Dossiê | Dossier

Orfeu e noções de música em Proclo

Orpheus and notions about music in Proclus

Michel Mendes
UNICAMP, Brasil
Fábio Vergara Cerqueira
Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Orfeu e noções de música em Proclo

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 1, pp. 239-268, 2021

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 16 Noviembre 2020

Aprobación: 04 Diciembre 2020

Resumo: Neste artigo investigamos o lugar de Orfeu e da música na obra de Proclo, mais especificamente na Teologia Platônica, e analisamos como o músico mítico é desprovido de seus feitos épico-musicais, característicos das representações sobre ele, encontradas na mitologia da Antiguidade. No texto procliano, ele é representado como teólogo, guardião dos mistérios iniciáticos que foram passados pelo músico aos filósofos, dentre os quais Platão recebe o maior destaque. O lugar de auctoritas ocupado por Orfeu é reforçado por sua presença sempre ao lado de Platão nas interpretações religiosas das divindades ligadas ao orfismo, apresentadas por Proclo. Buscamos apresentar, via passagens da Teologia Platônica e dos hinos órficos atribuídos ao filósofo tardo-antigo, a concepção de música cósmica revelada nos excertos e como ela se relaciona à percepção de harmonia universal e com essa concepção de Orfeu e Platão teólogos. Ao longo do trabalho propomos nossa tradução para a língua portuguesa dos excertos em grego, com base na mais recente tradução italiana por Michele Abbate (2019).

Palavras-chave: Orfeu, orfismo, música, Proclo, Platão.

Abstract: In this article we investigate the place of Orpheus and of music in Proclus’ works, more specifically in Platonic Theology and analyze how the mythical musician is devoid of his epic-musical feats, characteristic of the representations about him, found in ancient mythology. In the Proclean text, he is represented as a theologian, guardian of the initiatory mysteries that were passed on by the musician to the philosophers, among which Plato receives the greatest prominence. The place of auctoritas occupied by Orpheus is reinforced by his presence always beside Plato in the religious interpretations of the divinities linked to the orphism, presented by Proclus. We seek to present, via passages of Platonic Theology and the orphic hymns attributed to the late-ancient philosopher, the concept of cosmic music revealed in the excerpts and how it relates to the perception of universal harmony and with this conception of Orpheus and Plato theologians. Throughout the work we propose our translation into Portuguese of the excerpts in Greek, based on the most recent Italian translation by Michele Abbate (2019).

Keywords: Orpheus, orphism, music, Proclus, Plato.

Neste artigo, investigamos o lugar de Orfeu e a música a ele relacionada na Teologia Platônica procliana, considerada uma das mais extensas obras de Proclo que chegou até nós e que revela uma interessante concepção do mito órfico no sistema teológico procliano. Orfeu aparece ainda nos comentários de Proclo às obras de Platão. Sempre que possível traremos em nota algumas considerações que possam contribuir para o melhor entendimento do lugar de Orfeu nesses comentários. O filósofo é tido, também, como autor dos Hinos Órficos, conjunto de fragmentos de sete hinos compostos por Proclo sobre as principais divindades que parecem estar relacionadas ao orfismo. Porém, visto que Orfeu não é citado de maneira direta nesses hinos, pelo menos nos fragmentos supérstites, traremos, ao final deste estudo, algumas considerações sobre eles, e mais especificamente sobre o hino III, na busca de evidências do conceito de música cósmica, sempre à luz da Teologia Platônica.

Proclo de Lícia (c. 410-85 d.C.) é considerado um representante do neoplatonismo tardio. De acordo com Siorvanes (1996), Proclo desenvolveu, depois de Plotino e Porfírio, um sistema filosófico que parece ter tido bastante influência nas obras neoplatônicas tardias. Um dos destaques de sua obra está numa espécie de sistematização, via método dedutivo euclidiano, das três hipóstases de Platão (Uno, Nous e Alma). Nascido em Constantinopla, teve sua educação, a partir de 430 d.C., em Atenas e chegou a liderar a escola platônica ateniense depois de Siriano. Uma das principais fontes sobre Proclo, além da Suda, é, segundo Abbate (2019, p. 19), a Vida de Proclo, escrita por Marino de Neápolis, sucessor do filósofo na Academia de Atenas.

A influência de Siriano

Sabemos que o filósofo teve como professor Siriano, de quem figura como um dos mais destacados alunos. Assim, por meio da obra de Proclo é possível acessar parte do pensamento de seu mestre. Isso se evidencia, por exemplo, na transmissão do orfismo de Siriano para Proclo, tal como podemos confirmar em sua obra. Um exemplo da proximidade entre Siriano e Proclo, e da possível admiração deste para com seu professor, está no ἐγκώμιον que marca o início de seu Comentário sobre Parmênides de Platão, bem como numa equivalente exortação registrada na Teologia Platônica.2 Nessas passagens, Proclo invoca deuses e deusas para que “abram as portas de sua mente” ao bom entendimento da filosofia de Platão, e em seguida inicia a exortação, entendida como sendo direcionada a Siriano.

Duas das obras de Siriano tratariam diretamente de Orfeu: A Teologia de Orfeu e Sobre Harmonia de Orfeu, Pitágoras e Platão com os Oráculos (da Caldeia). Porém, estas se perderam e pouco dos textos de Siriano chegou até nós. Proclo teria escrito obras órficas semelhantes, mas estas também se perderam. Há ainda suspeitas em relação à autoria dessas e de outras obras de Siriano. Na Suda (IV, 478, 21), uma das principais fontes para a confirmação da autoria de seus escritos, por exemplo, ocorre a atribuição de idênticas oito obras a Siriano e a Proclo. Zeller (1903, p. 818) acredita que as obras foram escritas por Proclo e que foram adicionadas também à lista de Siriano. Já para Praechter (1926, p. 253-4), as obras constantes da Suda seriam de Siriano e atribuídas a Proclo erroneamente. Sheppard (1980, p. 46) afirma que tanto Proclo como Siriano teriam escrito obras com os mesmos nomes. Saffrey (1984, p. 161-71) sustenta a ideia de que talvez Proclo tenha editado as obras de seu professor e por isso os mesmos títulos ocorrem em ambas as entradas, enquanto Cardullo (1986, p. 112-24) classifica como suspeitas as duas listas.

O Orfeu de Proclo na Teologia Platônica

Ainda que haja questionamentos em relação à autoria, a maior parte dos estudiosos aceita que foi Proclo que as escreveu. De acordo com Dodds (1971, p. xiii-xiv), os escritos de Proclo podem ser então divididos em cinco grupos. O primeiro seria o dos comentários às obras de Platão; ao segundo pertence a Teologia Platônica e as obras órficas perdidas, que Dodds acredita terem sido, talvez, escritas por Siriano e apenas editadas por Proclo; no terceiro grupo estão obras perdidas acerca de simbolismo religioso, teurgia, contra os cristãos e também sobre Hecate e Cibele. Referências a essas obras são encontradas no trabalho de Ficino (De sacrificio et magia). No quarto grupo estariam três ensaios que sobreviveram na versão latina de William de Morbecca (de decem dubitationibus circa providentiam; de providentia et fato e de malorum subsistentia). Por fim, no quinto conjunto estão os dois manuais Elementos da Teologia e Elementos da Física.

Neste trabalho, procuramos apontar evidências que possam nos dar pistas do lugar ocupado por Orfeu na teologia do filósofo tardo-antigo e de que maneira a música órfica é mostrada por Proclo. Para tanto, escolhemos a Teologia Platônica, na qual há diversas referências ao músico mítico e sua relação com os mistérios iniciáticos e a seleção de sete hinos órficos escritos por Proclo, nos quais, embora o nome de Orfeu não seja citado, é possível depreender informações acerca da temática órfica em si.

Na Teologia Platônica (14, 5-25), Proclo deixa clara sua crença no orfismo e classifica os quatro modos de transmissão dos conhecimentos teológicos que possibilitam o acesso aos princípios divinos: o Orfismo pelos símbolos;3 o Pitagorismo pela matemática; os Mistérios pela iniciação que revela a verdade em si; e a própria filosofia de Platão, que contém as revelações. Tarzia (2019, p. 12) afirma que “por volta do século VI a.C., a teologia órfica já estava estabelecida no mundo grego e a figura de Orfeu já era patrona de específicos rituais secretos – ainda que se considere que o corpo total da literatura órfica (hierós lógos) não seja anterior ao período helenístico tardio.”

Tal como podemos depreender das diversas fontes sobre o mito, Orfeu possuía diversos poderes oriundos da música. Afirma Cerqueira que

Orfeu relaciona-se ao campo intelectual, aos livros, aos homens civilizados, à lira, ao canto. Liga-se ao poder do homem sobre a natureza. Tocava, pois, com tanta perfeição, que árvores e rochedos deixavam seus lugares, os rios suspendiam suas correntes, e as feras corriam ao redor dele para escutá-lo. Liga-se, também, ao poder da civilização sobre a barbárie. Orfeu aparece, na iconografia, vestido à moda grega, em companhia de guerreiros trácios subjugados pelo canto do citaredo. (Cerqueira, 2017, p. 6)

No entanto, esses elementos presentes nas versões de seu mito quase desaparecem no texto de Proclo que, por outro lado, atribui ao citaredo mítico o lugar de fundador de uma religião e transmissor de uma sabedoria antiga e misteriosa. É esse personagem ora mítico, ora histórico, que, como atestam as diversas fontes antigas e tardias, deu a conhecer a um grupo seleto de iniciados os meios práticos para o acesso gradual aos caminhos de purificação e de salvação da alma humana, assim como as promessas de divinização e acesso ao conhecimento divino em si.4 O principal caminho de acesso a seus conhecimentos, segundo Proclo, é a filosofia de Platão. Na obra de Proclo, os aspectos míticos de feitos heroicos se perdem, ou ficam em segundo plano, dada a ênfase em seu lugar como fundador de uma religião.

A temática de Orfeu ocupa um lugar intermediário entre o culto dionisíaco e o apolíneo. De acordo com Grimal (2000, p. 340), “a maioria dos mitos que narram sua história atribuem seu nascimento a Eagro”, mas Graf (2012, p. 1049) atribui a paternidade a Apolo. Sua morte geralmente é narrada por desmembramento pelas mãos de mulheres da Trácia. Porém, as fontes divergem quanto à forma como morreu o músico mítico e essa variação parece estar ligada às diferentes versões para o início do orfismo.5 Na Teologia Platônica, Orfeu é apresentado como detentor dos conhecimentos relacionados aos ritos e mistérios iniciáticos atribuídos a ele pela deusa Adrasteia,6 cujas leis, inteligíveis por meio da iniciação aos mistérios, regem a tudo e a todos, inclusive à ordenação divina.7 Não é apresentado qualquer dado acerca de sua origem ou de sua morte.

A influência de Proclo, de acordo com Chlup (2012), é considerável sobre os sistemas filosóficos de sua época e posteriores. Evidências de seu sistema seriam percebidas na filosofia bizantina, bem como na escolástica do Ocidente. Foi bastante estudado no Renascimento e teria marcado ainda o idealismo alemão. Nesse contexto filosófico tardio encontramos a figura de Orfeu, principalmente em Proclo, como fundador de ritos de acesso a mistérios guardados pela filosofia grega antiga. Sua obra é marcada, nesse sentido, pelo reconhecimento de Orfeu como guardião do primeiro dos quatro níveis das verdades filosóficas encontradas em Platão e que permeiam o culto órfico.

A importância do orfismo nos escritos de Proclo é bastante evidente. O filósofo traz uma espécie de releitura das obras de Platão por um viés canônico sagrado, de sorte que figuras como Homero e Hesíodo são incluídas numa espécie de panteão, bem como suas obras, transformadas em livros sagrados, atribuindo assim um aspecto religioso à filosofia antiga. Como vimos acima, as obras mais diretamente relacionadas a Orfeu foram perdidas. No entanto, é possível resgatar, pelo menos em parte, algumas evidências das definições de Proclo acerca do músico trácio, bem como dos mistérios iniciáticos relacionados a ele, em outros tratados que sobreviveram.8

A Teologia Platônica, dividida em seis livros, é considerada a mais extensa e a última obra de Proclo. No texto, de ambiciosa envergadura, encontramos os principais elementos do neoplatonismo. Platão é colocado como autor de uma obra filosófico-religiosa e a partir do estudo de seus diálogos seria possível traçar uma teologia completa. Exegese e especulação filosófica se tornam indissociáveis em sua obra, com base numa interpretação filosófico-hermenêutica platônica. De acordo com Abbate,

No âmbito do Neoplatonismo procliano, a interpretação sistemática dos diálogos platônicos é acompanhada da recuperação e reelaboração da variegada tradição religiosa pagã que se formou durante o helenismo. Os mitos de diferentes correntes religiosas, tanto aquelas pagãs tradicionais, como as de caráter iniciático como o Orfismo, são reelaboradas e interpretadas numa chave alegórico-metafísica: as divindades da tradição pagã grega, assim, são concebidas como princípios específicos e níveis metafísicos com base nos quais é ordenada e articulada a realidade como um todo, que resulta hierarquicamente estruturada sobre a base de múltiplos ordenamentos e níveis de divindade aos quais é atribuída uma determinada função metafísica.9 (Abbate, 2019, p. XXIV)

Assim, percebe-se na Teologia Platônica procliana uma tentativa de sistematizar o conteúdo dos diálogos de Platão a fim de estabelecer uma doutrina teológica completa que se encontraria dispersa ao longo de todo o conjunto de escritos platônicos. Os conceitos religiosos que embasam essa teologia são indicados claramente na obra de Proclo. Para ele, trata-se das tradições teológicas mais antigas encontradas nos textos homéricos, na Teogonia de Hesíodo e na tradição órfica. Platão teria recebido a revelação dos mistérios órficos por meio dos ensinamentos de Pitágoras. Orfeu aparece como uma das autoridades guardiãs do conhecimento referente à estrutura do ordenamento divino, juntamente com Hesíodo e Homero, tal como podemos observar em diversos pontos da obra, como por exemplo em I, 6:

Δεῖ δὲ ἕκαστα τῶν δογμάτων ταῖς Πλατονικαῖς ἀρχαῖς ἀποφαίνειν σύμφωνα καὶ ταῖς τῶν θεολόγων μυστικαῖς παραδόσεσιν· ἅπασα γὰρ ἡ παρ᾽ Ἕλλεσι θεολογία τῆς Ὀρφικῆς ἐστὶ μυσταγωγίας ἔκγονος, πρώτου μὲν Πυθαγόρου πὰρα Ἀγλαοφήμου τὰ περὶ θεῶν ὄργια διδαχθέντος, δευτέρου δὲ Πλάτωνος ὑποδεξαμένου τὴν παντελῆ περὶ τούτων ἐπιστήμην ἔκ τε τῶν Πυθαγορείων καὶ τῶν Ὀρφικῶν γραμμάτων. [...] καὶ πάλιν ἐν Κρατύλῳ *** τῆς τῶν θείων διακόσμων τάξεως, ἐν Γοργίᾳ δὲ τὸν Ὅμηρον τῆς τῶν δημιουργικῶν <μονάδων> τριαδικῆς ὑποστάσεως. (Teologia Platônica, I, 6, 25.24-26.18)

Por outro lado, toda a doutrina parece estar em perfeito acordo com os princípios platônicos e com a doutrina mística proferida pelos teólogos. De fato, toda a teologia dos gregos é proveniente da doutrina mística órfica, dado que Pitágoras foi primeiro instruído por Aglaofemo nos ritos sacros concernentes aos deuses, enquanto Platão em segundo, recebeu a perfeita ciência sobre os deuses a partir dos escritos pitagóricos e órficos. E novamente no Crátilo, considera a autoridade de Homero, Hesíodo e Orfeu a respeito da estrutura do ordenamento divino, no Górgias então considera Homero testemunha do fundamento triádico demiúrgico das mônadas.10

O trecho acima confirma a imagem de Orfeu como profeta e guardião de conhecimentos divinos ao lado de Homero e Hesíodo. Segundo o filósofo tardo-antigo, toda a teologia dos gregos deriva da doutrina mística órfica, e Pitágoras figura como primeiro a difundir esses mistérios, recebidos de Aglaofemo.11

Tais conhecimentos divinos são assim transmitidos para Platão, via escritos pitagóricos e órficos. Logo, percebemos a concepção de uma linha de transmissão dos mistérios passados por Orfeu (que os teria recebido de Mercúrio) a Aglaofemo, que iniciou Pitágoras que, por fim, os ensinou a Platão. Porém, Homero e Hesíodo12 aparecem também como receptores das revelações órficas, o que estabelece suas obras em algum ponto nessa linha de preservação e comunicação de ares proféticos. Então, além das obras platônicas, os dois poetas também são alçados à esfera de guardiões desses mistérios. Krausz (2007, p. 18), ao estudar a imagem dos aedos na Ilíada e na Odisseia e as relações entre poesia e divindade na Grécia arcaica, revela que, de fato, naquele contexto temporal, “por meio da poesia oral, cada membro da sociedade estabelece vínculos com seu passado coletivo, de tal forma que a existência individual transcende os limites da experiência imediata para alcançar uma dimensão ulterior [...], isto é, a esfera do sagrado.”

Se aceitarmos a definição acima, talvez possamos entender melhor a inclusão que Proclo faz de Homero e Hesíodo no conjunto de obras de revelações religiosas.13 A própria imagem dos poetas em contato com as Musas, ao invocá-las para iniciar suas obras, e entendidos muitas vezes como agraciados por seus dons, além da imagem dos aedos como transmissores da mensagem das divindades, tal como se verifica na Ilíada e na Odisseia, e ainda a intensa carga mitológica dessas duas obras, constituem elementos suficientes para lhes atribuir interpretações místicas.14 Dessa forma, é como se Orfeu se alinhasse, enquanto poeta, a essa linha de transmissão. Na Teologia Platônica, Orfeu é apresentado como intermediário entre os filósofos e a origem divina dos mistérios.

Tarzia (2019) afirma que outra fonte possivelmente utilizada por Proclo, referente à doutrina teológica, é o conjunto dos Oráculos Caldeus. A presença dessa fonte alinha a filosofia procliana com a teurgia. De acordo com Hauschild (2018), os Oráculos nos chegaram de forma fragmentária, principalmente por meio das citações que Porfírio, Jâmblico e Proclo fazem deles em seus tratados. “Os versos, segundo os neoplatônicos que os citavam, teriam sido comunicados pelos deuses, o que sugere que tenham sido proferidos e escritos em momentos de transe místico.” (Hauschild, 2018, p. 53) Se esse for de fato o caso, Lewy (1978, p. 716) aponta que “todas as expressões caldaicas não podem ser totalmente coerentes”, o que Majercik complementa ao afirmar que tais ressalvas [contra a sistematização] se aplicam não apenas às construções teológicas que informam o sistema caldeu (com sua fusão esquisita de deuses, deusas e hipóstases filosóficas), mas às próprias práticas que surgem sob a alcunha de teurgia” (Majercik,1989, p. 24).

Segundo Trouillard (1982, p. 240), o fragmento IV do comentário de Proclo sobre os Oráculos, por exemplo, remete à efusão silenciosa (μετὰ σιωπῆς), ao silêncio primordial.15 Assim, acreditamos que, juntamente com as menções a Orfeu, os Oráculos revelariam um viés contemplativo da obra de Proclo, mas que, ainda assim, não abandona o sistema racional ancorado na interpretação da filosofia platônica. Talvez nesse sentido não encontremos na Teologia Platônica, nos Elementos da Teologia ou nos Comentários a Parmênides de Proclo qualquer referência direta ao Orfeu músico e a seus poderes narrados nos mitos. Ao invés disso, o encontramos como autoridade guardiã dos mistérios divinos e transmissor desses saberes aos filósofos. Nos é apresentado, então, um Orfeu profeta. Porém, sua música está presente no texto de Proclo. Tal como veremos ao longo das citações, ela se mostra muito mais ligada ao culto das divindades e à harmonia cósmica mantida por Zeus e por Apolo.16 A música parece ocupar agora um outro lugar.

Como pudemos verificar acima, em I, 6, Orfeu aparece ligado a uma linha de transmissão do conhecimento mistérico que chegou a Platão. Destacamos também em IV, 17, 16-21 essa mesma concepção de Orfeu como profeta. Porém, agora, Proclo faz menção ao nome de Orfeu relacionado a uma primeira divindade. Ao tratar da Lei de Adrasteia, Proclo relaciona Orfeu a esta deusa e revela a importância dela na teologia ora apresentada. Então afirma

τῷ δὲ τῆς Ἀδραστείας θεσμῷ πάντα ὑπήκοα, καὶ πᾶσαι διανομαὶ θεῶν καὶ μέτρα πάντα καὶ φρουραὶ διὰ τοῦτον ὑφεστήκασι. Παρ’ Ὀρφεῖ δὲ καὶ φρουρεῖν λέγεται τὸν ὅλον δημιουργόν, καὶ χάλκεα ῥόπτρα λαβοῦσα καὶ τύπανον † αἴγηκες † οὕτως ἠχεῖν ὥστε πάντας ἐπιστρέφειν εἰς αὑτὴν τοὺς θεούς. (IV, 17, 52.16-21)

Tudo está sujeito à lei de Adrasteia, toda a distribuição dos deuses, toda medida e todos os guardiões existem a partir dessa lei. Em Orfeu se encontra a afirmação de que o Demiurgo Universal está contido em Adrasteia e os címbalos de bronze e tímpanos os faz ressoar tão alto que todos os deuses se voltam para ela.

Proclo cita címbalos e tímpanos como instrumentos que chamam a atenção dos deuses durante o que parece ser o ritual em honra da deusa Adrasteia. Ao afirmar que em Orfeu se encontra referência a esses instrumentos e, talvez, aos ritos em si, temos novamente a concepção do músico mítico como guardião de ritos religiosos. Os instrumentos musicais geralmente relacionados a Orfeu, a cítara ou a lira, desaparecem e dão lugar a um contexto musical ritualístico de invocação de outras divindades. Na tradição órfica, divindades relacionadas ao contexto mistérico geralmente estavam ligadas ao uso de instrumentos de percussão. De acordo com West (1983), um exemplo mais evidente seria o caso de Dioniso Zagreu, um Dioníso órfico, um pouco diferente da versão mais difundida, no qual se concentra a cosmogonia da teologia órfica.

Mais adiante, em IV, 17, 52. 22-26 / 53. 1, Orfeu aparece novamente como autoridade detentora dos mistérios divinos.

Ὃ καὶ Σωκράτης ἀπομιμούμενος, τὸν ἦχον λέγω τὸν μυθικὸν τὸν ἐπὶ πάντα διατείνοντα, κηρύγματι παραπλησίως τὸν θεσμὸν τῆς Ἀδραστείας ἐπὶ πάσας προάγει τὰς ψυχάς· Θεσμὸς δὲ Ἀδραστείας ὅδε, ἥτις ἂν ψυχὴ κατίδῃ τι τῶν ἀληθῶν μέχρι τε τῆς ἑτέρας περιόδου εἶναι ἀπήμονα, μόνον οὐχὶ τὸν Ὀρφικὸν ἦχον ἀποτυπωσάμενος διὰ τοῦδε τοῦ κηρύγματος καὶ οἷον ὕμνον τινὰ τοῦτον τῆς Ἀδραστείας ἀναφθεγξάμενος. (IV, 17, 52-53)

E é isso que Sócrates imita, digo quanto ao som, no que tange à narração mítica, a qual se estende em todas as direções, e na forma de uma proclamação solene, faz presente a todas as almas a lei de Adrasteia. ‘Esta é a Lei de Adrasteia: qualquer alma que tenha visto a verdadeira divindade estará imune à dor’. Através dessa ode a Adrasteia ele quase ecoa o modo órfico de expressá-la, chegando, por assim dizer, quase a entoar um hino a Adrasteia.”

Adrasteia, de acordo com Hornblower e Spawforth (2012, p. 1048), é uma deusa representada por uma montanha sagrada que leva seu nome. Ali parece que havia uma caverna na qual ritos iniciáticos eram realizados. Mais uma vez a figura de Orfeu aparece como fonte desse conhecimento divino na linha de transmissão para os filósofos. Destacamos a menção aos instrumentos musicais característicos de ritos iniciáticos, instrumentos de percussão ao invés da cítara característica do músico mítico. Proclo afirma claramente que é a partir desses instrumentos que se consegue a atenção dos deuses para que se obtenha a atenção de Adrasteia. Talvez tenhamos aqui uma evidência de como seria o rito a essa deusa, pelo menos quanto aos instrumentos musicais utilizados em seu culto.

Ainda sobre a referida passagem, chamamos a atenção para a forma como Sócrates, segundo Proclo, invoca a Lei de Adrasteia. Seria esse “som órfico” entoado por Sócrates um tipo de canto? A partir do texto poderíamos afirmar que sim, dado o uso do termo μυθικόν. Se assim pudermos interpretar, teríamos aí um eco do Orfeu cantor, e a música entoada para invocar Adrasteia poderia remeter a alguma tradição musical na ritualística dos mistérios. Da mesma forma, ao final da passagem, Proclo reforça a ideia do canto ao comparar a um hino a entoação (ἀναφθεγξάμενος) de Sócrates. Sheppard (1982) afirma que Proclo, em sua relação teúrgica com a filosofia, defende a importância dos hinos na busca da união com os deuses, para sua invocação, mas vai além, na definição da própria filosofia como sendo um hino aos deuses.

Mais adiante, em V, 3, 16-17, Proclo faz referência aos Curetes:

Ἀλλὰ μὴν καὶ τριάδα τὴν ἀμείλικτον καὶ ἄχραντον τῶν νοερῶν θεῶν διαρρήδην ὁ Πλάτων ἑπόμενος Ὀρφεῖ Κουρητικὴν ἀποκαλεῖ, καθάπερ ἐν Νόμοις φησὶν ὁ Ἀθηναῖος ξένος, τὰ τῶν Κουρήτον ἐνόπλια παίγνια καὶ τὴν ἔνρυθμον χορείαν αὐτῶν ἀνυμνῶν. Καὶ γὰρ Ὀρφεὺς τοὺς Κούρητας φύλακας τῷ Διὶ παρίστησι τρεῖς ὄντας καὶ οἱ θεσμοὶ τῶν Κρετῶν καὶ ἡ Ἑλληνικὴ πᾶσα θεολογία τὴν καθαρὰν καὶ ἄχραντον ζωὴν καὶ ἐνέργειαν εἰς τὴν τάξιν ταύτην ἀναπέμτουσιν.

Platão, referindo-se a Orfeu, chama, em termos explícitos, a tríade implacável e intata, que faz parte dos deuses intelectuais, Tríade dos Curetes,17 como afirma nas Leis o estrangeiro de Atenas quando celebra os jogos em armas dos Curetes e sua dança rítmica. De fato, Orfeu atribui a guarda de Zeus aos Curetes, que são três, e as leis de Creta e toda a teologia grega remetem a esse ordenamento a vida e a atividade pura e incontaminada.

Proclo cita Orfeu via Platão como fonte, para que se comprove o mito dos Curetes. Assim como em outros pontos da Teologia Platônica, Orfeu aparece ao lado de Platão. Podemos inferir dessa passagem referências a algum tipo de música e dança ritual, visto que a tríade mencionada pelo filósofo tardo-antigo é conhecida por sua dança de armas, cujo volume sonoro, proporcionado pelo choque de suas lanças contra escudos – que segundo a tradição caracteriza a dança dos Curetes –, além de ter protegido Zeus em sua infância, parece ter sido reproduzida como forma de homenagem a estas divindades posteriormente. Mais uma vez, no entanto, a ênfase não parece ser no Orfeu músico, mas sim em seu lugar de auctoritas como referência para a origem e comprovação de um rito. Tal como observamos nas citações anteriores, Orfeu, embora não cante nem toque sua cítara, está associado ao canto, a instrumentos musicais iniciáticos e às danças rituais, ou seja, é como se fosse interpretado como a origem dessa musicalidade que, ao que o texto indica, seria praticada inclusive pelos próprios filósofos Sócrates e Platão.

Em V, 10 Orfeu é identificado por Proclo como o teólogo dos gregos.

Τίς μὲν οὖν ό μέγιστος οὗτος θεός, καὶ ὅσων αἴτιος ἀγαθῶν ταῖς ψυχαῖς καὶ πρὸ τούτων τοῖς τῆς ψυχῆς ἡγεμόσι, θεοῖς τε καὶ δαίμοσιν, ἀπὸ τούτων ἔστω δῆλον. Τῶν δὲ θεολόγων τὸ ἀγήρων τῇ τάξει ταύτῃ προσήκειν λεγόντων, ὡς οἵ τε βάρβαροί φασι καὶ ὁ τῶν Ἑλλήνων θεολόγος Ὀρφεύς (καὶ γὰρ οὗτος ἀεὶ μελαίνας εἶναι τὰς τοῦ Κρονίου προσώπου τρίχας μυστικῶς λέγει καὶ μηδαμῇ γίγνεσθαι πολιάς), θαυμάζω τὸν τοῦ Πλάτωνος ἔνθεον νοῦν τὰ αὐτὰ περὶ τοῦ θεοῦ τούτου τοῖς κατ’ ἴχνος αὐτοῦ πορευομένοις ἐκφαίνοντα. Ἐν γὰρ τῇ Κρονίᾳ περιόδῳ τὸ γῆρας ἀφιέναι φησὶ τὰς ψυχάς, ἐπὶ δὲ τὸ νέον ἀνακάμπτειν, καὶ τὸ μὲν πολιὸν ἀφαιρεῖν, τὰς δὲ τρίχας μελαίνας ἴσχειν. Τῶν γὰρ πρεσβυτέρων, φησίν, αἱ λευκαὶ τρίχες ἐμελαίνοντο, τῶν δὲ γενειώντων αἱ παρειαὶ λειαινόμεναι εἰς τὴν παρελθοῦσαν ὥραν καθίσταντο. Ταῦτα μὲν ὁ Ἐλεάτες ξένος, ὁ δέ γε Ὀρφεὺς τὰ τούτοις ὅμοια περὶ τοῦ θεοῦ διατάττεται.



<...........................> ὑπὸ Ζηνὶ Κρονίωνι
ἀθάνατον αἰῶνα λαχεῖν, καθαροῖο γενείου
<οὐ> διερὰς χαίτας εὐώδεας οὐδὲ <κάρητος
γήραος ἠ> πεδανοῖο μιγήμεναι ἄνθει λεθκῷ,
ἀλλὰ <.......................> ἐριθηλέα λάχνην.
<.......................................................................................>
τὴν πρὸς τὸν θεὸν ὁμοιότητα τῶν Κρονίων ψυχῶν
παραδιδούς, τὸ μὲν γῆρας αὐτὰς ἀφανίζειν ὃ προσειλήφασιν
ἐκ τῆς γενέσεως λέγει καὶ τὴν ἀσθένειαν ἀποσκευάζεσθαι
τὴν ὑλικήν, τὴν δὲ νεάζουσαν καὶ ἀκμαίαν τοῦ νοῦ
προβάλλειν ζωήν. Οὐ γὰρ ἄλλως θεμιτὸν αὐτὰς ὁμοιοῦσθαι
πρὸς τὸν ἀγήρων θεὸν ἢ διὰ τῆς ἥβης τῆς νοερᾶς καὶ
τῆς ἀχράντου δυνάμεως.

Qual é a natureza desse grande deus e de quais bens seria o princípio causal para as almas e, antes destes, para os guardiões das almas, deuses e daemones, deve ficar claro a partir dessas considerações. Além disso, dado que os teólogos afirmam não estarem sujeitos à velhice os que pertencem a esta ordem, não apenas os teólogos bárbaros, mas também o teólogo dos gregos, Orfeu18 (e de fato ele afirma de uma maneira mística que a barba de Cronos é sempre negra e nunca fica cinzenta), admiro o intelecto divinamente inspirado de Platão, que revela as mesmas coisas sobre esse deus, mostradas por aqueles que seguem os passos de Orfeu. De fato, Platão afirma que, no período cíclico de Cronos, as almas se livram da velhice, retornam para a juventude e se livram de seus cabelos brancos, os mantendo pretos. Em verdade, Platão diz: “os cabelos brancos dos mais velhos ficaram pretos e as bochechas dos que tinham barba, ficando lisas, retornaram à juventude passada”.

Estas são as palavras do estrangeiro de Eleia, enquanto Orfeu, por sua vez, dá indicações específicas semelhantes a estas, relativas ao deus:

“<……> sob o reinado de Zeus, filho de Cronos, eles receberam muito em idade imortal; possuíam pelos grossos, úmidos de perfume, nas barbas negras e <os cabelos> se misturavam com a branca flor da <velhice>, tendo <as têmporas> floridas”.19

Na passagem acima, Proclo cita o texto de Platão e afirma citar também escritos do próprio Orfeu acerca do poder de Cronos e Zeus, marcado, dentre outras coisas, pelo não embranquecimento de seus cabelos e barbas. O músico mítico é novamente denominado profeta dos gregos. Talvez possamos identificar aqui uma evidência do Orfeu autor, visto que, após a afirmação de Platão, Proclo cita o que seriam versos de autoria do próprio trácio. Segundo Bernabé (2002, p. 61), essa tradição parece ter-se intensificado no período tardio e pode ser encontrada em escritos de até pelo menos o século XVI. Nesse sentido, destacamos também a passagem seguinte, na qual mais uma vez Orfeu é citado ao lado de Platão para dar credibilidade a afirmações referentes ao ordenamento de divindades. Dessa vez, trata-se do lugar de Reia como mãe de Zeus e sua posição inferior frente a Cronos.

Assim, em V, 11 temos

Ταῖς δὲ αὖ περὶ τοῦ βασιλέως τῶν νοερῶν θεῶν ὑπομνήσεσι πέρας ἐπιθέντες ἐχομένως δήπου τὴν βασιλίδα Ῥέαν ὑμνήσομεν. Ταύτην γὰρ δὴ μητέρα τοῦ δημιουργοῦ τῶν ὅλων, δευτέραω δὲ τοῦ Κρόνου θεὸν Πλάτων τέ φησι καὶ Ὀρφεύς.

Por outro lado, depois de encerrar as discussões sobre o rei dos intelectuais, celebraremos, na minha opinião, imediatamente a deusa Reia. De fato, esta é precisamente a mãe do Demiurgo do universo em sua totalidade e, no entanto, é uma divindade inferior a Cronos, tal como dizem tanto Platão quanto Orfeu.20

E ainda, na sequência, em V, 11, 39, 10-14 a fim de reforçar as informações sobre Reia, Proclo recorre a Orfeu.

Ἐπεὶ καὶ κατ’ Ὀρφέα τῷ μὲν Κρόνῳ συνοῦσα κατὰ τὴν ἀκρότητα τὴν ἑαυτῆς ἡ μέση θεὸς Ῥέα καλεῖται, τὸν δὲ Δία παράγουσα καὶ μετὰ Διὸς ἐκφαίνουσα τούς τε ὅλους καὶ τοὺς μερικοὺς διακόσμους τῶν θεῶν, Δημήτηρ.

De fato, mesmo de acordo com Orfeu, a divindade intermediária, quando unida a Cronos da base ao seu próprio topo, é chamada “Rhea”; ao contrário, ao introduzir Zeus e com Zeus, faz parecer tanto a ordem universal quanto a ordem particular dos deuses, é chamado Deméter.21

Em V, 35 Proclo reforça o lugar de Platão entre os “teólogos da Grécia” (Ἕλλησι θεολόγος) ao tratar da tradição teológica da doutrina mistérica. No parágrafo seguinte, Orfeu é evocado para, novamente ao lado de Platão, confirmar mais uma parte da referida doutrina ligada aos Curetes, já apresentados anteriormente pelo autor, como pudemos ver em V, 3, 16-17. Então em V, 35 temos:

Ταύτην δὴ οὖν τὴν Κουρητικὴν τάξιν οὐ μόνον Ὀρφεὺς καὶ οἱ πρὸ τοῦ Πλάτωνος ἔγνωσαν θεολόγοι καὶ γνόντες ἐθρήσκευσαν, ἀλλὰ καὶ ὁ Ἀθηναῖος ξένος ἐν Νόμοις ἀνύμνησεν. τὰ γὰρ ἐν Κρήτῃ τῶν Κουρήτων ἐνόπλια παίγνια πάσης τῆς εὐρύθμου κινήσεως εἶναί φησιν ἀρχηγικὰ παραδείγματα.

Bem, não só Orfeu e os teólogos antes de Platão conheciam esse ordenamento curético e, conhecendo-o, fizeram dele um objeto de culto, mas também o estrangeiro de Atenas22 o celebrou nas Leis: na verdade, ele diz que os “jogos de armas dos Curetes” em Creta são o modelo original de todo o movimento bem cadenciado.23

Em VI, 8, 39 afirma:

Καὶ ταῦτα ὁ Ἀθηναῖος ξένος ἐν τοῖς προειρημένοις δεδήλωκε ῥήμασιν, ὁ δὲ Ὀρφεὺς καὶ διαρρήδην εἰς τὸν ὅλον ἀναπέμπει δημιουργόν. Ἤδη γὰρ αὐτῷ βασιλεύοντι καὶ διακοσμεῖν ἀρχομένῳ τὸ πᾶν ἕπεσθαί φησι τὴν ὅλην Δίκην·

Τῷ δὲ Δίκη πολύποινος ἐφέσπετο πασιν ἀρωγός

Καὶ δὴ καὶ ὅτι τῶν ὅλων ἀρχὰς καὶ μέσα καὶ τέλη περιέχει, λέγει πρὸς τούτοις ὁ θεολόγος·

Ζεὺς ἀρχή, Ζεὺς μέσσα, Διὸς δ’ἐκ πάντα πέφυκε.

Καί μοι δοκεῖ καὶ ὁ Πλάτων εἰς ἅπασαν τὴν Ἑλληνικὴν θεολογίαν ἀποβλέπων, καὶ διαφερόντως τὴν Ὀρφικὴν μυσταγωγίαν, ἀνειπεῖν ὡς ἄρα ὁ παλαιὸς λόγος τὸν θεόν φησιν ἀρχὴν καὶ μέσα καὶ τελευτὴν τῶν ὄντων ἁπάντων ἔχειν, εὐθείᾳ τὰ ὅλα περαίνοντα, κατὰ φύσιν περιπορευόμενον, καὶ Δίκην ἔχειν ὀπαδόν, δι’ἧς καὶ τὸ ἀφιστάμενον πᾶν τῆς πατρονομικῆς ἐπιστασίας τοῦ Διὸς ἐπιστρέφει πρὸς αὐτὴν καὶ τυγχάνει τοῦ προσήκοντος αὐτῷ τέλους.

E esses aspectos o estrangeiro de Atenas os destacou nas declarações relatadas anteriormente; Orfeu, por sua vez, se refere explicitamente, em relação a esses aspectos, ao Demiurgo Universal. De fato, ele afirma que a Justiça universal segue o Demiurgo que reina sobre o Todo e começa a dar-lhe ordem: “Depois dele veio a Justiça, uma severa punidora, que é de todos o socorro”. E precisamente com relação ao fato de que <o Demiurgo> inclui em seus princípios partes intermediárias e finais, a totalidade das coisas, o teólogo acrescenta:

“Princípio Zeus, Zeus intermediário, todas as coisas nasceram de Zeus.”

E, na minha opinião, é examinando toda a teologia grega, e em particular a doutrina dos mistérios órficos, que Platão proclamou:

“O discurso antigo” diz que “o deus possui o começo, o meio e o fim de todas as entidades, na medida em que conduz diretamente à realização de todas as coisas, fazendo sua rotação de acordo com a natureza”, e tem “Justiça” como companheira, através do qual tudo o que se afastou do governo paterno de Zeus retorna para ele e obtém o cumprimento que lhe convém. Mas então, mesmo o Estrangeiro de Atenas proclama essas noções para seus “alunos” que olham para o Demiurgo universal, está fixado na memória por meio dessas considerações. Por outro lado, se essas distinções foram feitas corretamente, em minha opinião, é absolutamente com base na essência que <Platão> separa o único Demiurgo desses três demiurgos.24

A referência mais antiga aos versos órficos relacionados a Zeus parece estar mesmo nas Leis de Platão (IV, 716e). Essa evidência ajuda a comprovar a crença em Zeus como detentor do princípio, do meio e do fim de todas as coisas. Além da referida obra de Platão, esses versos aparecem também no Papiro de Derveni e, posteriormente, numa obra intitulada De Mundo, atribuída a Aristóteles, que provavelmente foi escrita entre os séculos I a.C. e I d.C. (Meisner, 2018, p. 103). Além dessas fontes destacamos os hinos órficos compostos por Proclo. Em especial o hino III, como veremos mais adiante, no qual as nove Musas, filhas de Zeus, são invocadas como responsáveis pela elevação das almas (Hinos Órficos, III).

Em VI, 11 temos mais uma referência de Orfeu junto a Platão.

Ταύτην τοίνυν τὴν τριάδα καλεῖ μὲν ὁ Πλάτων, ὥσπερ καὶ Ὀρφεύς, ἑνὶ ὀνόματι. ἐνδείκνυται δέ πως καὶ τὸ πλῆθος τῶν ἐν αὐτῇ δυνάμεων. Ἅπασα γὰρ ἠ παρ’Ἕλλησι θεολογία τὴν δευτέραν ζωογονίαν Κορικὴν ἐπονομάζει καὶ συνάπτει τῇ ὅλῃ πηγῇ τῇ ζωογόνῳ καὶ τὴν ὑπόστασιν ἀπ’ ἐκείνης ἔχειν φησὶ καὶ μετ’ ἐκείνης ἐνεργεῖν.

É esta, portanto, a tríade que Platão, assim como Orfeu, chama com um único nome, mas de certa maneira também indica a multiplicidade de poderes inerentes a ela. De fato, toda a teologia dos gregos é chamada “Curética” quanto à segunda forma de geração de vida e a conecta à fonte universal geradora de vida, afirmando que deve sua existência a essa fonte e age em conjunto com a última.25

E então, em VI, 12 Proclo afirma:

Πρῶτον δὴ τοῦτο κατανοήσωμεν, ὅπως καὶ αὐτός, ὥσπερ Ὀρφεύς, τὸν Ἥλιον εἰς ταὐτόν πως ἄγει τῷ Ἀπόλλωνι καὶ ὡς τὴν κοινωνίαν πρεσβεύει τούτων τῶν θεῶν. Ἐκεῖνος μὲν γὰρ διαρρήδην λέγει, καὶ διὰ πάσης ὡς εἰπεῖν <τῆς> ποιήσεως· ὁ δὲ Ἀθηναῖος ξένος ἐνδείκνυται διὰ τῆς ἑνώσεως αὐτῶν, κοινόν τινα νεὼν Ἀπόλλωνι καὶ Ἡλίῳ κατασκευάζων, καὶ τοτὲ μὲν ἀμφοῖν διαμνημονεύων, τοτὲ δὲ θατέρου μόνον, ὡς κατὰ μίαν ἕνωσιν αὐτῶν ὑφεστηκότων.

Primeiro, vamos considerar como Platão, da mesma forma que Orfeu, identifica o Sol, de certa maneira, com Apolo e como ele honra a semelhança entre esses deuses. De fato, Orfeu afirma explicitamente isso, e por toda a sua poesia, por assim dizer; por sua vez, o estrangeiro de Atenas o expressa através da unificação desses deuses, quando ele propõe construir um templo comum para Apolo e para o Sol, e faz menção aos dois deuses juntos, ao invés de apenas um dos dois, como se eles existissem com base em uma unidade.26

Como vimos, ao tratar da relação do Sol com o deus Apolo, Proclo atribui a Orfeu e Platão estas informações. Notamos que o autor tardo-antigo evidencia os caminhos textuais por meio dos quais os dois guardiões o fizeram. Orfeu por meio de sua poesia, Platão pelas afirmações do estrangeiro de Atenas. Temos aqui mais uma evidência do Orfeu autor, semelhante ao que constatamos em V, 10. Proclo cita a existência de versos compostos pelo músico mítico. Segundo Bernabé (2002, p. 61), “Durante muito tempo Orfeu foi considerado autor de uma ampla série de obras literárias. Assim acreditam desde o comentarista do Papiro de Derveni, do século IV a.C., que cita uma série de versos como pertencentes a um poema de Orfeu, até Constantino Láscaris, entre os séculos XV e XVI, que escreve uns tais Prolegômenos do sábio Orfeu, no qual lhe atribui diversos poemas”.

Ainda em VI, 12, Proclo define a essência do deus Apolo que remete à simplicidade primordial. De acordo com o filósofo, essa simplicidade, que é a essência da verdade, é responsável por uma “rotação concordante” (ὁμοπολήσει) e rege o “movimento harmônico da totalidade do universo e o acordo que une e conecta todos os seres a esse deus” (VI, 12, 59). Seguindo a ideia de uma harmonia cósmica,27 Proclo afirma que tudo no universo é ordenado pelo poder da música e assim mantido por uma harmonia providencial.

Ἡ δὲ δευτέρα καὶ τρίτη δραστήριον ἀκμὴν προβέβληνται καὶ δημιουργικὴν εἰς τὰ ὅλα ποίησιν καὶ ἐνέργειαν τελείαν, καθ’ ἣν κοσμοῦσι μὲν πᾶν τὸ αἰσθητόν, ἐξορίζουσι δὲ τὸ ἀόριστον καὶ ἄτακτον ἐκ τοῦ παντός· καὶ ἔστιν ἀνάλογον ἡ μὲν τῇ διὰ μουσικῆς εἰς τὰ ὅλα ποιήσει καὶ τῇ ἐναρμονίῳ προνοίᾳ τῶν κινουμένων, ἡ δὲ τῇ ἀναιρετικῇ πάσης τῆς ἀταξίας καὶ της ἐναντίας πρὸς τὸ εἶδος καὶ τὴν διακόσμησιν τῶν ὅλων ταραχῆς.

Além disso, a segunda e a terceira mônadas produziram um vigor ativo, uma ação produtiva demiúrgica voltada para a totalidade do universo e uma atividade perfeita, segundo a qual por um lado dão ordem a todos os sensíveis, por outro banem do Todo o que é indeterminado e desordenado; e um é análogo à ação exercida sobre a totalidade do universo pela música e ao cuidado providencial harmonioso aos seres sujeitos ao movimento, o outro, por sua vez, é análogo ao <poder> aniquilador de toda desordem e tumulto que se opõe à forma e ordenação do universo como um todo.28

Sendo assim, talvez seja possível aventar a possibilidade de termos aqui alguma referência à música de Orfeu. Proclo inicia o livro VI explicando a essência de Apolo, afirmando em diversos pontos ser este deus responsável pela harmonia marcada pela simplicidade primordial que representaria a verdade primeva. Atribui a transmissão de tal conhecimento a Orfeu e Platão. Siorvanes (1996, p. 165) afirma que a teoria de Proclo sobre o movimento dos astros segue o padrão triádico “número-volume-poder”, padrão equivalente às áreas da “aritmética-geometria-música”, e assere ainda que o filósofo traria em seus tratados, ao lidar com a questão dos movimentos dos corpos celestes, uma interpretação do ponto de vista platônico contido em Timeu (35c-36c) acerca disso.

A definição de Proclo para os movimentos e ordenamento dos astros no cosmos se dá por meio da música e de uma harmonia universal. Tal princípio era tido pelos gregos como criador e regulador de todas as coisas.

A harmonia do mundo é um conceito complexo em que estão compreendidas a representação da bela combinação dos sons no sentido musical e a do rigor dos números, a regularidade geométrica e a articulação tectônica. É incalculável a influência da ideia de harmonia em todos os aspectos da vida grega dos tempos subsequentes. Abrange a arquitetura, a poesia e a retórica, a religião e a ética. (Jaeger, 2013, p. 207)

Podemos identificar, no excerto procliano citado acima, a referência a esse ordenamento cósmico regido pela música, visto que o pensador relaciona o movimento dos corpos à harmonia cósmica e ao poder da música. Fora dessa esfera musical tudo é desordenado e indeterminado. Visto que o autor defende na Teologia Platônica a simplicidade como essência apolínea da verdade e admite ser o universo regido por força e proporção musicais, ficamos tentados a inferir que Proclo defenderia a concepção platônica de música apresentada nas Leis e na República, bem como no Timeu.

De fato, a influência da música, partindo da acepção de uma harmonia universal, é atestada por Platão. E, de acordo com o que se encontra em seus escritos, é possível verificar a sintonia com o sistema procliano.

A música, como fonte de purificação e terapia para a alma, teve um lugar importante no programa educacional de Platão na República: primeiro, em combinação com a ginástica, no estágio inicial, e mais tarde como uma das quatro disciplinas matemáticas no quadrivium, que compreende aritmética, geometria, harmonia e astronomia. Acima do nível da música como “ciência”, há um nível mais alto, o da música inspirada. Este tipo de música coloca a alma em contato direto com os princípios da realidade, através da συγγένεια – que é afinidade ou harmonia – e a presença da harmonia divina dentro da alma. A música, tanto a arte pela inspiração como a ciência, é considerada como anagógica, no sentido em que ajuda a alma a ascender e retornar a sua origem primordial. (Moro Tornese, 2013, p. 117)

Essa definição platônica de música possui também um viés moral ao tratar da importância dessa área do saber na educação e na formação do caráter dos cidadãos, tema acerca do qual Proclo sequer apresenta qualquer discussão. Identificamos que essa é a única vez, na obra inteira, que o autor cita o termo μουσική e ainda sem entrar em detalhes sobre características dessa “música”. A única pista que Proclo deixaria quanto a isso é a simplicidade apolínea que regeria a harmonia cósmica e, portanto, nos permitiria inferir que a música superior, desejável e moralmente aceita seria aquela mais próxima de Apolo, tanto por antiguidade como por suas características tonais.

Cerqueira (2019), ao investigar as continuidades e rupturas da cultura musical grega no contexto romano em fins da República e período imperial, afirma que o status superior dessa música teórica, quando comparada à música executada nos instrumentos, se manteve e evidencia a continuidade do aspecto matemático-astronômico, tal como transmitido pelos teóricos gregos.

Nesse espectro pitagórico, a ordem do mundo fundada sobre o rigor do número é concebida como uma harmonia, uma música. A música humana, das vozes e dos instrumentos, participa da dignidade da música das esferas celestiais (dos astros). Encontramos influências neopitagóricas muito vivas na República de Cícero, obra de 51 a.C. desse autor que, em outras passagens, mostra-se um pouco cético em relação ao poder espiritual da música defendido pela tradição grega. Na passagem conhecida como Sonho de Cipião, faz-nos ouvir a harmonia sublime do cosmo, evidenciando a mistura mística entre música e astronomia. (Cerqueira, 2019, p. 153)

Dessa forma, entendemos que Orfeu, uma vez que aparece no texto de Proclo como a origem desses conhecimentos musicais, seria o detentor dessa música ideal e que por sua transmissão teria permitido a Platão tecer a defesa que faz da superioridade da música mais antiga, quando comparada à música alterada, por exemplo, por Timóteo de Mileto.29 Nesse sentido é como se, por meio da filosofia de Platão, fosse possível acessar a música divina de Orfeu. Mas, é evidente que Proclo não está preocupado em caracterizar a música em suas nuances técnicas. Basta a ele a afirmação de que a música de Apolo rege o movimento e a ordenação dos corpos celestes.30 Orfeu aparece apenas como guardião dessas informações. Nenhum de seus feitos musicais míticos é narrado.

Em VI, 13 Proclo lembra outra vez a proteção de Zeus feita pelos Curetes e reforça a ideia mística da música produzida pelos sons de suas armas com poder invocatório. Ainda aqui Orfeu aparece ao lado de Platão na confirmação dessas informações.

Καὶ τούτων ἐναργέστερον μὲν ἡ τοῦ Ὀρφέως μυστικὴ παράδοσις διαμνημονεύει· πειθόμενος δὲ ταῖς τελεταῖς ὁ Πλάτων καὶ τοῖς περὶ αὐτὰς δρωμένοις ἐνδείκνυται περὶ αὐτῶν, ἐν μὲν τοῖς Νόμοις τῆς ἐκ Κορυβάντων καταυλήσεως ἡμᾶς ἀναμινῄσκων τῆς πᾶν τὸ ἄτακτον καὶ θορυβῶδες κίνημα καταστελλούσης, ἐν δὲ τῷ Εὐθυδήμῳ τοῦ θρονισμοῦ μεμνημένος ὃν ἐν τοῖς Κορυβαντικοῖς ἐπετέλουν· ὥσπερ δὴ καὶ ἐν ἄλλοις τῆς Κουρητικῆς ἐπεμνήσθη τάξεως, Κουρήτων τε ἐνόπλια παίγνια λέγων, ἐπεὶ καὶ περιεστάναι λέγονται τὸν τῶν ὅλων δημιουργὸν καὶ περιχορεύειν ἀπὸ τῆς Ῥέας ἀναφανέντες.

E desses deuses a tradição da doutrina misteriosa de Orfeu menciona mais claramente; Platão, por outro lado, de acordo com as iniciações e ritos realizados durante essas iniciações, fornece apenas indicações sobre esses deuses, recorrendo à nossa memória sobre as Leis o “encantamento” que vem dos Coribantes e que reprime todo o movimento desordenado e tumultuoso, e no Eutidemo, mencionando o rito de “entronização” realizado nos ritos Coribânticos; do mesmo modo em outros lugares, ele mencionou o ordenamento coribântico, quando fala dos “jogos de armas dos Curetes”: na verdade, dizem que eles cercavam o Demiurgo e dançavam em círculos ao seu redor e esses sons fizeram aparecer Reia.31

De forma geral os livros relacionam sempre Orfeu às figuras de Zeus, Apolo, Reia, Adrasteia e aos Curetes. Muitas vezes Proclo afirma que algo foi dito por Platão e também, antes dele, por Orfeu. Afirma que toda a teologia grega deriva da doutrina místico-órfica. Para Proclo, todos os feitos míticos de Orfeu, característicos das narrações sobre ele registradas na Antiguidade, são menos importantes do que sua classificação como profeta, iniciador de uma religião. No entanto, a musicalidade órfica está presente, por exemplo, na afirmação da existência de uma música cósmica capaz de regular a harmonia universal (VI, 12, 61, 25) e na forma “órfica” pela qual Sócrates se pronuncia em IV, 17, 52. 22-26.

A referência recorrente a Platão e Orfeu para a confirmação das verdades religiosas presentes na Teologia Platônica parece estar associada ao princípio de παλαιὸς λόγος por meio do qual o próprio Platão se refere aos conhecimentos órficos em suas obras.32 A antiguidade de um autor confere maior autoridade a suas afirmações. No caso de Proclo, há que se levar em conta ainda sua relação bastante próxima com a religião. Assim, Orfeu não seria só um autor mais antigo, mas sim um profeta, ao mesmo tempo que um ser divino. Além disso a época de Proclo é também “o período em que os filósofos neoplatônicos se apropriam dos poemas de Orfeu e os submetem a uma análise distorcida para demonstrar que na poesia órfica estava já in nuce toda a filosofia platônica.” (Bernabé, 2002, p. 77).

A apresentação de um Orfeu autor, profeta e guardião dos conhecimentos iniciáticos, mas isento da carga mítica de seus feitos, pode ser explicada por uma característica própria dos filósofos neoplatônicos. Os deuses mitológicos e do culto popular, se vistos corretamente, coincidiam com as entidades metafísicas abstratas que constituíam a elaborada estrutura da metafísica neoplatônica, fazendo com que a filosofia significasse o culto aos deuses. Para fazer com que os deuses tradicionais se encaixassem em sua filosofia, os neoplatonistas tardios precisaram extrair a parte humana dos deuses. Todas aquelas histórias sobre ciúmes, deuses e deusas impetuosos amando e lutando uns contra os outros foram explicados (Berg, 2001, p. 4).

Nos comentários de Proclo ao Timeu e ao Parmênides de Platão, ocorre exatamente o mesmo que na Teologia Platônica, evidenciando o lugar de Orfeu como fonte dos conhecimentos mistéricos e da transmissão dos fundamentos aos filósofos. Seguindo a afirmação de Berg, entendemos que ocorre o mesmo com Orfeu, em toda a obra de Proclo. Em nenhuma das obras o músico mítico trácio é descrito, e não há qualquer menção a seus feitos tal como aparecem nas versões míticas antigas.33 Apolo e Orfeu tocam sua música num caminho ideal. Apolo, despido de suas aventuras e de sua forma humana, é evocado como entidade que governa a harmonia primordial. O músico trácio é tratado como personagem real, autor, poeta e profeta.

Os hinos órficos e a música de Orfeu em Proclo

Alinhado com a tradição do Orfeu autor e profeta está outro intrigante conjunto de escritos proclianos. Trata-se dos sete hinos órficos que chegaram até nós. Cada um deles permite uma diversidade de interpretações, considerando a carga simbólica alinhada ao orfismo, identificado pelas múltiplas divindades às quais cada hino remete. Para Berg (2001) os hinos órficos estão intimamente ligados à filosofia de Proclo. É como se o fazer filosófico se desse, em sua essência, ao cantar hinos aos deuses. É possível identificar nos hinos fragmentos da concepção cosmogônica de Proclo e sua divisão de deuses maiores e menores evidenciada em sua Teologia Platônica e em Elementos da Teologia.

Além disso, o estudo dos hinos pode revelar evidências da relação dos textos de Proclo com a teurgia, percebida pela relação do simbolismo do conteúdo com os princípios e práticas teúrgicas. É como se os hinos pudessem revelar a teurgia em ação. Emergem dos hinos, ainda, dois níveis de teurgia, uma mais elevada, ligada à elevação da alma humana, e outra, de certa forma inferior, uma vez que dedicada a bens terrenos, como a busca da saúde e da prosperidade (Berg, 2001, p. 10). No que diz respeito aos próprios hinos de Proclo, foi observado mais de uma vez que seu tema principal é o da ascensão e, portanto, a reversão da alma em direção ao mundo inteligível. Assim, o hino I é dedicado a Hélio enquanto divindade relacionada à purificação da alma; o hino II é dedicado a Afrodite e seu poder sobre as setas de Eros, responsáveis pela ἀναγώγια κέντρα (II, 5). O terceiro hino tem como tema as Musas às quais Proclo clama como ἀναγώγιον φῶς. Aos deuses do quarto hino é pedido que animem a almas humanas com ἀναγώγιον πῦρ. Esse talvez seja o mais enigmático dos sete hinos, visto que as divindades não são citadas nominalmente, e assim, não é possível saber com certeza a quais deuses se refere. O hino V também é direcionado a Afrodite, para que eleve a alma de Proclo, enquanto o hino VI é dedicado a Hécate e Ianus-Zeus.34 Finalmente, no hino VII, Proclo clama a Atena que o guie para as benesses do Olimpo.

Como vemos, os hinos tratam, de maneira geral, de deuses relacionados à elevação da alma e a ritos iniciáticos. Orfeu não é citado. Segundo Berg (2001, p. 5), possivelmente Proclo compôs ainda outros hinos, mas que se perderam na cadeia de transmissão.35 Mesmo os hinos que restaram não chegaram completos. De acordo com o pesquisador, os hinos se pretendem obra realizada por inspiração divina. Assim, é como se Proclo assumisse, ele mesmo, um lugar na linha sucessória de guardiões e intérpretes dos mistérios órficos.36

De acordo com Sheppard (1984), é possível verificar mais uma evidência dessa relação mais direta de Proclo com a teurgia e feitos mágicos no comentário de Damáscio ao Fédon de Platão. Jâmblico, Siriano e Proclo são apresentados como filósofos que relacionaram a teurgia à filosofia como caminho para a elevação da alma e sua união com os deuses. A relação mostrada por Sheppard entre filosofia e teurgia representaria o culto neoplatônico do divino. Berg (2001) destaca que os antigos em geral cultuavam os deuses, pois acreditavam que as divindades podiam causar males se fossem negligenciadas, acreditavam que o culto na forma de oferendas e hinos podiam torná-los mais favoráveis.

Os neoplatônicos redefiniram a essência do culto de acordo com os objetivos de sua ética: tentando tornar-se como os deuses o máximo possível. Porfírio, por exemplo, admoesta a que não tentemos homenagear os deuses maiores com coisas sensíveis, tais como palavras ou queimar oferendas nos altares. Devíamos oferecer aos deuses nossa própria elevação como algo sagrado. Ao tentar nos unir a eles, nos tornaríamos como eles.37 Porém, ainda segundo Porfírio, as divindades menores poderiam ser homenageadas com hinos compostos por palavras (τὴν ἐκ τοῦ λόγου ὑμνῳδίαν). Proclo se expressa no mesmo sentido em Chal. Phil. Fr. 2: “Nosso hino ao Pai (ὕμνος τοῦ Πατρός) não deve consistir em palavras, nem em ritos, mas em se tentando tornar como ele (τὴν εἰς αὐτὸν ἐξομοίωσιν).”

De acordo com Devlin (2015), a narrativa dos hinos está em consonância com a doutrina neoplatônica de Proclo, com recurso a interpretações alegorizantes dos mitos e seu uso imagético filosófico em consonância com textos moralizantes. O tema principal dos hinos de Proclo parece ser a elevação (ἀναγωγή) e, consequentemente, a reversão da alma em direção ao mundo inteligível (Berg, 2001, p. 22). Seus Hinos Órficos não trazem a figura de Orfeu. No entanto, é possível identificar temas que remetem ao orfismo e podem ser encontrados também na Teologia Platônica. “A literatura órfica é um gênero literário que abarca características de um conteúdo teoantropogônico e com seu objeto voltado para a salvação das almas, na soteriologia.”38 De acordo com Bernabé (2002) existem duas temáticas predominantes nos hinos órficos em geral. O primeiro grupo engloba poemas cosmogônicos e teogônicos. Compõem o grupo que remete à ἀρχή. O segundo reúne as obras cujo tema pode ser classificado como τέλος, a finalidade da vida humana voltada à salvação da alma. Os hinos de Proclo trazem temas pertencentes aos dois grupos, porém, na maior parte do conteúdo predomina a ἀρχή.

Em outras obras Proclo defende a ideia de que a filosofia em si é um tipo de hino, caracterizando o principal meio para a metempsicose. Em seu In RP. I 57, 11-16, por exemplo, o filósofo tardo-antigo afirma que, pautado na obra Fédon de Platão, a filosofia é a maior das artes musicais. Assim, seria por meio da filosofia, em seu viés musical, que a alma humana adquiriria a capacidade de “imitar o líder das Musas” (Apolo) e se conectar ao cosmos, ordenado e mantido por essa divindade dentro de uma harmonia cósmica, tal como Proclo sugere no primeiro hino. É como se para Proclo a filosofia humana fosse uma imitação dos hinos de Apolo (Berg, 2001, p. 23).

Dos sete hinos órficos de Proclo, o hino ΙΙΙ (ΕΙΣ ΜΟΥΣΑΣ) parece ser o que tem maior proximidade com elementos musicais que poderiam, ainda que indiretamente, estar ligados a Orfeu. O tema dos versos é a invocação das Musas para que, no mundo, ajudem as almas caídas e que intervenham na ajuda à própria alma de Proclo. Como mostramos acima, nenhum dos sete hinos menciona o músico mítico, mas, ao tratar das Musas, Proclo pode remeter à harmonia universal explicada por ele na Teologia Platônica (VI, 12, 59). A música cósmica se origina em Zeus (demiurgo universal) e é mantida e regida por Apolo.39 Todo tipo de música, portanto, chega ao mundo sensível por meio de Apolo e das Musas.

Uma questão com a qual os neoplatônicos tinham de lidar era como a música desce dos níveis mais elevados (música apolínea) até as manifestações musicais no mundo sensível. Do ponto de vista cosmológico a derivação musical a partir de sua origem cósmica é entendida em termos neoplatônicos como “processional”, derivada do Uno. Do ponto de vista poético e estético, os diferentes níveis de música como arte e em relação à educação humana, essa derivação é explicada como “inspiração” das Musas. Em ambos os casos, música e harmonia revelam a “conexão ininterrupta”40 entre as realidades derivadas e os princípios universais. “A direção descendente corresponde à inspiração divina, que é correlacionada a uma força ascendente de aspiração rumo ao divino.” (Tornese, 2010, p. 15).

Essa ligação da música com a ascensão da alma é representada, por exemplo, pelo mito de Er, que aparece na República (X, 617b4-7) de Platão, no qual um soldado morto em combate volta à vida e narra a disposição e o movimento dos astros, conforme sua alma viaja rumo aos níveis mais elevados das órbitas, destinados às almas merecedoras. Essa interpretação do fenômeno musical de matriz pitagórica vai ecoar entre os círculos intelectuais neoplatônicos até a Antiguidade Tardia, como testemunha a retomada da doutrina exposta por Cícero, três séculos mais tarde, por Jâmblico (c. 240-c. 325 d.C.), na Vida de Pitágoras (66-67), e, no primeiro quartel do séc. V, por Macróbio, em seu Comentários ao Sonho de Cipião (2, 3, 1-11). A temática pitagórica da “harmonia das esferas” permanece presente (Cerqueira, 2019, p. 154).

Segundo Berg (2001), ao invocar as Musas em seu hino III, Proclo talvez busque a ascensão de sua alma por meio dessa música universal. Tornese (2010, p. 181) lembra que Proclo afirma serem as nove Musas uma representação da perfeição cósmica, cuja harmonia musical remete ao número nove, visto que, em sua concepção estética de harmonia, pautada naquela definida por Platão, o número nove representa a proporção musical perfeita (um intervalo de quinta seguido de uma quarta). Segundo Devlin (2015, p. 183), há que se observar no hino III o papel da súplica alinhada à doutrina procliana, que deixa transparecer mais uma vez a ideia de elevação da alma por meio dos mistérios contidos na filosofia.

Portanto, ao olharmos para o segundo verso do hino III, percebemos que o filósofo afirma serem nove as Musas (ἐννέα θυγατέρας μεγάλου Διὸς ἀγλαοφώνους). Ao relacioná-las a Zeus, demiurgo universal, origem da harmonia que rege todas as coisas, seria como se o autor remetesse a essa ordenação musical, da qual faz parte Orfeu, de acordo com as definições de Proclo, no caminho descendente de Zeus, para Apolo e Hermes.41 Seria Orfeu que finalmente a transmite aos filósofos, que, por sua vez, são também inspirados pelas Musas. Assim, a música que permite o transe e a ascensão das almas por meio dos hinos teria em Orfeu seu elo com a harmonia universal.

Proclo se constitui assim em uma fonte importante para vislumbrarmos uma expressão neoplatônica da recepção, na Antiguidade Tardia, da música grega e sentidos a ela associados, indicando ainda como o neoplatonismo tardio foi um canal importante de leitura e recriação de tradições intelectuais e espirituais concernentes ao valor moral da música.

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Notas

1 Segundo Wear (2011, p. 1), pouco se sabe sobre sua vida. Sabe-se que Siriano sucedeu Plutarco de Atenas, que foi cabeça da academia platônica de Atenas de 432 a 437, e que dentre seus alunos mais destacados está Proclo. Sendo assim, este último se tornou também uma das fontes mais importantes acerca do pensamento e das obras de seu mestre.
2 Proclo não cita nominalmente Siriano nesses textos, o que encontramos são referências a um seu guia ou mestre, de quem fala com demonstrações de grande respeito e admiração. Na Teologia Platônica (I, 1, 5-7) o filósofo invoca ajuda divina, lista filósofos anteriores a ele como iniciados e finaliza com a citação de seu mestre, novamente sem nomeá-lo. Péricles, Plotino, Amélio, Porfírio, Jâmblico e Teodoro são dados como iniciados nos mistérios órficos. Antes de listá-los, atribui a Platão, que teria aprendido de Sócrates o conhecimento divino presente na filosofia platônica, e que, por sua vez, teria como fonte o próprio Orfeu. Uma tradução do encomium do Comentário a Parmênides para o português está em Bal (2010, p. 9).
3 Para um estudo acerca da concepção de Orfeu como autor e fonte dos mistérios divinos ver Laks; Most, 1997.
4 Sobre a teologia órfica, desde o século XIX, fragmentos de folhas de ouro com instruções para os iniciados nos mistérios órficos têm sido encontrados na Magna Grécia, Creta e outras partes do mundo grego, constituindo importantes evidências dessa antiga religião, bem como da importância de sua transmissão. Sobre esse tema ver, por exemplo, Bernabé et al., 2008. E ainda Edmonds, 2011.
5 Para as diversas versões da morte de Orfeu, bem como para discussões sobre as dúvidas quanto a quem seria sua mãe cf. Grimal (2000, p. 340-1) ou ainda Hornblower; Spawforth (2012, p. 1048) e também West (1983). Proclo não menciona qualquer informação acerca da vida e dos mitos de Orfeu. Seu foco parece estar apenas no lugar de Orfeu como guardião dos mistérios iniciáticos.
6 De acordo com o Oxford Classical Dictionary (2012), Adrasteia é uma deusa personificada pela montanha que recebe seu nome e se localiza próximo a Atenas, cidade na qual o culto à deusa era realizado publicamente, de acordo com obras que datam de c. 429 a.C. Uma caverna que existe nessa montanha seria o lugar onde Zeus teria sido protegido quando criança, guardado pela deusa-montanha e também pelos curetes, caracterizados por suas armas de bronze e por sua ruidosa dança que abafava o choro de Zeus para que Cronos não o encontrasse. Em Proclo se revela um redimensionamento dessa divindade, no contexto do misticismo neoplatônico que lhe confere uma centralidade teológica, reforçando o elo com o papel dos curetes na teologia órfica tardo-antiga presente em sua obra. Mais adiante retornaremos a este tema e ao sentido de Adrasteia em tal contexto.
7 Proclo, Teologia Platônica, IV, 17, 52.
8 É o caso da Teologia Platônica, objeto deste trabalho, bem como do Comentário sobre Parmênides e Comentário sobre Timeu. Trouillard (1982, p. 11) explica que é possível perceber na filosofia de Proclo a mistagogia, destacando Orfeu como detentor dos mistérios que podem ser acessados via Platão.
9 “Nell’ambito del Neoplatonismo procliano, l’interpretazione sistematica dei dialoghi platonici è accompagnata dalla ripresa e rielaborazione della variegata tradizione religiosa pagana che si è venuta a formare nell’ambito della grecità. I miti di differenti correnti religiose, come quella tradizionale pagana o quelle di carattere iniziatico come l’Orfismo, sono rielaborati e interpretati in chiave allegorico-metafisica: le divinità della tradizione pagana greca, così, sono concepite come specifici principi e livelli metafisici in base ai quali è ordinata e articolata la realtà nel suo complesso, che risulta gerarchicamente strutturata sulla base di molteplici ordinamenti e livelli di divinità ai quali è attribuita una determinata funzione metafisica.”
10 Tradução nossa, seguindo como base a versão italiana de Abbate, 2019.
11 De acordo com Ficino, em seu Mercurio Trismegisto Pimander sive de Potestate et Sapientia Dei, Aglaofemo teria recebido diretamente de Orfeu os mistérios e os transmitido a Pitágoras. “Eum secutus Orpheus secundas antique theologie partes obtinuit; Orphei sacris initiatus est Aglaophemus; Aglaophemo successit in theologia Pythagoras, quem Philolaus sectatus est, divi Platonis nostri preceptor. Itaque una prisce theologie undique sibi consona secta ex theologis sex miro quodam ordine conflata est, exordium sumens a Mercurio, a divo Platone penitus absoluta [...]”. “[...] Seguido por Orfeu, o segundo entre os antigos teólogos. Aglaofemo foi iniciado na sacralidade de Orfeu. Aglaofemo foi sucedido na teologia por Pitágoras, de quem Filolau é seguidor, e preceptor de nosso divino Platão. Desta maneira, uma sabedoria antiga que concorda seis teólogos cuja ordem é constatada, começa em Mercúrio, e no divino Platão termina. [...]” (Tradução de Otávio Santana Vieira, 2017).
12 Berg (2001) analisa o lugar dos hinos homéricos na religião grega, bem como sua interpretação pelos filósofos neoplatônicos. Sendo assim, o pesquisador confirma o aspecto religioso que as obras de Homero e Hesíodo adquirem no contexto filosófico-religioso de Proclo. West (1983, p. 4) afirma ainda que na cultura helênica muitas vezes Orfeu é tido até mesmo como ancestral de Homero e Hesíodo. Sobre esse tema ver também Sheppard (1982), Uzdavinys (2008) e Quasten (1983).
13 Lembramos que os gregos não possuíam um livro sagrado, tal como a Bíblia para os cristãos. Assim, o mais próximo que se parece chegar de um livro considerado pelos antigos gregos como detentor de genealogias divinas mais aceitas, segundo West (1983) seria a Teogonia, de Hesíodo. Ainda segundo o pesquisador, toda a tradição literária, definida como órfica, de obras que se pretendem inspiradas por forças divinas em sua concepção, mostram a busca pelo registro dos preceitos religiosos. No meio dessa busca está a identificação com a filosofia como uma das formas de interpretação e revelação dos mistérios.
14 A importância da figura dos poetas na sociedade grega, de uma forma geral, é percebida também no contexto educacional e político. “Na época dos pré-socráticos, a função de guia da educação nacional estava indiscutivelmente reservada aos poetas, a quem se associavam o legislador e o homem de Estado.” (Jaeger, 2013, p. 190).
15 O silêncio é também entendido como um elemento musical. Não só na teoria musical da Grécia Antiga como também no contexto religioso, a música cósmica tem o silêncio como uma de suas características. Para uma explicação mais completa sobre o silêncio musical, ver Heyning (2017).
16 Os hinos órficos de Proclo, como veremos adiante, evidenciam a relação de Zeus com a origem do universo, dentro da teologia procliana. É o deus supremo, identificado como Demiurgo Universal. Bernabé (2002) afirma que dentre os conteúdos característicos das obras classificadas como órficas está a ordenação das divindades e o destaque, no contexto neoplatônico, para Zeus como origem e fim de todas as coisas.
17 De acordo com Abatte (2019, p. 1091), os Curetes são divindades que, segundo a tradição, teriam levado Zeus a Creta. A referência a eles como ἀμείλικτος seria mais uma referência tirada dos Oráculos Caldeus (frag. 35 e 36). Grimal (2000, p. 107) afirma que foram os Curetes que cuidaram de Zeus durante a infância do deus em Creta. No entanto, “há tradições muitíssimo diferentes a respeito de sua origem. Na maior parte dos casos são identificados como filhos de Combe e Soco. De acordo com esta versão seriam provenientes da Eubeia e seriam sete. Sua mãe, Combe, é conhecida também como Cálcis, pois teria inventado as armas de bronze (χαλχός), e por isso os Curetes seriam conhecidos por sua dança, citada por Proclo, na qual faziam colidir suas armas, lanças contra escudos. A versão do mito à qual Proclo parece se referir seria a de quando Reia, ao dar à luz Zeus, numa gruta do Ida de Creta, confiou-o à ninfa Amalteia. Mas, para que a criança ao chorar não revelasse sua presença a Cronos, que queria devorá-la, pediu que os Curetes realizassem sua dança ao redor do pequeno deus para que o som de suas ruidosas armas abafasse o choro. Encontramos ainda, no Oxford Classical Dictionary (p. 398), a relação dos Curetes com ritos iniciáticos, dos quais faria parte sua referida dança armada.
18 Segundo Krausz (2007), os poetas no período arcaico e clássico eram tidos como guardiões da verdade transmitida pelas Musas. Assim, obras como Ilíada e Odisseia podiam ser interpretadas como obras de conteúdo também teológico. Edmonds III (2013) afirma que no período tardio Orfeu é considerado autor de versos que transmitem uma verdade mítica relacionada aos mistérios iniciáticos e, dessa forma, também era atribuído conhecimento teológico, por extensão, a diversos poetas, um vez que, ligados às Musas e a Orfeu, são guiados por dons divinos ao cantar.
19 “Di che natura dunque sia questo grandissimo dio, e di quali beni sia principio causale per le anime e prima di queste per i sovrani delle anime, dèi e demoni, deve risultare chiaro da queste considerazioni. Inoltre, dato che i teologi affermano che a questo ordinamento si addice il non essere soggetto a vecchiaia, come dicono non solo i teologi barbari ma anche il teologo dei greci, Orfeo (ed infatti egli afferma in modo mistico che i peli del viso di Crono sono sempre neri e che non diventano mai in nessun modo grigi), ho ammirazione per l’intelletto divinamente ispirato di Platone che rivela a proposito di questo dio le stesse cose rivelate da coloro che procedono sulle orme di Orfeo. Infatti Platone afferma che nel periodo ciclico di Crono le anime si liberano della vecchiezza, mentre si rivolgono verso la giovinezza, e si sbarazzano della loro canizie, mentre mantengono i capelli neri. Infatti dice Platone: ‘i capelli bianchi dei più vecchi diventavano neri, e le guance di coloro che avevano la barba, divenendo lisce, riportavano alla giovinezza trascorsa’. Queste le parole dello Straniero di Elea, mentre Orfeo, dal canto suo, fornisce riguardo al dio indicazioni specifiche simili a queste: ‘<……> sotto il regno di Zeus figlio di Crono hanno ricevuto in sorte età immortale; <non> i folti peli, umidi di profumo, della barba nera né <quelli della testa> si sono mescolati al bianco fiore della debole <vecchiaia>, ma <hanno sulle tempie> 121 una florida peluria’.”
20 “D’altra parte dopo aver posto termine alle trattazioni concernenti il Re degli intellettivi, dovremo, a mio avviso, subito di seguito celebrare la dea Rea. Infatti, che questa sia appunto madre del Demiurgo dell’universo nella sua totalità, e d’altra parte sia una divinità inferiore a Crono, lo dicono sia Platone che Orfeo.”
21 “D’altra parte dopo aver posto termine alle trattazioni concernenti il Re degli intellettivi, dovremo, a mio avviso, subito di seguito celebrare la dea Rea. Infatti, che questa sia appunto madre del Demiurgo dell’universo nella sua totalità, e d’altra parte sia una divinità inferiore a Crono, lo dicono sia Platone che Orfeo.”
22 O estrangeiro de Atenas, ao qual Proclo se refere, seria o protagonista das Leis de Platão e não é nomeado. Os outros dois interlocutores do ateniense na obra platônica são Clínias de Creta e Megilo de Esparta, estes, então, identificados por Platão em sua obra. Em Leis VII (796 B), a dança dos Curetes é mencionada pelo estrangeiro de Atenas quando compara certos tipos de dança e canto. Provavelmente é a esta passagem que Proclo se refere em V, 35.
23 “Ebbene, questo ordinamento curetico non lo hanno conosciuto solo Orfeo e i teologi anteriori a Platone e, avendolo conosciuto, lo hanno reso oggetto di culto, ma anche lo Straniero di Atene lo ha celebrato nelle Leggi: infatti dice che i ‘giochi in armi dei Cureti’ a Creta sono modelli originari di tutto il movimento ben cadenzato.
24 “E questi aspetti lo Straniero di Atene li ha messi in luce nelle affermazioni precedentemente riportate; Orfeo, dal canto suo, riferisce tali aspetti, anche in modo esplicito, al Demiurgo universale. Infatti afferma che la Giustizia universale segue il Demiurgo che regna già sul Tutto e incomincia a dargli ordine: ‘Al suo seguito veniva Giustizia, severa punitrice, che di tutti è soccorritrice.’ E proprio a proposito del fatto che <il Demiurgo> comprende in se stesso principi, parti intermedie e fini della totalità delle cose, il Teologo dice oltre a ciò: ‘Zeus principio, Zeus ciò che sta in mezzo, tutte le cose sono nate da Zeus.’

E a mio parere è guardando a tutta quanta la teologia greca, ed in particolare alla dottrina misterica Orfica, che Platone ha proclamato: ‘l’antico discorso’ dice che ‘il dio possiede principio, parti intermedie e fine di tutti quanti gli enti, in quanto conduce diritte a compimento tutte le cose, compiendo la sua rotazione secondo natura’, ed ha ‘Giustizia’ come compagna, attraverso la quale tutto ciò che si è allontanato dal governo paterno di Zeus si converte verso esso ed ottiene il compimento che gli si addice.”

25 “Questa pertanto la triade che Platone, come anche Orfeo, chiama sì con un unico nome, ma indicando in certo modo anche la molteplicità delle potenze insite in essa. In effetti tutta quanta la teologia dei greci denomina ‘Corica’ la seconda forma di generazione di vita e la congiunge alla fonte universale generatrice di vita ed afferma che deve la sua sussistenza a questa fonte ed agisce insieme a quest’ultima.”
26 “Per prima cosa prendiamo in considerazione in che modo anche Platone, come Orfeo, identifichi in certo modo il Sole con Apollo e come egli onori la comunanza tra questi dèi. In effetti Orfeo lo afferma esplicitamente, e per tutta, per così dire, la sua poesia; dal canto suo lo Straniero di Atene lo esprime attraverso l’unificazione di questi dèi, quando propone di costruire un tempio comune per Apollo e per il Sole, ed ora fa menzione dei due dèi insieme, ora invece solo di uno dei due, come se essi sussistessero in base ad un’unica unità.”
27 A teoria da música cósmica é herdada de uma longa tradição dentro dos tratados teórico-musicais e está sempre relacionada com a regência musical do universo. Atribui-se aos pitagóricos a versão mais difundida no ocidente, visto que, de acordo com Crocker (1963, p. 189), parte dos estudiosos acredita que Pitágoras (VI a.C.) desenvolveu a teoria da música cósmica a partir do contato com versões anteriores, oriundas do Egito e da Babilônia. “De acordo com Pitágoras, todos os planetas se movem em volta da Terra com velocidades constantes, seguindo em órbitas que obedecem às mesmas relações numéricas de uma escala musical e emitindo sons” (Proust, 2009, p. 358).
28 “Inoltre la seconda e terza monade hanno prodotto un vigore attivo, un’azione produttiva demiurgica rivolta alla totalità dell’universo ed un’attività perfetta, in base alla quale esse da un lato danno ordine a tutto il sensibile, dall’altro bandiscono dal Tutto ciò che è indeterminato e disordinato; e l’una è analoga all’azione esercitata sulla totalità dell’universo attraverso la musica ed alla cura provvidenziale armonica sugli esseri soggetti a movimento, l’altra, dal canto suo, è analoga alla <potenza> annientatrice di tutto il disordine e del tumulto che si oppone alla forma e all’opera di ordinamento dell’universo nella sua totalità.”
29 Timóteo de Mileto, segundo consta nas fontes antigas, teria acrescentado cordas à lira e desenvolvido um novo estilo musical com mais notas e ritmos diferentes. Tais inovações, criticadas por diversos autores antigos, teriam levado inclusive à sua expulsão de Esparta, visto que sua música perverteria a moral dos jovens devido ao afastamento em relação às características mais simples da música divina primeva (Rocha, 2011, p. 230). Outro exemplo que pode mostrar o impacto negativo dessas inovações de Timóteo de Mileto é o tratado tardo-antigo de Boécio, no qual o autor traz em seu De Intitutione Musica (I, 1, 182) a referida lei espartana, reproduzida em grego, para evidenciar o episódio. Encontramos fortes invectivas morais em relação à música nesse autor, bem como no De Musica de Santo Agostinho e ainda no De Musica de Cassiodoro. Os três autores latinos utilizam Platão como referência de auctoritas para a caracterização moral da música.
30 A bibliografia acerca da música cósmica é vasta. Seus conceitos foram transmitidos, de acordo com Cohen (2010), até pelo menos o início do século XX, passando, com destacada importância, pelo Renascimento e pela Idade Moderna, mostrando grande relevância até mesmo para as teorias de Kepler e Galileu Galilei, por exemplo. Sobre a teoria da música cósmica, seu desenvolvimento da Antiguidade até o século XX veja Rogers, 2016, p. 41-8, e Proust, 2009, p. 358-67. Moutsopoulos (2004) apresenta como a música cósmica aparece especificamente na obra de Platão. Sobre a harmonia universal ver também Prins; Vanhaelen, 2017 e Hicks, 2017.
31 “E di questi dèi la tradizione della dottrina misterica di Orfeo fa menzione in modo più chiaro; Platone invece, prestando fede alle iniziazioni ed ai riti che vengono compiuti durante queste iniziazioni, fornisce solo indicazioni riguardo a questi dèi, richiamando alla nostra memoria nelle Leggi ‘l’incantamento’ che viene dai Coribanti e che reprime tutto il movimento disordinato e tumultuoso, e nell’Eutidemo facendo menzione del rito dell’‘intronizzazione’ che si compiva nei riti Coribantici; allo stesso modo anche altrove ha fatto menzione dell’ordinamento Coribantico, quando parla dei ‘giochi in armi dei Cureti’: in effetti si dice che essi circondino il Demiurgo del Tutto e danzino in cerchio intorno a lui, una volta che essi sono stati fatti apparire da Rea.”
32 Bernabé, 2002, p. 61-78.
33 A única informação oferecida por Proclo acerca do Orfeu mítico parece estar no In Tim. III 168, 9-15, onde afirma que a Musa Calíope revelou a ciência dos deuses a seu filho Orfeu.
34 Embora sejam identificados dois deuses nesse hino, Berg (2001, p. 252) defende que no verso 1 Proclo invoca Reia (mãe dos deuses). Enquanto os estudiosos identificam Hécate como sendo a mãe dos deuses, Berg atenta para os diferentes lugares que estas divindades ocupam na Teologia Platônica e que permitiriam pensar em três divindades nesse hino (Reia, Hécate e Ianus-Zeus) ao invés de duas.
35 É possível encontrar referências aos outros hinos de Proclo, por exemplo, em Vita Procli, de Marinus, de acordo com o qual Proclo teria composto hinos a divindades como Marnas de Gaza, Asclépio Leontuchos de Ascalon, Tiandrites e Isis. Há ainda relatos no De Mensibus, de João da Lídia, e também citações de hinos proclianos em Olimpiodoro (Berg, 2001, p. 5).
36 Majercik (1989, p. 30), por exemplo, afirma que Marino (Vita Procli, 28; cf. fr. 208) narra a habilidade de Proclo no trato com objetos mágicos, especialmente com as rodas mágicas – ou Iynx –, e que em certa ocasião fez até mesmo chover por meio da manipulação de um desses instrumentos na Ática, pondo fim a um longo período de seca. Esse tipo de relato evidenciaria o grande envolvimento de Proclo com a religiosidade apresentada por ele em sua filosofia. Berg (2001, p. 29) e West (1989, p. 4) afirmam o lugar de Proclo como uma espécie de sacerdote no contexto religioso da Academia de Atenas.
37 Os primeiros autores cristãos gregos registram o conceito de sacrifício espiritual para designar uma nova postura frente a Deus. Ao invés dos sacrifícios de sangue, os fiéis deviam oferecer outra forma de homenagem. A partir daí tem início uma discussão sobre a validade da música nos ritos cristãos. Quasten (1983, p. 62-4) afirma que a música era alvo de discussões acerca de sua validade ou não como elemento de sacrifício e meio de elevação espiritual. Teólogos cristãos gregos, como Clemente de Alexandria (150-215 d.C.), Aristides Quintiliano (séc. III) e Arnóbio de Sica (255-327 d.C.), por exemplo, tecem fortes críticas à execução musical durante a liturgia cristã, principalmente por remeter a rituais pagãos.
38 Bianchi, 1974, p. 130.
39 Ver também, Proclo, Comentários sobre a República, I.57.8; I.193.18; II.4.15 e Comentários sobre Crátilo 101-102; 174. 58 e 176.77. Moutsopoulos (2004, p. 203-6) também confirma o papel de Apolo como regente da harmonia cósmica, criada pelo Demiurgo, que Proclo especifica ser Zeus. As Musas, de acordo com o pesquisador, recebem de Apolo o encargo de auxiliar na transição da música dos níveis mais elevados até o nível humano. A representação da harmonia universal seria materializada pelos três intervalos pitagóricos tidos como perfeitos: a oitava (1:2), a quinta (3:2) e a quarta (4:3). A preocupação com a estética musical em Platão, relacionada também com a educação e com a moral, evidenciam o poder da música sobre o corpo e o espírito. Assim, a crença de Proclo no poder das Musas de elevar sua alma e a referência a Apolo no hino III teriam relação com essa ordenação musical.
40 Proclo, Comentários sobre a República (I. 178.20).
41 Proclus, Commentaire sur la République, I.177.14-178.5.
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