da Arábia, independentes do poder romano. Por fim, vale ressaltar que o discurso apresenta uma divisão entre a população nativa, por vezes denominada “bárbara”, e aqueles que, nascidos sob as benesses de uma área distante da zona tórrida, configuram-se “homens notáveis”, filósofos e governantes de destaque.

Conclusão

O processo de expansão dos romanos sobre o Mediterrâneo, que se inicia na República e se estende ao período dos princeps, propõe uma mudança na organização do mundo conhecido. Estrabão vive nesse momento e busca fazer inteligível essa nova configuração por meio da Geografia. Na obra em que a apresentação da oikouméne é concretizada discursivamente, percebe-se um ponto de vista que articula informações derivadas da experiência pessoal e de uma tradição helenística de produção de conhecimento geográfico. Existe uma intercalação entre o que o geógrafo testemunha – a administração imperial nas províncias e seus agentes, os indícios do contato entre os romanos e os povos nativos, as expedições militares – e a construção de paisagens particulares, segundo a atuação da população local, da administração romana e da localização geográfica dos territórios.

A descrição dos territórios egípcio, etíope e líbio, inscritos no modelo de organização territorial romana, contempla aspectos culturais e históricos, além de fatos geográficos. Independentemente de Estrabão utilizar em várias partes do discurso a dicotomia bárbaro versus civilizado, nota-se que as identidades dos povos locais, marcadas por seu modo de vida e costumes, são consideradas na inspeção. Podemos afirmar que o discurso é complexo nesse quesito porque há uma série de elementos que o geógrafo utiliza para caracterizar esses povos e seus territórios. Todavia, consideramos que a visão greco-romana de Estrabão sobre esses territórios, considerando o caráter histórico-geográfico do discurso, exprime um mundo organizado pelos romanos e habitado por grupos étnicos diversos que, a despeito de, por vezes, serem divididos entre bárbaros e civilizados, apresentam nuances a serem destacadas para o público leitor.

A abordagem presente na Geografia inclui elementos do determinismo geográfico e do critério da sociabilidade para atribuir o epíteto de bárbaros aos povos que estão mais afastados dos romanos, em termos de posição geográfica e práticas culturais. O barbarismo identificado no livro XVII não necessariamente se define pela ausência de normas, já que os egípcios, os etíopes e os territórios na Líbia possuem centros urbanos e leis. Nesse mundo, os povos e seus territórios, apesar do contato proporcionado pelo império romano, são compreendidos pelos seus condicionantes ambientais e classificados em uma escala de barbarismo. Percebe-se, então, que, na perspectiva de Estrabão, os egípcios e os povos fixados ao longo da margem mediterrânea da Líbia são menos bárbaros que aqueles que habitam os extremos da Líbia e Etiópia.

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Notas

1 Poucos são os dados referentes à biografia de Estrabão. Especialistas como Dueck (2000, p. 2) e Clarke (1999, p. 193) apresentam recortes temporais produzidos a partir dos indícios presentes no próprio discurso geográfico, o que resulta nas respectivas datações: 64/50 a.C.-24 d.C., 60 a.C.-20 d.C. Dessa forma, podemos afirmar que as hipóteses acerca de seu período de vida variam de acordo com a interpretação dos pesquisadores, sendo possível apenas a produção de uma imagem fragmentada do geógrafo. Sobre esse debate, cf. a discussão proposta por García Ramón (1991, p. 7-50) em Vida de Estrabón, na introdução geral da versão em língua espanhola da Geografia.
2 De acordo com Estrabão (Geografia, I.1.1), a geografia é uma disciplina própria da atividade do filósofo. É multifacetada e exige uma variedade de conhecimentos, sendo destinada a um tipo específico de homem. Em vista dessa proposição autoral, consideramos válido atribuir ao historiador e geógrafo, também, o título de filósofo.
3 Segundo García Ramón (1991, p. 51) há três referências aos Comentários históricos na Geografia de Estrabão, onze nas Antiguidades judaicas e uma no Contra Apião, ambas de Flávio Josefo, três em Plutarco e uma em Tertuliano, totalizando dezenove referências à obra que teria sido produzida em sequência à História de Políbio.
4 Os principais predecessores citados por Estrabão nos livros I e II da Geografia, além de Homero, são: Eratóstenes, Posidônio, Crates, Hiparco, Políbio, Aristarco, Zenão e Estratão.
5 Corografia é um termo que surgiu no período helenístico para designar a descrição detalhada de uma região ou território (χώρα). Daniela Dueck argumenta que “o termo corografia também pode ser utilizado para se referir à descrição de uma região em particular dentro de um contexto mais amplo de uma geografia universal, por exemplo, como no caso das investigações regionais em livros individuais na Geografia de Estrabão” (Dueck, 2012, p. 7).
6 Esse conceito moderno indica uma ação política deliberada de imposição da cultura romana sobre um determinado espaço, calcada em um presumido objetivo civilizatório dos romanos em relação aos povos considerados bárbaros – como as ações empreendidas pelos britânicos para com os colonizados ao longo do século XIX – e na adoção do “ser romano” pelas elites locais. Atualmente, historiadores como Mendes (2003, p. 305-7) e Silva (2019, p. 16) utilizam o conceito, mas destacam a importância de sua contextualização histórica, enfatizando como ele foi revisto pela historiografia. Já o termo integração vem sendo utilizado por pesquisadores do mundo romano como Guarinello (2010, p. 119-27) e, novamente, Silva (2019, p. 146) na discussão das formas de contato entre Roma e os povos ao longo do Mediterrâneo.
7 O principal exemplo do discurso divulgador da imagem de Augusto como um bom princeps é a sua própria obra: Res gestae divi Augusti. Para a discussão da Geografia de Estrabão como resposta ou reflexo da transformação do mundo sob o imperialismo romano, cf. Clarke, 1999, p. 193-228; Whittaker, 1994, p. 16; Dueck, 2000, p. 107-44 e Mendes, 2003, p. 308-10.
8 A Etiópia descrita no capítulo dois, na verdade, compreende o território da Núbia. Consideramos que os povos denominados pelo geógrafo como etíopes, que ocupam o território fronteiriço ao Egito, devem ser diferenciados dos etíopes ocidentais, mencionados por Estrabão no terceiro capítulo como um dos povos nômades que habitam as extremidades desérticas da Líbia (Estrabão, Geografia, I.2.21).
9 A divisão em capítulos e subdivisão em seções é apresentada tanto nas publicações mais antigas da obra (George Bell & Sons, 1903) como na mais atual, lançada em dois volumes pela editora Les Belles Lettres (2014, 2015). A versão em língua inglesa de 1903 e a grega de 1877 foram consultadas na Biblioteca Digital Perseus (http://www.perseus.tufts.edu/).
10 A tradução dos termos e do texto em grego são de nossa autoria. Sobre as obras de referência consultadas, cf. a nota de rodapé anterior.
11 Dueck (2000, p. 1) indica a existência de uma breve referência ao geógrafo na Suda, obra enciclopédica bizantina datada do século X. Ressalta-se que é nesta obra medieval que os Comentários históricos de Estrabão são apresentados como uma continuação da História de Políbio (Clarke, 1999, p. 194).
12 De acordo com Dueck (2000, p. 3), o Ponto foi inserido dentro da província romana da Bitínia e Ponto, mas era governada por nativos da região durante o governo de Antônio, voltando a ser uma província separada durante o principado de Augusto.
13 Em especial, a ideia de colaboração com os romanos (Dueck, 2000, p. 6), uma espécie de “romanofilia” da ancestralidade de Estrabão que, segundo algumas leituras da obra, pode ser identificada no discurso geográfico a partir da boa imagem que o geógrafo faz de Roma e dos modos romanos.
14 Falar de uma comunidade de língua e cultura grega de forma generalizada é problemático, pois essa constatação expressa uma ideia de sociedade grega unificada e não múltipla em seus dialetos, costumes e códigos. Todavia, quando falamos de uma tal comunidade, estamos nos referindo aos sujeitos que se expressam em grego e que, provavelmente, tiveram uma formação baseada nos princípios da Paideia, destacando-se, no caso de Estrabão, as áreas de gramática, retórica e filosofia (Dueck, 2000, p. 8-15). Podemos, ainda, construir a figura de Estrabão como herdeira da imagem de que dispomos do grego do período helenístico, ou seja, aquele que se beneficiou de uma educação e cultura grega possibilitada pela expansão desse mundo por Alexandre, o Grande. Sobre a discussão especializada da construção da identidade grega na Antiguidade, baseada na ideia do compartilhamento de idioma e cultura, cf. Hall, 2001, p. 213-25.
15 Aristóteles de Estagira, tutor de Alexandre, o Grande, e o último dos filósofos clássicos, tem seu pensamento filosófico centrado na percepção da realidade empírica por meio dos órgãos dos sentidos e na divisibilidade do conhecimento em uma única ciência, estando subordinadas a esta várias disciplinas (Pellegrin, 2006, p. 236-8). Apesar de o modelo classificatório do filósofo de Estagira estar presente no discurso de Estrabão, consideramos o geógrafo de Amásia mais como um adepto da filosofia estoica, que de certa forma vem a orientar sua visão de mundo, e.g. o discurso em Geografia, XVII.1.36. Portanto, apesar de compartilhar a região de origem com os mestres, entre os quais se destacam Aristodemo de Nisa, Jenarco de Selêucia e Tiranion de Amiso (Dueck, 2000, p. 8), é preciso considerar suas especificidades.
16 Na descrição do Egito, ao chegar a Tebas, Estrabão afirma que esteve em presença de Aelius Gallus, prefeito da ordem equestre do Egito junto a soldados e amigos, os quais não são explicitados, para testemunhar o som produzido pelas estátuas de Mêmnon.
17 Clarke (1999, p. 2) argumenta que, na tradição helenística de produção escrita, especialmente no que concerne às geografias e histórias, é característica a fluidez entre ambas as áreas. Dessa forma, compreende-se a existência de aspectos historiográficos na Geografia de Estrabão.
18 Essa perspectiva pode ser ancorada em algumas passagens da Geografia, especialmente, na seguinte: “As fronteiras das províncias evoluíram no curso do tempo e atualmente elas seguem a ordem estabelecida por César Augusto. De fato, quando a pátria o investiu com a primazia do poder soberano e o instituiu como mestre da vida para decidir a guerra e a paz, ele dividiu todo o território em duas partes, atribuindo-se uma a ele mesmo e a outra ao povo; é a ele que estão voltadas todas as zonas que exigem o uso de uma proteção militar – [...] – enquanto ao povo está voltado todo o resto, ou seja, as regiões pacificadas que se podem governar facilmente sem recorrer às armas” (Estrabão, Geografia, XVII.3.25). Neste excerto percebemos a divisão do império entre as províncias imperiais, caso do Egito sob a administração de um prefeito da ordem equestre, e as províncias senatoriais, caracterizadas como espaços menos perigosos em que não havia a interferência direta do imperador.
19 O esquema narrativo de Estrabão, que parte da construção de uma imagem geral do espaço físico ao qual são adicionados detalhes, formando uma paisagem mais ampla em que os elementos que a constituem partem tanto dos caracteres geográficos físicos como dos humanos, pode ser identificado nos demais livros da Geografia, não sendo uma qualidade estilística própria do livro XVII.
20 A bipolarização entre gregos versus bárbaros vem sendo questionada por especialistas como Kostas Vlassopoulos (2013), que optou por desenvolver análises em torno da questão da identidade a partir de categorias como globalização, glocalização, representação e sociedades fronteiriças.
21 É interessante destacar que essa visão do Egito como restrito a uma zona habitável atravessada verticalmente pelo rio Nilo também era o ponto de vista compartilhado pelos egípcios antigos, pois o Kemet (Egito) era o vale do Nilo.
22 De acordo com o geógrafo, os peixes mais conhecidos são o oxirrinco (o lúcio do Nilo), o lepidote, o lates, o alabo (da família Gobiesocidae), o coracin, o peixe-porco, o pargo, o peixe-gato, o peixe-cítara, o sável, o peixe-mula, o peixe-lanterna, o baiacu e o peixe-boi. Em relação aos animais terrestres, destaca o sacarrabos e a serpente; sobre as aves, anuncia que o íbis e o falcão são os principais exemplares. Da flora descrita, destacam-se a oliva, a fava egípcia, o papiro, o sicômoro, a acácia, o korsion, a tamareira, a persea e o kiki (uma espécie de grão do qual os egípcios retiravam um óleo para ser utilizado tanto como combustível para lamparinas como para ser usado na pele).
23 Estrabão considera Alexandria como a capital do Egito, sendo as demais regiões consideradas parte do interior do país. Diante dessa diferença, podemos considerar a relevância atribuída ao espaço alexandrino, cuja descrição é intercalada com a narração da história da sucessão da dinastia ptolomaica e o discurso de Políbio sobre a situação caótica derivada da população diversa: nativos egípcios, estrangeiros, alexandrinos de origem e costumes gregos, além de judeus. Durante a passagem de Estrabão pela cidade, além de apresentar os costumes locais, ele registra as construções que denotam o elevado nível de urbanização da cidade.
24 De acordo com o geógrafo, o território egípcio está organizado em trinta e seis nomos, distribuídos em três partes: dez na Tebaida, dez no Delta e dezesseis entre as duas regiões. Além disso, o leitor é apresentado às demais subdivisões encontradas dentro dos nomos: as toparquias que, por sua vez, dividem-se em arouras (ἄρουραι). No entanto, apesar de indicar essa organização territorial, Estrabão apresenta apenas os nomos e as principais cidades dentro destes, omitindo as demais categorias organizativas. Essa característica pode ser evidência do esquema narrativo do geógrafo, que não objetivava realizar uma apresentação exaustiva de todo o território egípcio, mas do que percebia como mais pertinente ao relato.
25 O dicaiodota, responsável pelo controle dos processos jurídicos e o ídios lógos, que recolhia os bens que deveriam retornar ao “tesouro” do imperador. Outros funcionários destacados são o exegeta, encarregado de suprir as necessidades das cidades, o hiponematógrafo, responsável pela redação de decretos oficiais, o arquidicasta, que presidia os tribunais e o comandante da guarda noturna. Os ofícios destacados remontam ao período lágida, o que indica a permanência de certos aspectos culturais anteriores ao contexto de domínio romano e que a ele foram integrados.
26 Os quais são, respectivamente, o boi, o cão, o gato, o falcão, a íbis, o lepidote e o oxirrinco.
27 Poderíamos questionar se o distanciamento anunciado por Estrabão denotaria a falta de “sociabilidade” (Isaac, 2006, p. 64) dos povos em relação aos outros, pois é por meio do contato que se efetivaria, em parte, o regramento daqueles que não eram afortunados pela zona climática.
28 No entanto, o próprio Estrabão narra um episódio em que alguns etíopes, aproveitando-se da expedição de Élio Galo contra os árabes, atacam Siene e Elefantina, reduzindo os habitantes dessas localidades à escravidão e derrubando as estátuas de Augusto. No texto, ainda podemos encontrar uma descrição dos instrumentos de guerra dos etíopes e da aptidão em batalha que era esperada dos reis, o que evidencia o caráter generalizante de certas características atribuídas ao determinismo geográfico explicitado pelo geógrafo.
29 De acordo com o tratado: “Those who inhabit low-lying regions, that are grassy, marshy, and have more hot than cool winds, and where there is hot water, those will be neither tall nor well-shaped, but tend to be stocky, fleshy, and dark-haired; they themselves are dark rather than blonde, more susceptible to phlegm than to bile. Similarly, courage and endurance are not by nature part of their character, but the imposition of law may produce them artificially” (Airs, waters, places, 24 apud Frias, 2004, p. 63). No entanto, é preciso destacar que Estrabão não apresenta ao leitor muitas informações sobre as características físicas das populações que se propõe a descrever, dedicando-se, predominantemente, aos costumes e modo de vida.
30 É importante ressaltar que Estrabão denomina como etíopes os povos núbios. Sobre essa questão, cf. n. 8.
31 Outras cidades etíopes citadas no livro XVII são Pselkhis, Premnis e Napata. Esta última é identificada como a residência real da rainha Candace, descrita pelo amasiano como uma mulher dotada de virilidade e privada de um olho que havia confrontado o poder romano na região. De acordo com McCoskey (2005, p. 60), Estrabão utilizou em seu discurso os conceitos de inversão e barbarismo derivados da etnografia grega para representar as mulheres. Neste caso, a inversão é notavelmente pronunciada, tendo em vista a adjetivação da rainha com atributos masculinos e o papel político que exerce, bem como a representação das mulheres em geral, as quais, tal como os homens, portam arcos de madeira.
32 De acordo com David Silverman, a deusa egípcia Ísis foi uma das divindades que superou o declínio da sociedade egípcia faraônica, tendo sido divulgada e cultuada em outros territórios (Shafer, 2002, p. 48). Era bastante conhecida no mundo romano, tendo sido cultuada em Roma como uma deusa popular, status que compartilhava com divindades como Baco e Vênus (Funari, 2003, p. 27).
33 É importante ressaltar que o geógrafo apresenta um comportamento de povos que habitam a zona tórrida que vai de encontro ao que foi enunciado sobre o grupo etíope que habita em Méroe. Esse comportamento diz respeito ao desconhecimento dos deuses e a abominação do sol, elemento considerado maléfico em razão do calor que inflige. Estrabão finaliza o comentário enunciando que “esse povo se refugia nos pântanos” (Estrabão, Geografia, XVII.2.3), o que possibilita pensar que, de acordo com os parâmetros lançados pelo geógrafo no discurso (habitantes da zona tórrida, nomadismo, distanciamento de outros povos e, também, a ausência de culto às divindades), esse povo pode ser classificado como bárbaro e, seguindo o argumento dos níveis de barbárie, posicionado abaixo dos etíopes de Méroe.
34 Considerando essas diferenças, faz-se necessário recorrer mais estritamente ao que Estrabão enuncia sobre a Líbia, que, para além da divisão em zona costeira e zona interiorana, aparece seccionada em três partes: “o litoral contíguo ao Mar Mediterrânico, a zona de Cárquedon e as Colunas de Héracles” (Estrabão, Geografia, XVII.3.33).
35 “Eles vieram para levar uma vida errante, sempre em partida, como aqueles que vêm a este tipo de vida por causa da esterilidade do solo ou da mediocridade do clima, tanto que os masésiles receberam um nome que lhes é próprio já que são chamados de nômades. Eles foram obrigados a levar uma vida frugal e, mais comedores de raízes do que de carne, alimentam-se também de leite e queijo” (Estrabão, Geografia, XVII.3.15, grifo nosso).
36 “Os habitantes [os gétulos] têm um modo de vida e maneiras bem simples, mas têm muitas mulheres e muitos filhos, e quanto ao restante são semelhantes aos árabes nômades. Seus cavalos e seu gado têm os cascos mais desenvolvidos do que entre outros povos. Seus reis são singularmente dedicados à criação de cavalos, tanto que, a cada ano, contamos cem mil potros. Suas ovelhas são alimentadas com leite e carne, sobretudo nas proximidades com os etíopes” (Estrabão, Geografia, XVII.3.19).
37 “Os farúsios e os nigritas, que habitam acima dos maurusienses, próximo aos etíopes ocidentais, são, além disso, equipados com arcos, assim como os etíopes, e também utilizam carros em vão. Os farúsios também têm contatos com os maurusienses quando eles cruzam – raramente – o deserto suspendendo as garrafas d’água sob os ventres de seus cavalos; acontece que às vezes eles também passam por lugares pantanosos para chegar a Cirta. Alguns dentre eles viveriam ao modo dos trogloditas, cuidando das escavações. [...], e que alguns desses bárbaros utilizam as peles de serpente ou de peixes à guisa de vestimentas e cobertores” (Estrabão, Geografia, XVII.3.7, grifo nosso).
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