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ÉROS PEDERÁSTICO, ELEGIA GREGA ARCAICA: SÓLON E SIMÔNIDES
PEDERASTIC EROS, ARCHAIC GREEK ELEGY: SOLON AND SIMONIDES
ÉROS PEDERÁSTICO, ELEGIA GREGA ARCAICA: SÓLON E SIMÔNIDES
Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 34, núm. 2, pp. 1-18, 2021
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos
Recepción: 15 Marzo 2021
Aprobación: 05 Mayo 2021
Resumo: Este artigo discute os poemas explicitamente homoeróticos de Sólon (frs. 23, 24 e 25) e Simônides (frs. 21, 22), a fim de identificar como se dá a representação da pederastia na elegia grega arcaica.
Palavras-chave: elegia, Sólon, Simônides, homoerotismo.
Abstract: The article discusses the explicitly homoerotic poems of Solon (fr. 23, 24, 25) and Simonides in order to verify how pederasty is represented in archaic Greek elegy.
Keywords: elegy, Solon, Simonides, homoeroticism.
Um dos mais antigos poetas elegíacos arcaicos, Mimnermo (meados do século VII a.C.) tem como uma de suas mais célebres composições o Fr. 1,1 no qual, tendo equiparado a vida a Afrodite – à existência erótica –, elenca os males da velhice, entre os quais, o de se tornar “detestável aos meninos e desonrado às mulheres” (ἐχθρὸς μὲν παισίν, ἀτίμαστος δὲ γυναιξίν, 9). Não se trata, ao contrário do que se dá sobretudo com os mélicos Anacreonte e Íbico, ativos em c. 550 a.C., de poeta reconhecido em especial pela poesia pederástica, mas, pela temática erótica e a perspectiva hedonista. Isso dito, note-se, no destacado verso, a especificação da exclusão do velho da arena erótica em dupla chave: homoerótica-pederástica e heteroerótica.
A pederastia, vê-se, é parte da atuação social do homem adulto. Bastante disseminada pelas póleis arcaicas, estabelece-se em relações nas quais o homem adulto é o amador (erastḗs) que seduz o éphēbos (efebo, “o que está na juventude, o jovem”) ou paîs (menino) que é o amado (erṓmenos). Os termos que o nomeiam são equivalentes na poesia pederástica, que prefere o segundo, palavra técnica para o “parceiro júnior”, afirma Kenneth J. Dover, em Greek homosexuality (1989, p. 85), “mesmo quando ele já atingiu a altura de um adulto e os pelos começaram a crescer em sua face”, o que dele faria, a rigor, um efebo.
A finalidade da relação está delineada nesses papéis firmados em faixas etárias, como realça a nomenclatura; eles regulam a participação social sancionada na pederastia, no recorte aristocrático das comunidades. Esta concerne sobretudo à paideía, formação dos jovens, conduzida pelos homens adultos que recebem, em retribuição, o prazer erótico. Em tal formação está a compreensão de valores ético-morais, como a noção de reciprocidade pressuposta na relação pederástica, que é basilar na sociedade tradicional.
Ora, se é parte da vida social, a pederastia decerto é matéria da poesia, em particular, na mélica (a lírica de fato) e na elegia simposiástica. Naquela, verifica-se a tradição do paidikón,2 a canção do homem adulto – erastés, que é o conviva no simpósio – que elogia a beleza do efebo, a fim de seduzi-lo; daí que o erómenos ou paîs kalós (“belo menino”) não raro se projeta divinizado e é nos versos nomeado e imortalizado. A beleza da canção e a fama eterna são os presentes de sedução, aos quais o destinatário deverá retribuir. Que seja contexto e matéria das canções explica-se pelo elo bem atestado entre simpósio e pederastia.3 Os efebos dele tomavam parte, a enfeitar a festa com sua juventude e beleza atraentes, e a aprender, como espectadores, um papel de suas vidas adultas, o do homem aristocrata, e o valor da amizade que liga os convivas uns aos outros, além da importância das relações interpessoais.
A mélica arcaica do paidikón foi referencial para a poesia pederástica helenística, na tradição dos temas “da loucura ardente do desejo e em sua brincadeira; do fugaz esplendor do amado, à medida que a idade adulta se assenta, roubando os charmes de menino; dos meninos caprichosos ou que não retribuem a sedução” (Percy, 1996, p. 189). No que indicam os limitados corpora mélicos, a dimensão erótica da pederastia prevaleceu. Rara exceção seria uma canção de Alceu (Fr. 366 Voigt), entendida como paidikón pela quase formular expressão vocativa ao menino (ô phíle paî):
⊗ Οἶνος, ὦ φίλε παῖ, καὶ ἀλάθεα
Vinho, ó caro menino, e verdade ...4
O que se destaca nesse parco verso é a dimensão paidêutica da pederastia, na forma de expressão proverbial à época do poeta ou assim recebida posteriormente. Se no paidikón o menino é reiteradamente nomeado, na elegia, é no mais das vezes evocado como paîs. E se a dimensão erótica é o que a mélica pederástica canta sobretudo, acentua-se na elegia a paidêutica, talvez pelo seu propósito parenético tão marcado em exortações ético-morais. Essa imagem depende da paucidade dos corpora, mas vale explorá-la, cônscios de que talvez decorra de distorção relativa à transmissão das obras. Vamos, então, a Sólon (séculos VII-VI a.C.) e Simônides (séculos VI-V a.C.), pois de outros elegíacos, exceção feita a Teógnis (fim do século VI a.C.) e seu volumoso corpus,5 temos não mais do que testemunho de que praticaram poesia pederástica.6
Sólon
Começamos pelo Fr. 23,7 centrado na definição do ólbios, do homem próspero e feliz, um tema recorrente na poesia arcaica:
ὄλβιος, ὧι παῖδές τε φίλοι καὶ μώνυχες ἵπποι
καὶ κύνες ἀγρευταὶ καὶ ξένος ἀλλοδαπός.8
Feliz quem tem meninos queridos e cavalos unicascos
e cães caçadores e hóspede em terra alheia.9
Em nota à sua tradução, Douglas E. Gerber (1999, p. 145) observa que “é mais provável o sentido pederástico” da expressão do verso 1, paîdes ... phíloi, do que o entendimento “filhos queridos”, dada a consolidada conjunção dos termos no vocativo ō̂ phíle paî, de caráter formular, vista no Fr. 366 de Alceu. Como afirmam Maria Noussia e Marco Fantuzzi, em Solone (2001, p. 298), é um procedimento estilístico comum da poesia grega arcaica e clássica a construção de um dístico que, no primeiro verso, enuncia em frase nominal as condicionantes da felicidade e, no segundo verso, apõe uma oração relativa que desenvolve e especifica as razões desta. Nela, acha-se a síntese dos “ideais aristocráticos de vida”, anotam (id., p. 297): os meninos amados – o érōs pederástico sempre, “que na Grécia teve uma difusão excepcional e representou um dos mais marcantes traços da aristocracia”; os cavalos de cascos não-fendidos (mṓnoukhes),10 que pressupõem “um padrão alto de riqueza fundiária”; os cães que caçam; um amigo em terra estrangeira – o xénos com quem se firmou, no âmbito da tradicional hospitalidade (xenía), uma relação de amizade imersa no ideal aristocrático da reciprocidade, enlace permanente entre famílias.11 Bruno Gentili e Carmine Catenacci, em Polinnia (2007, p. 37), leem na definição do ólbios do Fr. 23 de Sólon o indivíduo “que sabe gozar os prazeres naturais da vida”, em perspectiva centrada na aristocracia, tanto pela enunciação da pederastia – “ponto sólido da ideologia da vida aristocrática” (Noussia; Fantuzzi, 2001, p. 297) –, como pelas demais atividades e relação de amizade. Essa perspectiva teria uma consequência política na atuação de Sólon como arconte em Atenas (594/3 a.C.), se William A. Percy III, em Pederasty and pedagogy in archaic Greece (1996, p. 178), acerta ao julgar que o legislador “pode ter fundado os primeiros ginásios atenienses para manter os hoplitas [soldados em armas] em forma, e para treinar seus eromenoi” – os meninos ou efebos amados – “a serem bons cidadãos e guerreiros”; e suas leis teriam regulado práticas pederásticas (id., p. 177).12
Considerando o Fr. 23, Gentili e Catenacci (2007, p. 37), tal qual Gerber (1999, p. 145) e outros,13 entendem, portanto, o adjetivo phíloi como qualificativo de paîdes, que não se estende aos demais substantivos do dístico, e tomam paîdes ... phíloi como referência à pederastia.14 Francesco De Martino e Onofrio Vox, em Lirica grega II (1996, p. 753), adotando a mesma leitura, percebem no fragmento o poeta “representante dos ideais aristocráticos” e voz de “insuspeitável hedonismo”: “[...] de um lado, efebos, cavalos e cães, isto é, os prazeres (e o prestígio) do amor homossexual, da hípica e da caça [...]; de outro, um ‘hóspede estrangeiro’, signo de relações econômicas-sociais também externas à comunidade citadina”, e não somente a elas interna.
A síntese não poderia ser mais precisa. O Fr. 23 estabelece a pederastia entre as “amiúde louvadas atividades da elite grega masculina”, diz Noussia-Fantuzzi, em Solon the Athenian, the poetic fragments (2010, p. 343), e decerto se destina à performance no simpósio, a mais comum para a elegia arcaica. Recorda ainda a estudiosa que a pederastia, junto à caça, “são também temas dominantes da iconografia simpótica”.
No Fr. 23, o erastḗs não dialoga com o erṓmenos para seduzi-lo ou ensinar-lhe algo, mas enuncia elementos cruciais da ideologia aristocrática, a serem inculcados nos meninos e efebos do simpósio, que tinha marcado “aspecto educacional” (Bremmer, 1990, p. 137), testemunhado em evidências de variada natureza. Similar é o caso do Fr. 24 de Sólon:
ἶσόν τοι πλουτέουσιν, ὅτωι πολὺς ἄργυρός ἐστι
καὶ χρυσὸς καὶ γῆς πυροφόρου πεδία
ἵπποι θ’ ἡμίονοί τε, καὶ ὧι μόνα ταῦτα πάρεστι,
γαστρί τε καὶ πλευραῖς καὶ ποσὶν ἁβρὰ παθεῖν,
παιδός τ’ ἠδὲ γυναικός, ἐπὴν καὶ ταῦτ’ ἀφίκηται, 5
ὥρη, σὺν δ’ ἥβη γίνεται ἁρμοδίη.
ταῦτ’ ἄφενος θνητοῖσι· τὰ γὰρ περιώσια πάντα
χρήματ’ ἔχων οὐδεὶς ἔρχεται εἰς Ἀΐδεω,
οὐδ’ ἂν ἄποινα διδοὺς θάνατον φύγοι, οὐδὲ βαρείας
νούσους, οὐδὲ κακὸν γῆρας ἐπερχόμενον. 10
Igualmente rico quem muita prata tem,
e ouro e campos de terra fértil em trigo
e cavalos e mulas, e quem só isto tem:
ao estômago, às costelas e aos pés, prazeres provar,
e quando quer que isto lhe sobrevenha, de menino ou de mulher 5
a estação, com juventude que seja conforme.
Isso é opulência aos mortais, pois tendo imensas e muitas
posses ninguém vai ao Hades,
nem pagando ricamente fugiria à morte, nem às graves
doenças, nem à vil chegada da velhice. 1015
No Fr. 23, o poeta tratou da felicidade; no Fr. 24, da riqueza, dizendo quem são os ricos (ploutéousin, 1). E indica na juventude a vivência erótica em chave dupla, pederástica e heteroerótica (paidós te ēdè gynaikós .../ hṓrē, 5-6) – como vimos no Fr. 1 (9) – como riqueza imaterial equivalente aos bens (1-3)16 que, em excesso, têm sua importância relativizada (7-10), pois não evitam o perecer de tudo.
A perspectiva, então, é a da condição humana (7-10). Parece dizer o Fr. 24 que o apego e o acúmulo, incapazes de alterar a fragilidade e a mortalidade próprias à natureza humana, valem menos do que o saber viver (4-6), que inclui o saber gozar no tempo justo – a juventude – o desejo de meninos e de mulheres. Nesse sentido, o poeta se insere em bem atestada tradição elegíaca, frisa Noussia-Fantuzzi (2010, p. 347), a qual legou não poucos exemplares de aconselhamento sobre o modo de viver. Ademais, anota a helenista (id., ibid.), no início, o prazer físico é dado como equivalente aos bens materiais em termos de “potencial de felicidade”, mas destes se ocupam mais brevemente os versos do que daquele, sendo realçada ao final a “futilidade de excessiva riqueza material” (p. 348):
O ponto mais claro de Sólon é formulado seguramente em termos negativos: a riqueza acumulada, para além do que é necessário à satisfação dos prazeres, necessidades e desejos, nada acresce à vida, porque não confere nenhum benefício à velhice, doença ou morte.
Sugerido está no Fr. 24 que a dedicação ao acúmulo faz perder de vista os prazeres, e que estes não podem ser amealhados, apenas “desfrutados instantaneamente” (Noussia-Fantuzzi, id., ibid.) na juventude. Sustenta-se o contraste entre o excesso de bens e o essencial dos prazeres, e alguma superioridade recai sobre o segundo eixo, por permitir apreciar a vida, ao contrário do primeiro, que implica labutas e preocupações.17 A afirmação do eixo dos prazeres – que envolve a companhia de meninos e mulheres – pode mesmo ser identificada à persona política apresentada por Sólon na maioria de suas elegias, de cunho político, como demonstra Assunção (2005, p.12), que observa que os bens exaltados por Sólon, adquiridos na justa medida do gozo dos prazeres, constituem “experiências gratificantes e intensas que formam uma história de vida inalienável” e opor-se-iam, assim, ao acúmulo desenfreado de bens e à ganância que formam o cerne da crítica de Sólon aos aristocratas atenienses e leva, em última instância, à ruína da cidade, como ele diz no Fr. 4 (5-16), sobretudo.
Por fim, o Fr. 25 de Sólon, que recorda canções de Anacreonte a meninos amados:
ἔσθ’ ἥβης ἐρατοῖσιν ἐπ’ ἄνθεσι παιδοφιλήσηι,
μηρῶν ἱμείρων καὶ γλυκεροῦ στόματος.
... até que nas amáveis flores da juventude ame um menino,
suas coxas desejando e a doce boca.18
Salta aos olhos de pronto o erastḗs engajado em paidophileîn, verbo-amálgama para o érōs pederástico em primeira ocorrência no Fr. 25 (paidophilḗsēi, 1), sublinha Noussia-Fantuzzi (2010, p. 341), para quem seria mesmo “um tecnicismo da linguagem erótica, e como tal, pode refletir a atenção cultural-intelectual que Sólon devotou ao fenômeno da pederastia” (p. 339). “Meninos desejar”, diz literalmente tal verbo – meninos em pleno florescer da idade adulta e “culminação da força física e marcial” (Noussia-Fantuzzi, id., ibid.),20 que move érōs, enfatiza a recorrente expressão “flores da juventude” (hḗbēs ánthesi), vista no Fr. 1 (4) de Mimnermo, e associada por Sólon ao adjetivo eratoîsin que adensa seu erotismo. A alta voltagem erótica é patente, inclusive pela combinação no verso 2 do verbo himeírein21 – para o desejar suscitado pela atratividade do objeto que os olhos apreendem – ao plural de mērós (“coxa”), recordando o mélico Fr. 407 (Page) de Anacreonte, em que o erastḗs dirige-se ao menino, pedindo-lhe suas “esguias coxas” (rhadinoùs ... mēroús, 2) por meio de forma verbal (própine, 1) tipicamente simposiástica, e do usual vocativo ō̂ phíle (2).22 A sensualidade dessa dicção ecoa forte, como no Fr. 25 de Sólon, decerto pela evocação gráfica do que nas cenas dos vasos Dover (1989, p. 98) assim descreve:
Quando a corte foi bem-sucedida, o erastés e o erómenos ficam face a face; o erastés agarra o erómenos pelo torso, abaixa a cabeça na direção do ombro do erómenos ou até abaixo dele, dobra os joelhos e pressiona seu pênis entre as coxas do erómenos, logo abaixo do escroto. [...] A palavra original e específica para esse tipo de copulação era quase seguramente diamērizein, isto é, ‘fazer ... entre as coxas’ (mēroi).23
É ao que de mais perto chegamos, na poesia que idealizava o érōs pederástico, do ato sexual que era, sintetiza Dover, em “Classical Greek attitudes to sexual behaviour” (1973, p. 66-7),
‘o mais baixo’ ingrediente numa rica e complexa relação que abarca devoção mútua, sacrifício recíproco, e o despertar da sensibilidade, da imaginação e do intelecto, não para o que a maioria de nós entende como amor sexual, mas para o desejo de um mais velho por um mais jovem sujeito masculino, e para a admiração do mais novo pelo mais velho.
No Fr. 25 de Sólon, a sensualidade é, por fim, intensificada pela referência à boca (stómatos, 2) que mais desejável se faz pelo adjetivo glykeroû; lembremos que glykýs é recorrente, na linguagem erótica tradicional, para o paladar do prazer sexual. Sua variante, glykerós, se atesta primeiro nessa elegia, para “a boca do menino [que] dá prazer ao amador” (Noussia-Fantuzzi, 2010, p. 342).24
Somados esses elementos, a helenista (id., p. 339) argumenta que o Fr. 25 é um paidikón, algo que parece inexato, uma vez que o termo tende a ser usado pelos antigos para a mélica.25 Ademais, não sabemos a quem se dirige a persona, embora a lógica leve a crer que se trata do conviva no simpósio, falando a outros convivas, na presença – que contempla e deseja? – dos jovens que não só observam o simpósio em que aprendem a ser adultos, mas adornam o evento com sua jovem beleza realçada pelo rito do coroar-se com guirlandas, aspergir perfumes e ungir com óleos olorosos.26
Mostra o Fr. 25 que a experiência sexual “não era menos integrada à relação pederástica do que sua função pedagógica na Grécia arcaica” (Noussia-Fantuzzi, 2010, p. 341). Isso ao menos da época de Sólon em diante.27
Simônides
Entendemos os Frs. 21 e 22 desse poeta da mélica e da elegia tardo-arcaicas como exemplares de poesia pederástica para o simpósio – “uma linha exegética [...] muito mais convincente” (Fuentes, 2002, p. 20)28 do que outras sugeridas.29 Isso devido à linguagem e à tradição com a qual dialogam de modo que nos parece suficientemente consistente.
Citamos o Fr. 21, os seus versos mais legíveis:
ο]ὐ δύναμαι, ψυχ[ή,] π̣εφυλαγμένος ε[ἶ]ναι ὀπηδός·
χρυσῶπιν δὲ Δί[κην ἅζ]ομαι ἀχνύ̣με̣νος,
ἐ]ξ οὗ τὰ πρώτιστ̣α̣ νεο[τρεφέ]ων ἀπὸ μηρῶ[ν 5
ἡ]μετέρης εἶδον̣ τέρματα πα[ι̣δ̣εΐης,
κ]υ̣ά̣[ν]εον δ’ ἐλεφαντίνεόν [τ’ ἀνεμί]σγετο φέ[̣γγος,
.....] δ’ ἐκ νιφάδων [..... ....(.) ἰ]δεῖν.
ἀλλ’ αἰδ]ὼ̣ς ἤρυκε, νέου δ.[..].ι[ ] ὕβριν
Não sou capaz, ó ânimo meu, de ser teu servo zeloso;
mas, afligindo-me, temo, vexado, Justiça de áurea face,
desde que primeiro ... das coxas recém-nutridas 5
vi o fim de nossa meninice,
e mesclou-se escuro à ebúrnea luz,
das neves ... ver.
Mas o pudor me conteve, do novo ... desmedida ...30
O Fr. 21, para o qual a elegia pederástica soloniana “é o antecedente mais direto” (Fuentes, 2002, p. 23), tem como destaques: mērō̂[n] (5), referindo as “coxas”; e a ideia do que é jovem, novo, em neo[trephé]ōn (5), composto reconstruído pela soma de néos a termo ligado a tréphein (“nutrir, fazer crescer”), e cuja declinação o articula a mērō̂[n]. Note-se que néos volta no verso 9 (néou). Destacado é também [pa]ịḍeï ́ēs (6), pois, nomeando a “meninice”, combina-se bem à linguagem dos versos, e à imagem (7) da mescla do “escuro” ([k]ỵạ́[n]eon) à “ebúrnea luz” (elephantíneon ... phẹ́[ngos]), e das “nuvens” (niphádōn, 8), das quais algo se origina (ek, 8) e se faz objeto de “ver” ([i]deîn, 8). Tal mescla se expressa em forma verbal ([anemí]sgeto, 7) de meígnymi, tradicional para o fundir de água e vinho no vaso que prepara o beber de convivas do simpósio, como de corpos no leito em que se unem amantes; e fala possivelmente, no Fr. 21, do “despertar sexual” a partir de conhecido motivo poético do escurecer do rosto, usado para a idade adulta,31 argumenta Ian Rutherford, em “The new Simonides” (2001, p. 51). Marcada estaria no fragmento uma temporalidade, como dá a entender a menção de neves trazendo o inverno, pensa Carmine Catenacci, em “Simonide, fr. eleg. 22 West2” (2000, p. 63).
Cientes do estado do Fr. 21 e de seus limites, cremos poder afirmar que a tradição poética pederástica depreende-se da “linguagem e das vívidas imagens” (Catenacci, id., p. 65) que projetam o amadurecimento do corpo do efebo. Como sublinhava Martin L. West, em “Simonides redivivus” (1993, p. 11), o Fr. 21 é “evidentemente um poema de amor”, que revela, no diálogo da persona com sua psykh[ḗ] (“sopro vital, ânimo”, 3), “apreensão com a dor e o estresse amoroso” (p. 12), no anúncio de sua incapacidade ([o]u dýnamai, 3) de “manter a circunspecção” (p. 11) no manejo de si, no “desfrutar das boas coisas da vida” (p. 12).32 Na mesma linha seguiram outros,33 como Catenacci (id., p. 58-9), que trabalha o Fr. 21 olhando para a tradição da mélica do paidikón, e Rutherford (2001, p. 51). O Fr. 21 é, para Carmen B. Fuentes, em “La expressión del sentimiento amoroso em Simónides” (2002, p. 18), uma das duas – a outra é o Fr. 22 – “surpreendentes elegias eróticas” reveladas no papiro de Simônides.
A noção do tempo adequado (katà kairón) à vivência amorosa e aos papéis eróticos (erastḗs e erṓmenos) é, como temos frisado, tema da poesia pederástica. E nela ouvimos o mesmo tipo de diálogo do Fr. 21: “A invocação do órgão das emoções, no contexto de um amor impossível ou atormentado, irá constituir um tópos no epigrama erótico, que amiúde abre a composição e sinaliza a abdicação das emoções” (Catenacci, 2000, p. 60).34 Mas quem nela fala, no “diálogo aparente” (Fuentes, 2002, p. 21)? Para Krystina Bartol, em “Between loyalty and treachery” (1999, p. 27), o erṓmenos; para Catenacci (2000, p. 59), o erastḗs. Como bem diz Fuentes (id., p. 20), a opção de Bartol entra na contramão de toda a tradição de poesia pederástica.35 Isso porque nela, salienta Catenacci (id., p. 58), “o eromenos é o destinatário silencioso do desejo e da paideia do erastes”. E aduz Fuentes (id., ibid.), seguindo o helenista italiano: ao erastḗs “pertence a palavra poética, ainda que seja o erṓmenos, com a beleza de seu corpo e seu comportamento, a fonte de sua inspiração”.
Quanto à opção de Catenacci, ela não só atenta à referida tradição, como adensa os argumentos por observar o Fr. 21 no bojo do corpus de paidiká, com a ressalva de que, enquanto em tal conjunto o elogio da beleza efébica canta-a enquanto ali está, na elegia de Simônides, espécie de “paidikón impuro”, diz ele, “o elogio da beleza mescla-se à constatação de seu fim” (id., p. 65). Para Catenacci (id., p. 59), constata-o o erastḗs que “parece declarar, com valor de renúncia, não poder ser um companheiro circunspecto, e que, entristecido, respeita a Díkē [Justiça] desde quando a plena maturidade física se revelou no corpo do erṓmenos, por meio dos pelos crescendo-lhe nas coxas” – fenômeno natural que Simônides projeta “em imagens cromáticas que simbolizam esta sexualidade nascente” (Fuentes, 2002, p. 24).36 Similarmente, o poeta encarece o valor de Díkē, a Justiça, pelo cromatismo, ao atribuir-lhe o epíteto composto khrysṓpin (4), pelo qual traz o ouro, metal mais valioso, com sua cor e seu brilho intensos, à personificação que desse modo ganha grande destaque pelo “valor supremo”, diz Fuentes (id., ibid.), e pela “pureza que imprime[-lhe] esse nobre metal” incorruptível.
Afina-se, portanto, a natureza do epíteto da Justiça à fala do erastḗs a seu “ânimo” (3), na qual afirma seu respeito para com ela, ainda que lhe traga sofrimento (3-4). De que respeito se trata? Pelos versos sucessivos e o termo final hýbris (9), das normas que pautam a pederastia, cujo desvio, desrespeito, numa “cultura da vergonha”, acarretará a exposição pública, algo de que tem clareza o erastḗs, que no verso 9 diz ainda se conter (ḗryke) por [aid]ọ̄̀s (“vergonha, pudor”), evitando incorrer em hýbris – o extrapolar de limites ditados pela normatização e organização do cosmo e da vida humana.
No contexto erótico, circula essa relevante noção37 que, na pederastia, seria “a violação da idade justa e dos consequentes papéis nos relacionamentos homoeróticos”, conclui Catenacci (2000, p. 59).38 para os quais o “código estabelece que a condição de eromenos se conclua com a chegada da maturidade física, e com o ingresso na comunidade dos homens adultos e ativos sexualmente, em termos políticos e paidêuticos” (id., p. 64). No Fr. 21, o erastḗs amadureceu e não é mais o efebo (v. 5-6, 7).
Firma-se o nexo entre Díkē e hýbris, e fazem-se coerentes linguagem e imagens na construção observada em diálogo com a tradição da poesia pederástica para o simpósio, no qual é certamente adequado o diálogo entre o homem que se percebe adulto, maduro, e agora destinado ao papel de erastḗs, e sua psykh[ḗ] (3), a qual interpela como “ao próprio eu emocional ante a uma situação dolorosa e lacerante: um ato linguístico que marca em geral um controle, ora contrastado, ora resignado, sobre pulsões instintivas e socialmente inconvenientes” (Catenacci, id., p. 60).
Uma última observação. No verso 6, a palavra inicial é o pronome [hē]metérēs; o sentido é de “nossa”, mas pode equivaler a “minha” – esta, a opção mais seguida.39 Alinhamo-nos, porém, a Catenacci (id., p. 62), que, pensando aquele sentido, indaga: “Mas por que não o remeter [o pronome] à voz falante e a uma outra pessoa, a uma mesma experiência comum agora concluída? Uma pessoa talvez presente à ocasião do canto e, contudo, notável no público simposial”. A resposta: não há razão para não o fazer. A pederastia, sabemos bem, é valor e prática compartilhados pelos convivas no simpósio e em seu ideário; e a abertura a um “nós” daria à elegia um alcance mais amplo em termos de seu público, em movimento bastante comum nas composições dos poetas arcaicos.
Passemos, agora, aos versos mais legíveis do Fr. 22, o último de que falaremos:
]ν̣ κόσμ[ο]ν̣ ἰοσ̣[τ]ε̣φάνων
ἕδος πολύδενδρον ἱκο[ίμην
εσ̣[....] εὐαέα νῆσον, ἄγαλμα β̣̣[̣ίου·
κα[ί κεν] Ἐχεκ̣[ρατί]δην ξανθότρ[ιχα
ὀφ[̣θαλμοῖσιν ἰδ]ὼ̣ν χεῖρα λάβοιμ[̣ 10
ὄφρα ν̣έ̣ο̣[ν] χ[αρίε]ντος ἀπὸ χροὸς ἄν[θος
λείβοι δ’ ἐκ βλ̣[εφάρ]ων ἱμερόεντα [πόθον.
καί κεν ἐγ[̣ὼ μετὰ πα]ι̣δὸς ἐν ἄνθε[σιν ἁβρὰ πάθοιμι
κεκλιμένος, λευκ̣ὰ̣ς ̣φαρκίδας ἐκτ[̣ὸς ἐλῶν,
χαίτη[ισι]ν χαρίε[̣ντ]α̣ νεοβλάστ[ 15
.[ ] εὐανθέα πλε[ξάμενος στέφανον·
μο[.....] δ’ ἱμερόεντα λιγὺν .[
ἀρτι[̣επέα] νωμῶν γλῶσσαν ἀ[πὸ στόματος
... adorno das de violáceas guirlandas
... a assento multiarbóreo (eu) chegaria ...
... ilha de amenas brisas, adorno da vida ...
E Equecrátides auricomado ...
após vê-lo com olhos, tomaria sua mão ... 10
para que a flor jovem por pele deleitável ...
e verteria das pálpebras atraente desejo
e eu por um menino entre flores delicadamente sofreria,
reclinado, o exterior arrebatado por alvas rugas,
para as melenas graciosa fresca(?) ... 15
... bem florida tendo tecido uma guirlanda;
e ... desejável clara (canção?) ...
hábil língua manejando ... da boca ...40
Antonio Aloni e Alessandro Iannucci, em L’elegia greca e l’epigramma dalle origine al V secolo (2007, p. 83), reconhecem na “chave erótica” a palavra que abre os versos, mas igualmente que “os traços decisivamente eróticos (ou homoeróticos) são o resultado de geniais conjecturas”, a saber: [póthon] (12), um dos termos que nomeia o desejo sexual e que praticamente equivale a érōs; [habrà páthoimi] (“delicadamente sofreria”, 13). Acrescemos a estes outros, próprios da dicção erótica: o ver com olhos (oph[thalmoîsin id]ọ̄n, 10) – crucial, porque érōs é desejo sexual – e o pegar a mão (kheîra láboim[, 10), gesto de intimidade sexual;41 no verso 11, a construção ṇẹ́ọ[n] kh[aríe]ntos, para o jovem e o aprazível, seguida da menção à pele (khroòs) talvez combinada a án[thos], somando prazer sensorial e juventude.
Mais forte ainda ecoa a tradição da linguagem erótica na elaboração do verso 12: o verter (leíboi) de [póthos] “das pálpebras” (ek bl ̣ [ephár]ōn) – do desejo que atrai irresistivelmente (himeróenta) –, reconstrução apoiada na semelhança notável com a Teogonia, de Hesíodo (fim do século VII a.C.), no verso sobre os olhos das Cárites (910):
τῶν καὶ ἀπὸ βλεφάρων ἔρος εἴβετο δερκομενάων
e das pálpebras que fitam desejo é vertido
O termo blephárōn – intensificado em derkomenáōn (“que fitam”) – leva à emenda do Fr. 22 (bl ̣[ephár]ōn, 12), que retoma a referência aos olhos que olham (10), sede do desejo e sua porta de entrada, porque move-o a beleza física do corpo, apreendida pelo olhar. E a forma verbal eíbeto é variante de léiboi (12), perfeitamente legível no Fr. 22. Ademais, éros é, no verso hesiódico, o objeto do verbo, e o suplemento [póthos], no de Simônides, sinônimo metricamente adequado.
No verso 13, são possíveis [pa]ịdòs, dada a menção à juventude e às flores no verso 11, e ánthe[sin], que traz ao fragmento de novo “flores”, com provável sentido locativo (en); logo, “menino” e “entre flores” seriam lidos em consonância com o cenário plausível ora desenhado. Esses termos se colocam em relação ao “eu” (eg[ṑ], 13; kekliménos, 14), cujo reclinar reflete a postura tradicional do simpósio; talvez este se confunda, em dimensão metafórica, a um prado florido (13) em que reclinam erastḗs e erṓmenos, na fantasiosa ilha, no fantasioso encontro.42 Como frisa Carlo Brillante, em “Simonide, fr. eleg. 22 West2” (2000, p. 36), indicando ocorrências que remontam à sedução de Zeus por Hera na Ilíada (XIV, 347-9), “os prados floridos recorrem regularmente nas narrativas de enredos de amor, sejam estes reais ou fantásticos”.43
Clara o bastante é a sequência no verso 14, após a pausa: leuḳạ̀s ̣pharkídas44 (“alvas rugas”) nomeia sinais tradicionais para a chegada da velhice,45 obstáculo ao erotismo. A perda da imagem atraente do corpo é realçada em ekt ̣[òs] (“exterior”), emenda que faz sentido em vista da referência à pele – associada à juventude – no verso 11, como faz sentido o suplemento [helō̂ n], dada a usual violência da chegada da velhice.
Por sua vez, o verso 15 fala em “melenas” (khaítē[isi]n) – ambos os termos original e traduzido para animais e seres humanos, com sentido de pelo sedoso, solto. O cabelo, diga-se, é elemento dos mais frequentes como gatilho erótico apreendido pelo olhar do amador, e já usado para o elogio da personagem (Ekheḳ[ratí]dēn) do verso 9, pelo epíteto xanthótr[ikha] (“auricomado”). Repare-se que esse epíteto recorre em Homero para heróis e cavalos. E que, tal qual se dá com khaítē e com xanthós, o termo tríks também vale para animais ou homens.
Desse modo, ficam sugeridas as ligações entre o “bem-comado” (9) Equecrátides e os cabelos do verso 15, e entre a linguagem erótica que sublinha prazer, florescer e juventude, o elemento do simpósio (14), e o jovem animal – o potro – em que o belo e desejável efebo, Equecrátides, pode estar espelhado metaforicamente. Sabemos quão constante é o elogio da beleza de moças por imagens de cavalos – e o Fr. 1 de Álcman (fim do século VII a.C.) é das mais eloquentes evidências disso,46 mas também corcéis e potros são imagens da beleza do homem adulto – como Páris (Ilíada VI, 503-14) – e do efebo (Anacreonte, Fr. 456 Page). Repete-se ainda no verso 15 o uso de adjetivo para o aprazível (kharíe ̣[nt]ạ), visto no 10 (kh[aríe]ntos), derivado da noção de kháris, o charme, a reciprocidade, o regozijo tão importantes na esfera erótica. Na ocorrência do verso 10, qualifica outro gatilho, a pele; agora, no 15, algo jovem (neoblást[).
Também o verso 16 retoma elementos: flores (euanthéa) de guirlanda talvez pela persona trançada (ple[xámenos stéphanon]), elemento que, na prática ritualística do simpósio, contribui “para criar a atmosfera festiva adequada à ocasião” (Brillante, 2000, p. 36). Essa guirlanda faz lembrar o epíteto io[st]ẹphánōn (“de violáceas guirlandas”, 6), em geral atribuído a divindades, como as Musas que se coadunam com o contexto simposiástico.47
Em ambos legível, no verso 17 repete-se o adjetivo erótico do 12, himeróenta (“atraente, desejável”),48 indicando, como outros apontados, que a retomada de termos é recurso da composição do Fr. 22. Desta vez, é sucedido pelo nítido adjetivo ligỳn, regularmente associado à voz e ao canto, a projetar o elemento erótico-sensorial inerente à sua natureza e plasmado na imagem física das Musas, as belas e jovens deusas hineadas no proêmio (1-115) da Teogonia de Hesíodo, que encarece sua sensualidade com adjetivos tradicionais da linguagem erótica: hapaloîsin (2), aos pés “macios”; térena (5), à pele “tenra”; kaloùs e himeróentas (8), aos “belos e desejáveis” coros, ao dançar e cantar delas.
O mundo da poesia entraria na cena simposiástica em chave metapoética nos versos 17-8; no 18, o último legível, a falar de artị[péa] ... glō̂ ssan (“hábil língua”) manejada (nōmō̂n) pela persona e de algo relativo à boca (a[pò stómatos]). Vale a apreciação de Fuentes (2002, p. 27), atenta aos “motivos amorosos” e aos “clássicos traços” do paîs kalós na figura de Equecrátides: “À clara manifestação da paixão se acompanha o papel da poesia, e entende-se uma poesia inspirada nos temas de amor, que o poeta imagina recitar no simpósio, depois de ter cingido a guirlanda”.
Pensemos o cenário completo. Brillante (2000, p. 29) argumenta que a descrição é “de uma viagem a ilha distante, onde a existência algo elísia se projeta agradável pela beleza e pelo clima (v. 7s.), e onde poderá gozar do amor de Equecrátides, um rapaz na flor da juventude (v. 11s.)”, muito possivelmente o [pa]ịdòs do verso 13. Lá, prossegue Brillante, “poderá realizar seus próprios desejos”, algo impossível no hic et nunc da pólis, já que a velhice chegou, impedindo sua atuação na pederastia elaborada em marcada chave erótica – no Fr. 21, erótica-paidêutica, pois que trata do problema da ordem, da organização e da observância dos papéis nas relações pederásticas. Se na ilha longínqua – utópica49 – do Fr. 22, o erastēs pode com Equecrátides50 desfrutar do érōs pederástico, então é porque libertar-se-á “das rugas que lhe afligem o corpo (v. 14), e, cingido com a guirlanda entrelaçada com tenros ramos, seguir a própria inspiração poética (v. 15-19)”. Note-se a nomeação do efebo que, enfatiza Ewen Bowie, em “Sympotic praise” (2002, p. 189), é assim imortalizado, além de elogiado de modo oblíquo e metafórico na fantasia do erastēs “velho e enrugado” (p. 190) a desejar o paîs kalós fora de seu alcance.51 Tanto pela enunciação do nome do efebo no verso, como pelo elogio e sua elaboração, o Fr. 22 revela-se afinado à tradição do paidikón.
Não entramos aqui na insolúvel disputa acerca da identidade do efebo.52 Cabe antes contemplá-lo e aos demais efebos da poesia pederástica no âmbito dessa tradição e da encomiástica em geral, frisa Brillante (2000, p. 34). E também não adentramos a discussão da natureza da viagem53 à “ilha de amenas brisas” (euaéa nē̂son, 8), de rica vegetação (hédos polýdendron, 7), à qual chegaria (hiko[ímēn], 7), se pudesse, o erastḗs. Se é uma “experiência real”, ou uma “viagem fantástica” – como parece mais provável, dada a ideia do rejuvenescimento que no mundo concreto é inviável54 –, ou mesmo uma “viagem post mortem”,55 resume Brillante (id., p. 29), isso não parece importar tanto quanto o fato de que a viagem, seja de que tipo for, reclama “a atmosfera particular do simpósio, onde os participantes possam exprimir mais livremente seus desejos” (p. 30). Nesse sentido, “viagem ‘de evasão’”, prossegue, a uma ilha remota e suspensa da vida cotidiana, na qual “poderá tocar os prazeres do amor e da poesia: as duas experiências são aqui evocadas em um único contexto que as integra como naturais uma à outra (v. 13-16)”. Para Sarah Mace, em “Utopian and erotic fusion in a new elegy by Simonides” (2001, p. 203), Simônides assim sofisticadamente mescla e funde “os temas da fuga utópica e dos desafios do amador que envelhece”, valendo-se da “ideia do rejuvenescimento” que lhe permite voltar a participar da pederastia: sua “vontade de viajar a uma ilha idílica, a fim de livrar-se de sua velhice e unir-se ao desejável jovem Equecrátides é manifestamente a peça central da elegia” (p. 201). E é por meio de sua expressão, arremata Mace (p. 202), que “Simônides celebra a desejabilidade do jovem”.
Inegável é a qualidade onírico-escapista56 da viagem e da atmosfera erótico-simpótica57 do Fr. 22, elegia que espelha “o contexto da performance” (Rutherford, 2001, p. 52). Dessa forma, nela desponta, enlaçada ao do elogio erótico ao efebo, uma “imagem tradicional”, ressalta Brillante (2000, p. 37), a do “simposiasta qual navegante, do mar como vinho, da própria sala que hospeda os convivas qual nau de nautas”.58 Navegante para o qual o “meio privilegiado para alcançar um lugar remoto, onde possa realizar os próprios desejos de amor”, é o marinho, indicado na viagem insular dos lacunares versos 1, em que só lemos thalássēs (“mar”, 1), keleutho[ (“caminho”(?), 5), nē̂son (“ilha”, 8).
Conclusões
A análise de elegias pederásticas oferecida nestas linhas aponta para uma proximidade com a mélica pederástica arcaica, de modo a robustecer o olhar para a tradição poética do érōs pederástico, revelada em linguagem que celebra os aspectos físicos que realçam a juventude do efebo e o tornam desejável, bem como o situam no contexto da vida aristocrática nas póleis dos séculos VII a V a.C., na era arcaica. Nesse contexto, o simpósio emerge como cenário importante que, aliado ao tom de grande parte das elegias remanescentes, com discursos parenéticos, gnômicos e representativos de valores e aspectos que regem a vida nas póleis, parecem mostrar que, diferentemente da mélica do paidikón, que envolve o louvor mais direto do paîs kalós com o fito de seduzi-lo, a elegia insere a pederastia no âmbito cotidiano da existência aristocrática, e de um modo que se poderia dizer reflexivo ou mesmo paidêutico. Assim em Sólon: no Fr. 23, o desejo de um menino é um dentre outros elementos, como a riqueza fundiária e a relação de hospitalidade com habitantes de terras distantes, próprios ao homem ólbios (“próspero”; “feliz”); no 24, o homoerotismo pederástico é colocado no âmbito mais amplo da poética soloniana, contumaz em criticar, em tom admonitório, a futilidade do acúmulo de riquezas frente à precariedade da vida humana. A temática erótica e paidêutica parece, portanto, misturar-se mais naturalmente na elegia. Mas o Fr. 25 de Sólon mostra que a paideía erótica subsiste.
Os Frs. 21 e 22 de Simônides revelam a forte associação da poesia pederástica com o simpósio, mantendo em cena a linguagem erótica do Fr. 25 de Sólon e dos paidiká mélicos. Mas, como naquele poeta, o elogio ao paîs é apenas tangencial. Ora se inserindo num lamento pelo “fim da meninice”, que coíbe as relações pederásticas (Fr. 21), ora narrando a viagem a uma idílica e utópica ilha onde tais relações serão sempre possíveis (Fr. 22), o poeta ensina e reforça, no âmbito do simpósio, as normas que pautam essas relações.
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Notas