Resenha Crítica| Book Review

PÉREZ GONZÁLEZ, Jordi. Sumptuary specialists and consumer elites in Rome’s world order. Collecció Instrumenta (75). Barcelona: Universitat de Barcelona Editions, 2021. 369p. ISBN: 978-84-9168-769-6.

Filipe Noe Silva
(Unicamp). filipe.hadrian@gmail.co, Brasil

PÉREZ GONZÁLEZ, Jordi. Sumptuary specialists and consumer elites in Rome’s world order. Collecció Instrumenta (75). Barcelona: Universitat de Barcelona Editions, 2021. 369p. ISBN: 978-84-9168-769-6.

Classica - Revista Brasileira de Estudos Clássicos, vol. 35, núm. 1, pp. 1-4, 2022

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Recepción: 26 Enero 2022

Aprobación: 02 Febrero 2022

Em um conhecido epigrama, Marcial (Epig. 2.29) reprovava um indivíduo que, sentado na primeira fileira do Teatro de Marcelo, ostentava inúmeros itens de luxo. Suas joias, sua capa (púrpura?) tingida em Tiro e seu perfume, de acordo com o epigrama, eram notáveis mesmo quando vistos à distância. Bastaria, no entanto, “ler” as marcações na fronte desse homem para constatar sua vivência sob o jugo da escravidão.1

Na construção deste personagem, o poeta latino, conhecido por suas críticas aos mais diversos grupos sociais (Cesila, 2017), demonstrava particular aversão à ascensão econômica dos libertos. Embora rico e supostamente posicionado na plateia em um lugar reservado a senadores, o indivíduo alforriado não poderia abdicar de sua condição de ex-escravo. Sua condição de usurpador também pode ser depreendida a partir da incompatibilidade, sugerida por Marcial, entre a suntuosidade dos objetos e a origem servil do personagem em questão. A naturalidade com que o autor dos Epigramas associa os itens de luxo às elites romanas, por sua vez, revela que o consumo de joias e objetos de luxo não estava restrito a libertos enriquecidos. Ao contrário, sua crítica também pode se referir, ainda que de maneira metafórica (Joly, 2004), ao comportamento servil das elites quanto ao consumo desenfreado dos objetos de luxo.

Embora faça menção a uma situação fictícia, o epigrama em questão nos revela que a produção, o comércio e o consumo de objetos suntuosos, em Roma, eram amplos e conectavam os mais distintos grupos sociais. Uma compreensão pormenorizada sobre este tema foi proposta no estudo Sumptuary specialists and consumer elites in Rome’s world order (2021), de autoria do historiador Jordi Pérez González. Os sete capítulos da obra estão distribuídos em três segmentos principais, além da Introdução, que examina os pressupostos históricos e culturais subjacentes à ideia de luxo.

A primeira parte da obra (p. 27-90), composta pelo primeiro e segundo capítulos, discorre sobre as condições políticas, econômicas e geográficas, dentro e fora da capital do Império, que possibilitaram a feitura e distribuição de joias e artigos preciosos entre os romanos. O primeiro capítulo examina os espaços utilizados para comércio na cidade de Roma, enfatizando as mudanças topográficas empreendidas à época de Augusto (e nas décadas seguintes) no que se refere à localização dos mercados e às vias utilizadas para compra e venda dos artigos de luxo. Após examinar as condições internas para o desenvolvimento do comércio de objetos suntuosos, Pérez González, no segundo capítulo, discorre sobre as rotas, marítimas e terrestres, que conectavam Roma às civilizações da África e da Ásia, e que permitiram um intercâmbio de ouro, prata, seda, pérolas, joias, gemas e outros objetos de valor entre as civilizações envolvidas. Por meio da articulação de fontes indianas, chinesas, gregas e latinas a respeito das trocas comerciais, o estudioso sugere, na esteira dos estudos de Stanley Milgram, uma conexão de mundo pequeno (small-world network) congregando cidades e impérios distintos, mas ligados, também, pela produção e transporte de mercadorias de luxo.

A segunda parte (p. 93-179) congrega cinco capítulos sobre a produção dos artigos luxuosos na cidade de Roma. Por meio da leitura e interpretação de inscrições funerárias, o capítulo terceiro examina a pluralidade semântica e as várias especializações associadas aos trabalhos com ouro. A abordagem prosopográfica proposta por Pérez González, ademais, permite associar os artesãos, em sua maioria libertos, às famílias nobres da capital do Império. Oriundas de territórios circunvizinhos ao Oceano Índico, ao Golfo Pérsico, de regiões da Trácia e da Mauritânia, as pérolas constituem o cerne da investigação apresentada no quarto capítulo. Em consonância com as narrativas de Plínio o Velho, a leitura epigráfica, uma vez mais, possibilita uma aproximação mais acurada sobre a atuação dos margaritarii, os comerciantes de pérola, em diversas localidades da cidade de Roma.

Utilizadas pelos ricos com finalidades ornamentais, as pedras preciosas constituem o objeto de estudo do quinto capítulo. De maneira similar à epigrafia referente aos artesãos que manipulavam o ouro, a diversidade terminológica evidenciada nos trabalhos com as gemmae pode sugerir tanto uma divisão do trabalho quanto a especialização de tarefas por parte dos artesãos que as manipulavam. A confecção, comércio e utilização de tecidos em cor púrpura são examinados no capítulo sexto: em meio à análise sobre a produção dos corantes naturais e das leis que restringiam seu uso às elites, o registro epigráfico revela os espaços de trabalho de inúmeros purpurarii e vestiarii em Roma. Analisada no sétimo capítulo, a atuação laboral dos unguentarii, associados à elaboração de perfumes, pode ser observada em inscrições e monumentos diversos: sua presença no monumento funerário de Lívia, ademais, sugere o consumo desses produtos por parte de integrantes da família imperial.

A terceira parte (p. 183-290) apresenta um catálogo contendo todas as inscrições latinas utilizadas na investigação. Merece destaque a organização do corpus, tanto pela quantidade de informações referentes aos documentos epigráficos (literatura, cronologia, local onde a inscrição foi encontrada, local atual de preservação etc.), quanto pela disposição temática das inscrições, com ênfase nas denominações laborais. Esta proposta vem a contribuir com os estudos sobre o trabalho no mundo antigo (Joshel, 1992), sobretudo no que se refere à elucidação das profissões e especializações registradas nas inscrições latinas. Mesmo que direcionada a epigrafistas especializados, a coletânea também pode beneficiar estudantes iniciantes no estudo do latim e das inscrições. O cotejo de fontes gregas e latinas com os escritos de Hou Hanshu e da literatura Tâmil, sem dúvida, constitui uma iniciativa original e ainda pouco usual na escrita da história antiga.

Adepto de uma história da antiguidade globalizada, Pérez González examina a produção, comercialização e consumo dos objetos de luxo no império romano sob uma perspectiva abrangente, relacional e que coloca em evidência os múltiplos personagens, mulheres e homens, nobres e subalternos, associados aos produtos suntuosos. Trata-se, ademais, de um estudo que colaborará com a historiografia contemporânea (Bernal, 1993; Bernal, 2005; Vlassopoulos, 2007; Garraffoni, 2008; Silva, 2011) para a superação de uma história antiga que outrora se constituiu sobre bases eurocêntricas, aristocráticas, racistas e conservadoras. Do mesmo modo, seguramente servirá de referência para investigações ulteriores sobre este tema, em específico, e afins.

Documentação Antiga

APULEIO. O Asno de Ouro. Edição bilíngue. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora 34, 2019.

Martial. Epigrams, Volume I: Spectacles, Books 1-5. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993.

PETRÔNIO. Satíricon. Tradução de Cláudio Aquati. São Paulo: Editora 34, 2021.

Referências

BERNAL, Martin. Atenea negra: las raíces afroasiaticas de la civilización clasica. Barcelona: Crítica (Grupo Grijalbo Mondarori), 1993.

BERNAL, Martin. A imagem da Grécia antiga como uma ferramenta para o colonialismo e para a hegemonia europeia. In: FUNARI, Pedro Paulo Abreu (org.). Repensando o mundo antigo. Textos Didáticos n. 49. Campinas: IFCH/Unicamp, 2005.

CAIROLLI, Fábio Paifer. Marcial brasileiro. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH/USP, 2014.

CESILA, Robson Tadeu. Epigrama. Catulo e Marcial. Coleção Bibliotheca Latina Campinas: Editora da Unicamp, 2017.

GARRAFFONI, Renata Senna. História antiga e as camadas populares: repensando o império romano. Separata da Revista Cadmo, Lisboa, n. 18, p. 169-80, 2008.

JOLY, Fábio Duarte. Tácito e a metáfora da escravidão. Um estudo de cultura política romana. São Paulo: EDUSP, 2004.

JOSHEL, Sandra Rae. Work, identity and legal status at Rome: a study of occupational inscriptions. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1992.

SILVA, Glaydson José. Os avanços da história antiga no Brasil. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, 2011.

VLASSOPOULOS, Kostas. Unthinking the Greek polis: ancient Greek history beyond the eurocentrism. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Notas

1 Sobre a marcação facial (frontes literatti) em pessoas escravizadas, veja-se, entre outras referências: Apul. Met. 9, 12; Petr. Sat. 103, 2.
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