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Entre Eros e a morte, a paixão desmedida de Antígona e de Maria Matamoros

Between Eros and death, the unbridled passion of Antigona and Maria Matamoros

Andréa Jamilly Rodrigues Leitão
Universidade de São Paulo, Brasil

Entre Eros e a morte, a paixão desmedida de Antígona e de Maria Matamoros

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-20, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 02 Agosto 2021

Aprobación: 24 Febrero 2022

Resumo: Pretende-se estabelecer no artigo um paralelo, sob uma abordagem comparativa, entre as protagonistas da tragédia Antígona, de Sófocles, e da narrativa “Matamoros (da fantasia)”, de Hilda Hilst. Devotada ao irmão Polinices, Antígona transgride as leis da cidade para obedecer tão somente ao imperativo do seu desejo, ventilado por Jacques Lacan (2008) e sugerido na tradução de Trajano Vieira (2009). Imbuída pelo ímpeto de uma heroína trágica, Maria Matamoros segue a sua paixão irredutível pela figura de Meu, abandonando-se a um gesto de autoflagelo. Com base na leitura de Davi Andrade Pimentel (2009), o castigo em si mesma a aproxima, em certa medida, das tragédias gregas. Sob um páthos excessivo e arrebatador, as protagonistas conduzem as suas escolhas até os últimos limites. Tendo em vista o vínculo entre o sacrifício e o amor (Bataille, 2017), ambos os enredos retratam a entrega amorosa como uma legítima experiência de transgressão e de destruição. Em suma, a paixão confunde as fronteiras entre eros e a morte.

Palavras-chave: paixão, morte, sacrifício, Sófocles, Hilda Hilst.

Abstract: This article aims to establish a parallel, under a comparative approach, between the protagonists of the tragedy Antigone, by Sophocles, and the narrative “Matamoros (da fantasia)”, by Hilda Hilst. Devoted to her brother Polynices, Antigone transgresses the laws of the city to obey only the imperative of her desire, as ventilated by Jacques Lacan (2008) and suggested in Trajano Vieira’s translation (2009). Imbued with the impetus of a tragic heroine, Maria Matamoros follows her irreducible passion for the figure of Meu, abandoning herself to a gesture of self-flagellation. Based on Davi Andrade Pimentel’s (2009) reading, the punishment itself brings her closer, to some extent, to the Greek tragedies. Under excessive and sweeping páthos, the protagonists drive their choices to ultimate limits. Given the link between sacrifice and love (Bataille, 2017), both plots portray amorous surrender as a legitimate experience of transgression and destruction. In short, passion blurs the boundaries between eros and death.

Keywords: passion, death, sacrifice, Sophocles, Hilda Hilst.

Considerações iniciais

Este trabalho interpreta as similaridades existentes entre os destinos das protagonistas da tragédia Antígona, de Sófocles, e da narrativa “Matamoros (da fantasia)”, pertencente à obra Tu não te moves de ti (1980), de Hilda Hilst. Ambas perfazem as suas existências como mulheres que, obstinadas por amores impossíveis, conduzem as suas respectivas desgraças aos últimos limites. Se a primeira se opõe aos arroubos autoritários de Creonte em prol das homenagens funéreas do seu irmão Polinices, dispondo a sua existência à morte; a segunda, por sua vez, escolhe um caminho de destruição ao transgredir os interditos relacionados à matéria divina do seu amante – nomeado somente como “Meu”. Tanto uma quanto a outra decidem pelo amor e pelo aniquilamento.

O sacrifício1 é uma palavra de origem latina que se remete ao ato de fazer ou de revelar o sagrado, isto é, de executar a passagem da esfera do profano à do sagrado por intermédio da imolação de uma vítima. A cerimônia de sacrifício põe em jogo a radicalidade da morte e o seu anseio pela destruição. Nessa perspectiva, tal ritual por si só já está atrelado à noção de perda e não raro à violência de um aniquilamento fatal. No que tange à definição do sacrifício, concorda-se com a reflexão de Walter Burkert (1966, p. 106, tradução livre), segundo o qual, “deve ser ampliada um pouco apenas para contemplar todos os tipos de sacrifícios envolvendo o derramamento de sangue: o sacrifício é um ritual de assassínio. No ritual de sacrifício o homem causa e experiencia a morte”.

No seu estudo O erotismo, Georges Bataille compara a experiência sacrificial e a amorosa, haja vista que recuperam o instante da dissolução e, por assim dizer, o da morte. A partir desse espectro mortal, instauram, cada uma a seu modo, o desnudamento e a possibilidade de transcendência ou de consumação de uma unidade, quer entre os amantes, quer entre o homem e a divindade. Partindo do pressuposto de que existe uma forte proximidade entre o erotismo e o sacrifício – principalmente com base na violência fundante nos dois casos –, Bataille (2017, p. 116) considera que

o que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo se dá com a convulsão erótica: ela libera os órgãos pletóricos cujos jogos cegos prosseguem além da vontade refletida dos amantes. A essa vontade refletida, sucedem os movimentos animais desses órgãos inchados de sangue. Uma violência, que a razão não controla mais, anima esses órgãos, tensiona-os até a explosão e, de repente, é a alegria dos corações de ceder ao excesso dessa tempestade.

À luz do sacrifício, os corpos amantes se abrem à violência do jogo sexual, sob a “convulsão cega dos órgãos”, e à violação dos contornos dos envolvidos, transbordando-os para a esfera do ilimitado – o excesso. O ser amado perde a sua duração individual, enquanto ser descontínuo e finito, quando lançado sobre a explosão voluptuosa do gozo, tanto quanto o animal, que, posto em situação de imolação, sofre a sua destruição pelas mãos do sacrificador. O evento amoroso e o sacrifício anunciam, antes de tudo, o espasmo da carne, no qual o seu apogeu se configura na clivagem das formas constituídas.

Ao cometer suicídio, Antígona parte ao encontro do seu amado irmão no repouso eterno do Hades. Maria Matamoros macula o âmbito sagrado ao fundir-se carnalmente com um homem misterioso e, como uma forma de expiação, apunhala a si própria. Sacrificar-se para elas representa sacralizar o seu amor devotado a outrem. Igualmente, entregam-se à paixão desmedida e, por isso, aceitam a sua própria ruína: o autoflagelo. Afinal, “se a união dos dois amantes é o efeito da paixão, ela evoca a morte, o desejo de assassinato ou de suicídio. O que designa a paixão é o halo de morte” (Bataille, 2017, p. 44). Com efeito, existe sobre a paixão2 um peso deveras mortal, que subsiste na interface entre o passional e o patológico. O desvario sem limites será a mola propulsora que conduzirá as personagens aos destroços de si mesmas.

Cruzando tais leituras, interessa aqui ressaltar a tonalidade erótica do gesto de Antígona e o exercício sacrificial de Matamoros. No primeiro caso, em diálogo com o estudo de Jacques Lacan (2008) “A essência da tragédia”, encontra-se o itinerário do desejo trilhado por Antígona; para isso, emprega-se Antígone de Sófocles, com tradução de Trajano Vieira (2009), na qual se delineia textualmente o enlace incestuoso entre os irmãos, embora tal escolha tradutória não seja a única empregada. Utiliza-se, eventualmente, a célebre tradução de Guilherme de Almeida para fins de cotejo. No segundo caso, discute-se uma possível relação entre a narrativa hilstiana e o páthos suscitado nas tragédias gregas, tendo como interlocução o estudo de Davi Andrade Pimentel (2009).

“Meu túmulo”, meu tálamo”: o eros transgressivo de Antígona

Por ser filha de Édipo, Antígona já carrega em si o miasma3 da sua estirpe espúria ou, nos termos de Patricia J. Johnson (1997, p. 390, tradução livre), encara a “devoção do caminho do excessivo edipiano”. A protagonista de Sófocles infringe as prescrições régias com o propósito de realizar as homenagens póstumas a Polinices. Em virtude de ter combatido do lado de Argos em detrimento da sua cidade natal, este foi proibido por Creonte – seu tio e rei de Tebas – de ser enterrado, sendo o seu corpo abandonado aos abutres. Indignada, protesta contra a inclemência do Estado e o seu poder absoluto, que aspira a sobrepor-se às leis não escritas dos deuses. Em diálogo com a sua irmã Ismene, Antígona revela toda a sua aderência à transcendência e o seu inconformismo quanto ao desrespeito intolerável aos preceitos divinos:



Age como quiseres, que eu me empenho
no enterro! Serei grata se morrer
amando quem me amou, concluindo ao lado
dele o rito. Mais vale o tempo no ínfero
do que na companhia de quem vive:
o eterno circunscreve o meu repouso.
Desestima o que os deuses sobrestimam!

Fuente: (Antígone, 71-7)

Contrapondo-se às leis seculares, ela elege para si a via do “eterno” e das suas medidas, nem que isso signifique se entregar à morte. Pela sua transgressão, a pena estabelecida pelo seu tio a condena a morrer em total clausura, isto é, sepultada ainda em vida. Nesse contexto, Hegel defende que a origem do conflito se pauta em uma “legitimidade ética” sustentada tanto por Creonte, o chefe de Estado, a fim de resguardar a ordem e o bem comum da pólis, como por Antígona que, no desmedido amor consagrado ao irmão, deve assegurar-lhe uma cerimônia de sepultamento. Assim, instala-se um confronto direto entre o foro público e o privado:

A principal oposição, que particularmente Sófocles tratou da maneira mais bela, a exemplo de Ésquilo, é a que se dá entre o Estado, a vida ética em sua universalidade espiritual, e a família como eticidade natural. Estas são as mais puras potências da representação [Darstellung] trágica, na medida em que a harmonia destas esferas e o agir plenamente concordante, no interior de sua efetividade, constitui a realidade completa da existência ética. É suficiente recordar a este respeito Sete contra Tebas de Ésquilo, e mais ainda Antígona de Sófocles. Antígona honra os laços de sangue, os deuses subterrâneos, Creonte somente a Zeus, a potência imperante da vida pública e do bem coletivo (Hegel, 2004, p. 253, grifos do autor)

É inegável o fato de que Antígona e Creonte representam posições diametralmente contrárias, sobre as quais orbitam as esferas do Estado, da família, da pólis e da lei divina. Ao preservar os “laços de sangue” e os códigos dos “deuses subterrâneos”, a atitude insurgente da filha de Édipo no tocante à feitura dos ritos funerários configura-se como uma resistência heroica. No entanto, a despeito da problemática em torno do direito da pólis e da família ou, ainda, das instâncias que tangem o individual e o coletivo, importa iluminar a paixão incontida de Antígona, confundindo eros e morte. Na discussão com Ismene – em que esta declina das intenções da irmã e prefere não ir de encontro às leis da cidade –, Antígona transgride o decreto de Creonte de forma apaixonada e decide tomar a solitária iniciativa de enterrar Polinices, submetendo-se à morte como quem se entrega ao ser amado: “Será belo morrer por isso:/ repousar, amada, ao lado de quem amo,/ por tão santo crime” (Antígone, 72-4).4

Mais tarde, quando interpelada por Creonte, Antígona declara que o espírito que move a sua luta, mais do que a sua cólera por justiça, enraíza-se em sua amplitude amorosa: “Fui feita para o amor, não para a intriga” (Antígone, 523).5 Em conformidade com as ponderações de Jacques Lacan, Antígona é conduzida por uma paixão, cujos desígnios se governam pela moral do desejo.6 O psicanalista francês caracteriza a irmã de Polinices enquanto uma mulher profundamente desejante, que “leva até o limite a efetivação do que pode chamar de desejo puro, o puro e simples desejo de morte como tal” (Lacan, 2008, p. 333). Antígona encarna o caráter radicalmente destruidor do seu desejo, como aquela que será a guardiã do crime, ou melhor, da “chaga” do incesto herdado pela sua parentela:



Tocas em minha chaga mais vulnerável,
no tríplice infortúnio de meu pai,
no revés tentacular dos ínclitos Labdácidas.
Ah! O desastroso matrimônio materno,
a autogênese do amplexo
com a mãe, moiramarga...
Nasci desse conluio, mísera!
Sem noivo e infeliz,
deles me avizinho.
Ah! Irmão, vítima de núpcias adversas,
com tua morte me tiraste a vida.

Fuente: (Antígone, 857-71)

Uma vez que desobedece aos desmandos do tirano e torna-se depositária de uma infração, ela realiza a sua escolha consciente pela morte, por meio do seu suicídio por enforcamento. Antígona, diante da dor do infortúnio, encontra na ação de matar-se o seu último desejo. Conforme Nicole Loraux, em Maneiras trágicas de matar uma mulher, a morte violenta da filha de Édipo realiza-se à guisa do sacrifício de virgens – prática cara ao universo trágico – mas, ao mesmo tempo, ela se abandona ao aniquilamento com um furor amoroso, como quem vai unir-se matrimonialmente com o seu esposo no Hades:

Creonte condenou inapelavelmente Antígona ao Hades, vítima oferecida aos deuses infernais para que eles se apoderassem de sua jovem vida; sepultada viva, a filha de Édipo estava condenada a morrer asfixiada e, no laço feito com seu véu de virgem, ela antecipará a asfixia por outra via. Seu proveito com isso é inventar a sua própria morte e condenar Creonte à mácula que ele queria evitar. Mas o sentido desse enforcamento não se esgota no gesto pelo qual Antígona, fiel à lógica das heroínas de Sófocles, escolhe morrer por suas próprias mãos e converte em suicídio o que seria uma execução: matando-se como as mulheres bem femininas, a moça reencontra na morte tanto uma feminilidade que enquanto viva renegara com todo o seu ser, como um tipo de núpcias (Loraux, 1988, p. 64).

Ao transmutar a “execução” em “suicídio”, Antígona toma as rédeas do seu destino, imbuída pela força soberana de um deus: Eros. O coro propaga o poder triunfal e implacável de um Eros cósmico,7 que, em sua capacidade avassaladora de frenesi, inerente à natureza excessiva da protagonista, não é capaz de eximir ninguém: “Imortal não há,/ tampouco homem – ser-de-um-dia –/ imune ao teu desvario” (Antígone, 786-8). Kathrin H. Rosenfield opõe-se à leitura hegeliana, indiferente à rede acentuada de desejos suscitados, pela relação ambígua entre Antígona e Polinices. O caráter desordenado da sua paixão responde às vicissitudes da estirpe de Édipo. Com a morte dos irmãos, ela passa a ser a “última raiz” de sua linhagem, mantendo viva a maldição:

Como o pai, Antígona jamais renuncia à esperança de suprimir os entraves de sua maldição, mas para fazer o que deve (enterrar Polinice), ela precisa mobilizar todo o vigor violento de seu amor pela família – e este amor parece ter alguma afinidade com a tara incestuosa de sua estirpe (Rosenfield, 2002, p. 36).

Além disso, o coro também convoca, por um lado, a potência altamente destrutiva de Dioniso – o patrono de Tebas – ao reger a ferocidade e a soberba humana, representadas pelo fratricídio de Etéocles e Polinices e o despotismo de Creonte; por outro, incita a sua aparição catártica e purificadora8 sobre a pólis e os seus habitantes, como uma representação, por excelência, do gênero trágico. Em clamor lastimoso dirigido aos cidadãos tebanos, a filha de Édipo reafirma a legitimidade das leis eternas e, sob a insígnia incestuosa do seu génos familiar, elege a morada do mundo subterrâneo como o seu tálamo ou, em outros termos, o “quarto nupcial do Hades”9 para enfim render-se ao amor incondicional pelo seu irmão:



Hades, leito pan-nupcial,
conduz-me viva
às fímbrias do Aqueronte,
sem núpcias,
sem hino:
noiva no Aqueronte.

Fuente: (Antígone, 811-6)

Mais do que a mera disputa com o seu tio a respeito do destino do corpo do irmão Polinices, concorda-se com Lesky (2015, p. 157) que salienta que “neste kommos [forma de queixa ou de lamentação] é onde pela primeira vez sua figura assume validade humana e se patenteia a grandeza de seu sacrifício”. É a coragem e o seu espírito destemido que a insufla em sua entrega amorosa. Vale pontuar que, neste trabalho, optou-se pela tradução de Trajano Vieira, que deixa entrever uma tensão erótica entre Antígona e Polinices. Tal escolha tradutória destoa da grande maioria, a exemplo da tradução do poeta Guilherme de Almeida,10 que personifica o rio Aqueronte, ou seja, a morte como o noivo da filha de Édipo. Como esclarece em introdução à peça, particularmente no que tange a esses versos em específico, Trajano (2009, p. 21) conjectura que, aprisionada por uma cadeia familiar incestuosa, Antígona deseja o enlace sexual com o seu irmão, o que àquela altura somente seria possível no Hades. Portanto, Hades não se refere à morada eterna “como ‘aquele que adormece tudo’, mas onde ‘todo tipo de coito ocorre’, sobretudo o que Antígone, em algum plano de sua mente, numa linguagem contida e opaca pela autocensura, imagina com o próprio irmão”. Dito de outro modo, o Aqueronte torna-se o lugar privilegiado no qual repousam os irmãos-amantes.

Inclusive, o Hades constitui-se como o espaço que, em ritual de núpcias, abriga também os corpos já sem vida de Antígona e de Hemon – o seu noivo prometido: “Cadáver com cadáver, o ritual/ do esponsalício ocorre onde Hades mora” (Antígone, 1240-1).11 Assim como o filho de Creonte, a de Édipo realiza a escolha consciente pela sua descida ao Hades, ou melhor, a decisão autônoma e solitária pelo seu autoaniquilamento. Ao abraçar o seu próprio destino, ela fundamentalmente acolhe Eros12 e o seu ímpeto incestuoso, o que não deixa de traduzir o seu “desejo puro” pela destruição e, por extensão, o seu salto para a finitude:



Meu túmulo, meu tálamo, morada-
-catacumba, onde buscarei os meus,
sem vida, num enxame cadavérico,
personas de Perséfone!

Fuente: (Antígone, 891-4)

Desse modo, a sua morte jamais se configura como mera ruína, de sorte que, ao corresponder a esse limiar ambíguo, ora “túmulo”, ora “tálamo”, coroa a sua existência mortal com a tão almejada transcendência. Antígona não se arrepende do seu ato transgressivo, tampouco teme a morte, tendo em vista que o Hades é o seu “deus único”.13 Na esteira disso, Eudoro de Sousa defende a compreensão de que Antígona ocupa o lugar de heroína na peça, a qual, arrebatada pela “excessividade caótica” do espírito dionisíaco, é conduzida ao seu próprio autoflagelo, jamais considerado como a sua perdição; pelo contrário, “a morte de Antígona é a sua ‘glorificação’” (1978, p. 17). Eis a grandeza do seu sacrifício.

O “dilaceramento ciumoso”: a paixão sacrificial de Maria Matamoros

“Matamoros (da fantasia)”, de Hilda Hilst, é a segunda das três narrativas que compõem o livro Tu não te moves de ti, de 1980. A narração remonta a tempos antigos de uns “outubros de um ano que não sei”, em uma pequena aldeia, abarcando um possível triângulo amoroso entre as personagens de Maria Matamoros, de seu amante Meu e de sua mãe Haiága. A paixão adquire matizes agônicos, devido ao fato de que é assombrada pelo sentimento do ciúme. Este é acompanhado, por sua vez, por um espectro de violência, de destruição e de morte. A personagem-título já carrega em seu nome uma maldição, uma “profecia negra”, como aquela que se mata com e por amor: “amei de maneira escura porque pertenço à Terra, Matamoros me sei desde menina, nome de luta que com prazer carrego e cuja origem longínqua desconheço, Matamoros talvez porque mato-me a mim mesma desde pequenina” (Hilst, 2018, p. 368).14 Sob o páthos do excesso, Maria traz em si a mácula da transgressão a toda interdição ao seu prazer, a ferida da sua automutilação. Esta, como uma espécie de expiação, é consumida com a mesma violência de um Édipo,15 que fura os seus próprios olhos: “apunhalou-se, enterrou no meio das pernas aquela faca” (p. 364). Esta passagem revela o fim trágico de Maria, cuja ritualização da morte forja-se como uma cerimônia sacrificial.

Desde muito nova, Maria foi exposta à prática voluptuosa do “tocar pegajoso”. Matamoros inicia o seu “penoso relatar”, aprofundando-se nas suas peripécias amorosas desde a infância com os rapazes da aldeia até deparar-se com aquele homem que será o responsável não somente pela sua paixão arrebatadora – ou melhor, a “coisa” para a qual não dispõe de uma melhor designação –, como também pela sua própria perdição:

Torna-se muito penoso relatar como se deu a coisa, como fui tomada de um sentir nunca sentido, verdade que me aprazia sempre o tocar de qualquer, o tocar de muitos, o tocar sem nome, nem lhes via o rosto, era a destreza no tocar que me sabia a nardos ainda que aquele que me tocasse desprendesse de si o cheiro de todos mal lavados, as narinas fechavam-se para tudo que me cortasse o sentir, se demasiado se faziam malcheirosos eu abria-me ao pé da água, encostada ao corpo do rio, e sem que o homem percebesse eu o lavava, primeiro as mãos na água, depois no costado do homem porque se faz nesse comprido da medula o mais intenso sentir, depois apalpava-o na semilua do ventre, molhava-lhe os pelos vagarosa e antes de tocá-lo no mais fundo esfregava minhas mãos na minha cabeça, aquecia-as para que a água das palmas se fizesse em mornidão, e depois sim tocava-o, singela e de rudeza mas com finuras de mulher educada, pois era assim que eu era, e se destruí algumas coisas com a polpa dos meus dedos, tinha cuidados e era desvelosa com o corpo da água, não sei o porquê desses afins com coisa tão rorejante, eu que me soube sempre pesada como a pele da terra, são mistérios, ganchos talvez de uma vida de antes, há cadeias e argolas que se enroscam tanto que os dedos do divino nem podem desfazê-las, há poderosos peixes que se matam nas redes, pois não é? Por que se desmancharia a cadeia de carne dos humanos, somos de tantas vidas que algum resíduo antigo se cola à nossa futura alma e é talvez por isso que me faz pena e maravilha esse encorpado mole, desfazido, essa cor sem nome desse corpo da água, se machuquei-a um dia, já paguei, porque foi bem por ela por gostar tanto, por ficar à beirada de um corredor de águas, numa tarde esquisita, muito rara, que conheci o homem que me deu luz à vida, mas também me deu sangue e ensanguentou Haiága. [...] atrás, de pé, afastado de mim vinte passos ou mais, um homem, esguio como um santo de pedra que vi: as pernas tão compridas e tão fortes como tronco mediano dos ipês, estava ali parado mas era como se à minha volta rodasse, sereno parecia mas se desse um passo meu corpo se faria um canteiro de flores devastado, de olhá-lo soube que a alma me tomaria, tomou-a, e de palavra pouca, tantas dentro de si onde não se dizia, era como se fosse o reverso do belo sem deixar de sê-lo, ao redor a tarde ficou imóvel, as árvores e as águas sem ruído, eu mesma parecia desenhada e não viva como estivera há pouco, e mais viva do que nunca é o que eu escutava, toquei-me, não com os dedos de antes, toquei-me para ter a certeza de que não havia atravessado os limites do tempo. (p. 370-2)

Eis que uma “tarde esquisita, muito rara” sela o encontro de Maria com o homem pelo qual é “tomada de paixão, de sentires sem nome”. Nesse sentido, vale mencionar a epígrafe da narrativa, composta pelos seguintes versos de Lupe Cotrim Garaude: “Paixão. Só dela cresce/ o fôlego de um rumo”. A partir de tal encontro é que Matamoros e a própria narrativa parecem seguir um “rumo”, o da paixão. A cena do banho remete-se a uma liturgia erótica de preparação para a união dos corpos, na qual a amada se permite “lavar” o seu homem, deixando escapar todo o seu desvelo e dedicação – a medida do amor. Para além de unicamente denotar uma experiência carnal, o sumidouro originário convoca uma entrega desaguada a uma gênese – a “vida de antes”. Consoante Gaston Bachelard (1989, p. 36, grifo do autor), a “água evoca a nudez natural, a nudez que pode conservar uma inocência”. Destarte, o signo da água pode associar-se a uma purificação sagrada ou a um renascimento para o paraíso dos sentidos.

Transpassando o divino e o humano, esse homem misterioso surge como um “santo de pedra”, que “deu luz à vida”16 de Maria. Ao mesmo tempo, foi quem lhe provocou o “sangue” e “ensanguentou Haiága”, uma vez que copulou com Matamoros e, sob a suspeita desta, também com a sua mãe; sem contar que foi a motivação principal da ruína da primeira. Maria é tragada por sentires tão excedentes que, ao seu redor, a realidade das coisas perde o peso das diferenciações. “Meu”, como será chamado por Maria no seu afã de possessividade, engloba a ambivalência de quem contém em si o “reverso do belo sem deixar de sê-lo”. Ela teme, como se estivesse petrificada em um “desenho arrumado”, extraviar-se no infinito de uma “tarde imóvel”, de uma eternidade etérea e incorpórea, “atravessando os limites do tempo”, de modo que ela busca sem cessar tocar-se e materializar a concretude do encontro amoroso.

Com a chegada de Meu, o seu “homem-anjo”, Maria Matamoros acessa o seu paraíso do gozo. É forçoso pontuar que a narrativa não resgata a noção de um éden cristão perdido depois da queda, mas antes recria-o, sob a chave do baixo corporal, para que Maria possa fruir livremente do seu próprio desejo. Entretanto, a paisagem aprazível é imediatamente destituída quando ela tem o seu “coração crivado de vespas”, as quais respondem, na verdade, pela “sibilina serpente”17 do ciúme ou da “víbora”, que inocula o seu pérfido veneno na alma de Maria, retirando-lhe a quietude. Acometida de um “dilaceramento ciumoso” (p. 393) e da suspeita de traição, esgarçada pela “língua malvada” das personagens de Biona e de Rufina de Deus, Matamoros recobre-se de uma sombra de insegurança e de inferioridade em relação a todas as outras mulheres da aldeia, principalmente à sua mãe Haiága:

Uma hora me sei no cotovelo do mundo, despencando, e outra hora me sinto acolchoada dentro de alguma barriga, um segundo vejo o homem e mãe molhados numa luta morbosa, obscenidade e excitação singular da velhice de Haiága que assim se apraz de ser à parede montada, e meu homem em fráguas adorando sórdidas singularidades, cansado deve estar de me possuir deitada, tem na cabeça mais pedras coloridas do que os estilhaços de um arco-íris, se é tão belo deve ter tido não sei quantas mulheres, ah, por que não pensei nisso? (p. 407-8)

O desvario de um “sem-fim de paixões” será a mola propulsora que a conduzirá à ruína, como a que não apenas morre, mas também assassina a si mesma por amor. Tal maldição foi pressagiada pela “boca santa” da personagem de Simeona, cuja figura se reveste de uma peculiar excentricidade: “Cadela gigantesca é que virá, homem de cornos negros, ai quem? Apenas Simeona A Burra, mulher assim chamada porque está sempre montada numa burra amarela, vendendo água aos andarilhos da mata” (p. 385). Erguida sobre uma “burra amarela”, a caracterização de Simeona lembra a de Sileno,18 preceptor e companheiro fiel de Dioniso, que aparece alçado a um asno. Este semideus é conhecido pela sua inestimável sapiência. Maria Matamoros depara-se com essa realidade excruciante, descortinada por meio das palavras de Simeona. Esta surge como uma espécie de “demônio” ou de daímon socrático, quer dizer, uma entidade intermediária entre deuses e homens; que, por isso, carrega a “fama de vagar no alto céu da morte, conversar com esses de espuma, com anjos”. Ademais, essa Sibila,19 com a sua “fama de sábia e curadora”, emite também o seu vaticínio: “era muito prodigiosa de milagres, muito amada, até que fez a profecia negra – sangue numa casa da aldeia sujando para sempre as mãos da nossa gente” (p. 386).

Tal “profecia negra” destina-se a Maria, conforme ela própria indica por via de sinais que precisam ser decifrados: “ai Maria, penso que é tua a casa onde sangue se via, mulher e cadela há de morrer e parir” (p. 389). Matamoros é acometida por um delírio dionisíaco. No caso desta, ela se entrega, em correspondência com as bacantes tebanas, também chamadas de mênades furiosas, a um amor cego e destrutível, que alimenta o seu desejo de aniquilamento sobre os amantes – o casal formado por Meu e Haiága. Todo ódio dirigido contra Dioniso, que consome as mulheres na tragédia de Eurípides, é convertido pelo deus em amor, enlouquecendo-as. Em relação à personagem de Agave, a sua cólera enraivecida adquire tons trágicos, pois, ensandecida, abate o seu próprio filho, Penteu.20

Em contrapartida, a ambivalência complementar entre ódio-amor de Maria incute-lhe, na posição de filha, uma aversão cega sobre a sua mãe, almejando intimamente a sua morte. A maldição resulta, de início, quando ela se relaciona com Meu – o fruto proibido –, o qual cruza em si mesmo as esferas do divino e do humano ou, ainda, do seráfico e do sexual, já colocadas em jogo sob a designação híbrida de “homem-anjo”. Por ser uma entidade sublime, toda forma de contato é interditada. Nessa direção, situa-se o alvitre de Simeona: “é belo como o corpo de Deus, maravilha rara, que perfume na terra me vem desta cara [...] escuta-me Maria, é homem-anjo, nem deves tocá-lo” (p. 387). Ou quando a adverte com prudência: “ama somente o que te é parecido, não grudes à carne a espuma do pensamento de outro homem, liga-te a um dos nossos” (p. 391). Todavia, Matamoros possui uma natureza eminentemente transgressiva, diante da qual exerce a volúpia do seu “tocar pegajoso”, devassando o intocável, profanando o interdito atinente à “beleza de arcanjos” – o corpo de Meu:

com esta boca três mil vezes bendita te digo que é beleza excessiva para tomares posse, que hão de amá-lo todas as mulheres porque não é homem carne, é pensamento-corpo sonhado por um homem de outras terras, homem que deseja formosura de alma porque tem vida de penumbra e tediosa, ai Maria, vives com alguém feito de matéria nova, com alguém que existe dentro de uma cabeça que tem fome de muita beleza, cabeça que se ocuparia das letras, que não pôde usá-las por fraqueza, deveria ter sido um cantador, entendes, e não pôde cumprir destino coroado, vives com a alma pensada de outro homem, e tem nome esse com que vives, esse sonhado de outro (p. 387).

Meu configura-se tanto como uma dádiva divina, em razão de ser “resíduo da tua santidade”, quanto a causa primeira dos seus infortúnios devido à inveja e à cobiça das outras mulheres da aldeia. Na embriaguez dos sentidos, a hybris cometida por Maria foi a de se apossar de uma “beleza excessiva”, digna dos deuses. Inclusive, em “Tadeu (da razão)”, Extenso observa o erro de Matamoros por “distorcer os atos permitidos” (p. 364). Em consequência dessa transgressão, esse “presente de carne” acaba tornando-se a causa da sua perdição: “Se volúpia me fiz na meninice, nem na adolescência descansava, teria sido melhor perecer do que levar às costas este mundo manchado de lembranças, teria sido graça não conhecer aquele que me fez conhecer, e de minha mãe Haiága, fez a desgraça” (p. 370).

Em Totem e tabu (1913), Freud defende que paira sobre o fenômeno do tabu – em termos gerais enquanto elemento sagrado, misterioso ou perigoso – uma fundamental proibição, que “é contra o tocar e daí ser às vezes conhecida como ‘fobia do contato’, ou ‘délire du toucher’. A proibição não se aplica meramente ao contato físico imediato mas tem uma extensão tão ampla quanto o emprego metafórico da expressão ‘entrar em contato com’” (1999, p. 36). A imposição de uma interdição em torno do tabu não apaga o desejo irresistível de violá-lo. A violação uma vez sendo cumprida pode e deve ser expiada, em alguns casos pela via da renúncia. Mesmo sabendo da sua inevitável “desgraça”, Matamoros infringe os “atos permitidos” não apenas por entrar em contato, mas bem como por se apoderar da matéria santa que deveria permanecer imaculada; não sendo capaz, por conseguinte, de se desvencilhar de Meu. A cobrança pela sua expiação não tardará a chegar – nem que seja pelo seu próprio oferecimento em autossacrifício.

Diante desse páthos arrebatador de Maria, o estudo de Davi Andrade Pimentel (2009, p. 185) apresenta os pontos de contato entre os modos de construção da narrativa “Matamoros (da fantasia)”, entendida como uma “escrita da ordem das paixões, do drama trágico”, e das tragédias Oréstia, de Ésquilo, Édipo Rei, de Sófocles e Medeia, de Eurípides. O fio condutor percorre a existência dessas personagens femininas, que, marcadas pela perfídia e pela desgraça, sucumbem ao excesso de uma razão insensata: a fúria homicida de Clitemnestra contra Agamêmnon como uma forma de vingança pelo sacrifício de Ifigênia, a filha do casal; a presunçosa vontade humana de Édipo que não o impede de escapar da maldição divina pela concretização do incesto com a mãe e do assassínio do pai; o ciúme cego de Medeia, que, traída pelo seu esposo Jasão, pune-o matando os seus próprios filhos. Desde a sua infância, Matamoros convive com os demônios da sua carne e do seu sentir demasiado e, como uma bacante deliberada, comunga com a natureza em estado orgiástico. Segundo o crítico, a sua ruína, que será enviada pelos deuses em forma de ser masculino, deve-se à entrega desmedida ao culto dionisíaco e à possibilidade de alcançar um gozo extraterreno:

Os seres olímpicos não suportavam o poder de transcendência do culto dionisíaco, por isso os deuses, enfurecidos, mandam à Matamoros um homem-anjo-apolíneo-aparência, Meu, e uma paixão. Meu seria a arma letal para destruir Matamoros, uma vez que era do tocar os homens e de ser tocada por eles que a heroína conseguia, também, elevar-se ao sublime além-divino (Pimentel, 2009, p. 198).

Em meio à contumaz disputa entre as divindades do Olimpo, diante da qual se reconhece em relação a Dioniso a sua condição de estrangeiro e, por assim dizer, de elemento estranho ao círculo olímpico dos deuses homéricos, Meu é ofertado a Maria, de forma ambígua, como um “presente-destruição dos deuses” (2009, p. 185), com a finalidade de conferir-lhe uma lição pelo seu erro trágico21 por intermédio da dor ou, como consta na sentença esquiliana, no saber pelo sofrer. Tal como acontece com Fedra e Medeia – a quem o amor foi sempre o motivo das suas respectivas desventuras –, a paixão de Matamoros é despertada por Afrodite. O papel conferido a esta divindade é o de enviar-lhe tal dádiva encantadora por via de um “corredor de águas” ou da “espuma do pensamento” de Tadeu, já que a própria deusa nasceu do elemento das espumas – conforme a Teogonia de Hesíodo –; ao passo que cabe a Apolo elaborar um “homem-anjo-apolíneo-aparência” à imagem da sua perfeição solar e harmônica.

Retomando a trama narrativa, Maria Matamoros acredita que Haiága e Meu estão mantendo um sórdido relacionamento amoroso às escondidas. Com a alma ulcerada pelo “dilaceramento ciumoso”, Matamoros é assombrada intensamente pelo espectro da (sua) morte: “ouvia do silêncio uns assovios de boca murcha repetindo uns rosários, palavras-fantasia destacavam-se: mormaria, pedaços feitos de morte e de seu nome, amormór, de morte ainda e de pesado amor” (p. 392). A combinação entre o tríptico verbal Maria, amor e morte sugere que o sentimento demasiado da paixão a encaminhará para o seu próprio esfacelamento, tal como Antígona. Uma das provas que confirmam a suspeita de traição de Meu com Haiága realiza-se na canção entoada por este, talvez aprendida na intimidade compartilhada no leito amoroso: “alguém canta numa voz grave, a melodia é a mesma, quem pode ser assim de nossa família sabedor de um canto há anos enterrado no coração de mãe, tão recente de luz o lamentoso canto e agora cantado tão bem noutra garganta?” (p. 381). Outro indício manifesta-se no episódio em que a própria Haiága deixa escapar que, no seu âmago em transformação, concebe o fruto divino, ou seja, gerado pela matéria semelhante à de Meu:

Digo que o filho que trago na barriga há de se parecer com ele, porque, não te enojes, Maria, não me parece pecado desejar para os nossos uma beleza alheia se a desejada nos parece divina, desde o primeiro dia quando trouxeste à casa essa abençoada maravilha, pensei: um filho com esta cara, que mãe não desejaria? (p. 402).

Na construção da estrutura da narrativa, tais evidências exercem a função de reconhecimento22 da culpa do casal Haiága-Meu. Maria parece cair em si a respeito da sua lúgubre sina e do quanto Meu, o seu “paraíso de carne”, não passava de um aparente engano, acompanhando-a por uma trilha da punição em consequência da sua hybris: “um todo emaranhado de corvos dentro do meu sangue, de castigo sim me queriam, de desgraça, desço rastejante, as pedras se enfiando na minha triste carne” (p. 382). A grandeza trágica de Matamoros, e também de Antígona, transparece na “dignidade da queda”23 ou no seu reconhecimento da forma galopante da “desgraça” inevitável que tombará sobre ela e, por extensão, do mau-agouro que se abaterá sobre os habitantes da aldeia. Essa grandeza se consuma na negação de si mesma, tal como a divindade que se dispõe ao autossuplício em prol da humanidade; ou, ainda, à luz de uma heroína trágica, cuja morte se configura como o ato culminante da sua experiência erótica, ou melhor, coroa o desenlace apoteótico da sua própria existência. Portanto, ela se oferece em sacrifício como um bode expiatório. Aqui, marca-se a queda decisiva de Maria do seu éden idealizado por meio da serpente do ciúme e da sua entrega a uma nova possibilidade de viver a sua carnalidade em uma realidade. Ela põe-se a confabular uma “estória”, na qual, em sua fantasia-paixão, comete o incesto para com o rei, pai e esposo da rainha, a sua mãe. Estas duas personagens nada mais são do que elaborações ficcionais de Meu e de Haiága.

Na sua “verdade-invento”, que a “fez amante nova e mais gemente nessa noite”, Matamoros expõe – além do seu expresso desejo matricida – o seu “ato fenomenoso”, quer dizer, o seu impulso incestuoso pelo amante-pai, formulando uma triangulação amorosa em correspondência com o complexo de Édipo. No verter de sangue a repelo, o autoflagelo de Maria, impregnado de uma certa altivez inflexível e da selvageria sangrenta de um aniquilamento, assinala a sua expiação diante da hybris instaurada pelo seu afã incestuoso24 – o seu crime – ou mesmo a possibilidade de libertá-la da polução e da impureza. A cena do autossacrifício de Matamoros encena-se, em súmula poética, no seguinte dístico do epigrama 85, de Catulo (1996, p. 150):

Odeio e amo. Talvez queiras saber ‘como?’

Não sei. Só sei que sinto e sacrifico-me.

Tal cena não se figura denotativamente na narrativa em que protagoniza – à semelhança das tragédias gregas que, em sua maioria, deixam os acontecimentos de violência fora do espaço teatral ou textual –, mantendo-se apenas sugerida. Ecoando os versos do poeta latino, Maria Matamoros é arrebatada por “agigantados sentimentos” antitéticos – ora “ama”, ora “odeia” – em uma alusão ao estatuto paradoxal de Eros. De modo a aplacar a visceralidade da sua coita amorosa e de rematar o ápice do seu percurso de grandeza, ela imita a seu modo a morte gloriosa do guerreiro e toma para si a alternativa ou a solução fatal de imolar-se, não enforcando-se como Antígona, mas enterrando-se um punhal no seu “meio sagrado” – o centro. Se Medeia assassina os seus próprios descendentes para vingar-se de Jasão, Maria aniquila em si mesma qualquer possibilidade de procriar. A saída encontrada traduz-se criativamente na liberdade de inventar ou de parir pela instância da palavra uma fantasia-paixão. À vista disso, Matamoros busca a narrativa como uma forma de purificação, de cura para a sua ferida ou de “uma nova armadura para suportar manhãs madrugadas e noites” (p. 411).

Considerações finais

O fascínio de Hilda Hilst pelo imaginário grego transborda-se no seu conjunto literário, cujas apropriações mobilizam referências atinentes ao universo da mitologia a fim de recriá-las textualmente. São exemplares os poemas que compõem “Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio”, da obra Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). Ou, no caso da prosa de ficção A obscena Senhora D (1982), cuja protagonista Hillé coloca-se como uma “Édipo-mulher”, que no seu “acúmulo de perguntas” procura descobrir aquilo que lhe é intangível: as suas próprias origens. Assim como acontece nas tragédias gregas, as personagens hilstianas são tomadas por violentos arrebatamentos de tudo aquilo que se faz em demasia, a saber: a luxúria, o ciúme, o incesto, a cólera, a loucura e o riso. Elas se submetem à busca de uma realidade essencial dos seres e das coisas, nem que isso signifique render-se ao sofrimento, ao desamparo e, por vezes, à expiação e ao sacrifício, porquanto o “herói trágico sempre se representa iluminado pela grandeza da perda” (Melo e Souza, 2001, p. 122).

Muitos séculos separam a tragédia Antígona, de Sófocles, e a narrativa “Matamoros (da fantasia)”, de Hilda Hilst. Contudo, o mesmo fio condutor as une: o páthos arrebatador. Ainda que em diferentes temporalidades e cenários – uma circunscrita a um governo autocrático em Tebas, a outra a uma paisagem bucólica e atemporal –, Antígona e Maria Matamoros protagonizam o impulso de um querer absoluto e, sob a marca da transgressão, não medem os perigos iminentes para atender plenamente o seu desejo erótico. Desse modo, as suas respectivas jornadas são coroadas pela “grandeza da perda” e, acima de tudo, sacrificadas em prol da urgência do seu amor: uma para consumar o encontro carnal, outra para redimi-lo.

Distanciando-se da interpretação hegeliana da peça, em Antígona subsiste uma centelha erótica. Afinal, não se pode perder de vista que ela é descendente direta de Édipo. Enredada por laços incestuosos, Antígona segue a sua sina e faz do túmulo a sua alcova nupcial, conduzindo-se ao encontro de Polinices por entre as sombras da mansão dos mortos. Ela mantém-se resoluta no propósito de honrar o corpo do irmão a fim de cumprir os preceitos divinos, em detrimento das leis dos homens. A indefinição quanto ao relacionamento entre os dois irmãos estende-se, como sugere o célebre coro conhecido como “Ode ao homem”, à própria natureza dos seres humanos, ora exaltada na sua capacidade de estabelecer o domínio por meio das palavras, dos pensamentos e das leis, ora insinuada como mero joguete dos desígnios divinos. Antígona entrega-se a uma realidade governada pelos deuses e à vigência do seu destino implacável – para além do entendimento humano –, ao passo que Maria Matamoros encontra o refúgio possível na fabulação, isto é, em um mundo ficcional, aberto em possibilidades, para a construção de uma nova narrativa-existência.

Tanto Antígona – pela rebeldia e intransigência obstinada às disposições do poder estatal – como Creonte – pela insensatez e a tirania da sua vontade – recebem o castigo no encerramento da peça: a primeira, mísera e emparedada viva, não negocia a sua obediência às leis eternas e despede-se dos seus dias ao cometer suicídio por enforcamento; o segundo perde, de modo abrupto, a sua esposa Eurídice e o seu filho Hemon, os quais acabam também por agredir fatalmente a si mesmos. A tragédia de Sófocles repudia qualquer descomedimento no tocante ao orgulho, à presunção e à arrogância. Por conseguinte, o coro final de Antígona opera um elogio à sabedoria e, juntamente com a sua posse, à moderação.25

A narrativa de Hilda Hilst e as suas personagens, pelo contrário, celebram a via do excesso. Ao se relacionar com Meu, Maria Matamoros reconhece o risco que corre de perder-se na vertigem abismada do amante, visto que é acometida pelo furor do sentimento amoroso alimentado por esse homem de procedência divina. Incendiada pela sua essência bacante, a paixão coroa o seu ímpeto de transgressão, em que experimenta um gozo interditado à sua natureza humana. Além disso, tal furor se exacerba ainda mais quando o relacionamento se amplia em direção a uma triangulação com a sua mãe Haiága. Ao contrário da protagonista da peça sofocliana, Matamoros profana as relações familiares e, em seu desejo herético, a própria santidade inviolável do corpo de Deus. Portanto, a sua volúpia traduz-se como expiação da sua hybris, de sorte que a sua paixão se plenifica no seu ato de autoflagelo. A tragicidade hilstiana encena, em absoluto, a dimensão contraditória da existência: “Não sentes então, numa soma final, que é mais dor do que alegria o existir?” (p. 402).

As tragédias iluminam os paradoxos da vida humana e a sua consciência dilacerada diante de situações extremas. Se, por um lado, contemplam o homem em sua grandeza heroica; por outro, reconhecem a sua raiz de fragilidade, suscetível ao sofrimento. O apelo às potências de Eros e de Dioniso apenas intensificam a ambiguidade inerente à dinâmica amorosa e, logo, à própria existência, feita de excessos e de limites, de gozo e de sacrifício, de vida e de morte. Face a uma realidade hostil e para a qual muitas vezes não existe um sentido possível, as trajetórias de Antígona e de Matamoros revelam toda a sua resiliência em defender os seus ideais e, sobretudo, os seus laços de afeto. Em suma, as experiências dessas protagonistas testemunham a condição humana no seu gesto de maior coragem – o amor.

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Notas

1 Em seu trabalho A parte maldita (1949), Bataille recupera o significado etimológico de sacrifício a fim de associá-lo, em termos constitutivos, à revelação do sagrado, bem como ao princípio da perda: “Os cultos exigem um desperdício sanguinolento de homens e de animais de sacrifício. O sacrifício não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a produção de coisas sagradas. Antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda: o sucesso do cristianismo, em particular, deve ser explicado pelo valor do tema da crucificação infamante do filho de Deus, que leva a angústia humana a uma representação da perda e da desgraça sem limite” (Bataille, 2016, p. 22, grifos do autor).
2 A palavra grega páthos relaciona-se etimologicamente com o sofrimento, a doença, a afecção da alma, a paixão. No ensaio “O conceito da paixão”, Gerard Lebrun (1987, p. 18) percorre algumas apreensões teóricas formuladas ao longo do pensamento filosófico. De um modo geral, a paixão convoca uma reação a um agente exterior, isto é, uma experiência na qual o homem padece: “a paixão é sempre provocada pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu vivo na dependência permanente do Outro”. Sob essa perspectiva, páthos reverbera-se na fronteira indecisa entre a paixão e a doença: “compreendido como um afeto mórbido que posso vir a controlar, o páthos carrega originalmente dois conceitos bem diferentes: o passional, que faz surgir a ética, e o patológico, que remete ao diagnóstico médico” (p. 30).
3 Tal vocábulo vem do grego míasma, que significa “mácula”, em oposição ao sagrado. Segundo Walter Burkert (1993, p. 168), “o conceito da pureza especificamente cultual é definido quando certas perturbações mais ou menos graves da vida normal são entendidas como míasma. Tais perturbações são o acto sexual, o nascimento, a morte e, sobretudo, o homicídio”. Por essa razão, Antígona e Matamoros subvertem esse estado de pureza, visto que a primeira entra em contato com a esfera do incesto e a segunda, com a do sexo e da morte.
4 Optou-se aqui pela tradução dos versos feita pelo Guilherme de Almeida. Patricia J. Johnson observa em Antígona uma inclinação a uma devoção excessiva, que se verifica com o seu pai no exílio, em Édipo em Colono, e se desloca em direção a Polinices. Comentando estes versos, a autora discute que, paralelamente ao sepultamento do irmão, a morte estrutura, como um elemento espectral, o casamento de Antígona: “Ela descreve o seu ‘futuro’ com o morto Polinices como ele fosse ser o seu esposo no Hades” (Johnson, 1997, p. 392, tradução livre).
5 O verso 523 foi traduzido por Guilherme de Almeida da seguinte maneira: “Não nasci para o ódio: apenas para o amor”.
6 No que tange aos desdobramentos interpretativos da leitura de Lacan a respeito da tragédia de Sófocles, Terry Eagleton (2003, p. 234, tradução livre) defende que “não é, então, como Hegel imagina, que a lei e o desejo em Antígona estão em confronto, mas que a sublimidade da lei moral é o desejo de Antígona”.
7 Segundo Albin Lesky (2015, p. 157), no tocante à força imperativa desse deus, “trata-se do Eros cósmico, que tem poder sobre o homem e o animal e até mesmo sobre os deuses, e que rege o universo inteiro”.
8 Sobre este aspecto, Nicole Loraux (1992, p. 29) afirma que “se o desfecho desastroso da Antígona, como o de muita ação trágica, pode ser posto sob a sua autoridade, o ponto importante não deixa de ser que essa invocação ao deus figura em um coro: ao pedir assim a vinda de Dioniso, o coro da Antígona, que sem dúvida creditava saudar uma esperança, anuncia na realidade que, nas catástrofes finais, é Dioniso purificador – presente no teatro, ausente da intriga – que sobrevém; e, inteiramente consagrado a invocar o deus como corego cósmico, esse canto manifesta no mais alto grau o que, em outros coros de tragédia, permanece no estado de esboço ou é apenas sugerido: o afloramento de uma temática dionisíaca como auto-apresentação do gênero trágico por ele mesmo, maneira de despertar o espectador para a plena consciência de sua posição de espectador-entendedor no teatro”.
9 Expressão emprestada do estudo de Karl Reinhardt (1971, p. 124, tradução livre) acerca das tragédias de Sófocles: “Antígone, ao contrário, vai diretamente em direção ao reino da morte: como Ajax [evoca] a luz e a paisagem, é o quarto nupcial do Hades, são as mortes do seu sangue que ela evoca, tal é o seu reino”.
10 Seguem os versos traduzidos pelo poeta paulista: “O Hades, que a todos atormenta,/ arrasta-me/ viva às margens/ do Aqueronte e sem/ himeneu, sem que um hino nupcial antes me houvesse/ celebrado; sim, o Aqueronte é meu noivo.” (Antígone, 811-6).
11 Na tradução de Guilherme de Almeida, os versos se escrevem do seguinte modo: “Morto junto à morta, enlaçados, assim/ cumprem o ritual de suas núpcias no Hades” (Antígone, 1240-41). Ainda nesta tradução, quando Hemon questiona Creonte sobre a sua decisão; em resposta, o pai já lhe antecipa os eventos futuros: “Mas nunca haverás de desposá-la viva” (750).
12 Tal posição dispõe-se na contramão da interpretação elaborada por Jean-Pierre Vernant (1999, p. 19), cuja argumentação articula que Antígona, em detrimento das emanações de Eros, não é capaz de se desvencilhar do seu enlace familiar e, assim, nada mais lhe resta do que seguir a sua sina – a morte: “Antígona não soube ouvir o apelo para desligar-se dos ‘seus’ e da philía familiar abrindo-se ao outro, para acolher Eros e, na união com um estranho, por sua vez, transmitir a vida”.
13 Creonte toma uma posição categórica ao isolar Antígona como uma emparedada viva. Na tradução de Guilherme de Almeida, o governante afirma: “Lá talvez, rogando ao Hades, seu deus único,/ possa obter a graça de escapar à morte;/ ou aprenderá, pelo menos, que é esforço/ inútil honrar os deuses inferiores” (Antígone, 777-80).
14 A partir daqui, as citações referentes às narrativas serão identificadas somente pelo número correspondente da página, valendo-se da seguinte edição: Hilst, Hilda. Da prosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 2 v.
15 Para René Girard (2008, p. 102), Édipo, por ser o grande causador das desgraças que acometem a população de Tebas, converge em si a imagem do mal que precisa ser expurgado, em virtude disso o “seu papel é o de um verdadeiro bode expiatório humano”.
16 É incontornável a referência bíblica a Jesus, àquele que enuncia no Evangelho Segundo São João (8, 12): “De novo, Jesus lhes falava: ‘Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Bíblia, 1995, p. 2006).
17 Em relação a esta expressão, Eliane Robert Moraes (2019, p. 110-1) aprofunda, em termos interpretativos, a sua composição, mobilizando um complexo jogo de referências: “é precisamente nesse ponto de toque entre a baixeza da blasfêmia e a elevação da santidade que se pode reconhecer a obscura figura da ‘sibilina serpente’ evocada na novela Matamoros, cujos contornos remetem aos segredos que se escondem sob a misteriosa saia. Incluída no volume Tu não te moves de ti, de 1980, essa narrativa se alimenta de matrizes bíblicas, o que por certo permite associar sua enigmática víbora ao princípio do mal encarnado na mulher. Mas a criatura ganha ainda maior complexidade quando aproximada às sibilas, profetizas antigas a quem se atribuía a intuição das verdades superiores”.
18 Tradicionalmente, Sileno é representado como um homem velho, montado em um asno ou amparado pelos sátiros no cortejo báquico (“tíaso”), na maioria das vezes bêbado. Da sua embriaguez emanam-se palavras da mais vasta sabedoria. Era considerado um semideus, em virtude de ser filho de Pã ou de Hermes. De acordo com o Dicionário da Mitologia Grega e Romana, “Sileno era muito feio, o nariz adunco, os lábios grossos, o olhar taurino. Tinha um ventre enorme e representavam-no habitualmente montado num burro, no dorso do qual, muitas vezes, se aguentava com grande dificuldade, de tal modo estava embriagado” (Grimal, 2005, p. 418).
19 A Sibila é a designação consagrada àquelas que detêm o dom da profecia e da adivinhação. Consoante o Dicionário da Mitologia Grega e Romana (Grimal, 2005, p. 416), “é, essencialmente, o nome de uma sacerdotisa encarregada de dar a conhecer os oráculos de Apolo”.
20 Além dos silenos e dos sátiros, o cortejo de Dioniso é composto por mulheres delirantes ou em fúria em função do êxtase dionisíaco. Em As bacantes, o rei de Tebas Penteu incorre em hybris ao não somente negar o fato de que Dioniso fosse realmente filho de Zeus, como também ao tentar se sobrepor ao poder absoluto de um deus. Em forma de pena, Dioniso determina “Que baixe ao Hades/ ínfero, pelas mãos da própria mãe/ dilacerado! Saberá que Zeus/ gerou à perfeição um deus: Dioniso,/ entre terribilíssimo e gentil” (857-61). As irmãs de Semele e, sobretudo, Agave haviam igualmente contestado a sua paternidade. Destarte, como punição, o deus as castiga com a loucura e as envia para o monte Citero para praticarem o ritual báquico, com os seus hinos e danças, portando tirsos e com as cabeças coroadas por ramos de hera – insígnias de Dioniso. A ordem deste se cumpre e o coro louco desmembra violentamente o corpo de Penteu; inclusive, como uma espécie de despojo de guerra, a “mísera cabeça,/ por mero acaso quem a leva é a mãe,/ infixa à cúspide do tirso” (1139-41). No desfecho da tragédia, a ignomínia incide sobre o palácio; reafirmando, em absoluto, a sua pujança divina, Dioniso compele Agave a um exílio-errante.
21 Na Poética, de Aristóteles, a situação trágica, por excelência, acontece quando o ser humano “cai no infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres” (XIII, 1453 a7). Sob esse viés, a desdita de Matamoros advém da sua conduta desregrada ao se relacionar com um “homem-anjo”, ultrapassando os limites humanos.
22 Ainda de acordo com a Poética, o reconhecimento constitui-se como um elemento qualitativo pertencente ao mito da tragédia. Segundo o filósofo grego, tal elemento “é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita” (XI, 1452 a30). No caso de Matamoros, o reconhecimento de que foi traída advém dos sinais oferecidos tanto por Haiága quanto por Meu
23 Para Albin Lesky (2015, p. 32, grifos do autor), o efeito trágico “se poderia descrever como a dignidade da queda”.
24 Em Estruturas elementares do parentesco (1949), Lévi-Strauss aborda a proibição do incesto como um fenômeno dotado de um caráter de universalidade, resultado de regras da exogamia. Para o etnólogo, a interdição do incesto marca a passagem da natureza à cultura, ou melhor, do fato natural da consanguinidade ao fato cultural da aliança. Abalizada por uma relação social, o casamento entre dois indivíduos passa necessariamente pelos termos de um determinado grupo. “Considerada em seu aspecto puramente formal, a proibição do incesto, portanto, é apenas a afirmação, pelo grupo, que em matéria de relação entre os sexos não se pode fazer o que se quer” (1982, p. 83, grifos do autor). Em relação à narrativa hilstiana, o excesso cometido por Maria Matamoros reside em, além de tocar na matéria sagrada de Meu, infringir a interdição instalada em torno do acontecimento incestuoso. Tal ousadia em atender aos seus desejos mais imperiosos, ainda que pela via da fantasia, causa prejuízo não somente para a ordem coletiva, como principalmente para si mesma.
25 Optou-se por citar os versos da advertência final do coro na tradução de Guilherme de Almeida: “Há muito que a sabedoria é a causa primeira/ de ser feliz. Nunca aos deuses/ ninguém deve ofender. Aos orgulhosos/ os duros golpes, com que pagam as suas/ orgulhosas palavras, na velhice ensinam a ser sábios.” (Antígone, 1348-53).
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